Lud, Paisagem, serigrafia (colecção ns)
A notícia, vinda no JL pela mão de Vítor
Silva Tavares, apanhou-me de chofre. Horas
antes, já um ex-colega tentara entrar em contacto comigo para me transmitir a
triste notícia. E isto porque, à puridade aqui fica dito, a última conversa
que tivéramos no dia anterior fôra precisamente sobre Lud - Ludgero Viegas
Pinto - o pintor e poeta bissexto, o imprevisível Lud que contudo comigo
sempre agira como um cavalheiro e confrade fraternal. Afinal, o Lud já estava
morto à hora em que concertávamos pedir-lhe desenhos para o suplemento que eu
então co-coordenava (FANAL, in “Distrito de Portalegre”) e em que
combinávamos apanhá-lo, na próxima ida a Lisboa, para uma conversata até às
tantas. Mas a vida – a vida que a morte, essa, não tem nada
senão negrume – tem destes arrepios, destes desconchavos que nos derribam a
alegria. A essa hora, a esse tempo em que congeminávamos projectos que o
incluíam, já o Lud lisboeta dos quatro costados e alentejano por casamento e
inclinação (como tantas vezes me disse nos tempos em que frequentávamos Monte
da Pedra (Comenda), terra de sua mulher) percorria outros caminhos, outras
jornadas de peculiar desenvoltura. Talvez em passo estugado, como usava nos
seus bons tempos de empenhado fruidor de ritmos epicuristas, ou em passeio
mais pausado desde que uma recomendação de médico lhe aconselhara dietas
menos reconfortantes. À hora em que nós o recordávamos pensando para ele
diferentes enquadramentos, Lud retoiçava já noutras paragens com o seu
atento olho negro de português retinto, o cabelo asa de corvo e o bigode à
Douglas Fairbanks dos seus bons tempos. |
Lá por setenta e um setenta e dois, em certo dia apareceu-me na Estação Meteorológica onde eu, pela mão de Vitorino Caramelo, me iniciava como ajudante de meteorologista (única profissão que de facto tive, o resto foi só caminho civil para tratos de existência quotidiana) um sujeito de porte atlético solenemente vestido com um desses fatos azulados que se usavam na década, impecável camisa branca e gravata a condizer. Vinha falar com os responsáveis dum Liceu ou duma Escola do burgo portalegrense para que cordatamente o admitissem como professor de desenho. Propósito louvável, mas algo quimérico. Como pouco depois vim a saber pelo mesmo Pedro Oom que para mim lhe entregara recomendação, só por intemerato desígnio é que Lud se dera a esse périplo de potencial labutador…Com efeito, Lud não era propriamente cidadão que conseguisse estar dia após dia, com esmero, ensinando estudantinhos com propósito e persistência. Ele mesmo se encarregou, digamos, de me esclarecer sobre o inusitado da indumentária, da farpela de dandy: “É só para a entrevista…”, elucidou-me na sua voz educada de alfacinha encartado.
De modo que o que lhe ficou dessa viagem
algo quimérica foi só um belo almoço na aprazível “Casa Capote” e, dispersa
pelos anos, a amizade do signatário. De tempos a tempos
aparecia-me em Portalegre, em geral acompanhado de um primo amigalhaço ou dum
vizinho conterrâneo da esposa e lá íamos nós a caminho da aldeia de Monte da
Pedra onde, numa simpática tasquinha a condizer, depois de lauta manducação
de petiscos regionais nos entregávamos ao prazer singular e algo
desenquadrado da declamação de poemas e ao trautear de algumas canções –
manutenção de minha lavra – que o Lud acompanhava com fervor mas sem timbre
excessivo… Em Lisboa, algumas
vezes com Carlos Martins e, pelo menos uma vez, com o grande pintor Luís
Osório e o poeta editor Henrique Madeira, demos nossos passeios cortados
eventualmente por alguma partida das que gostava de artilhar.
Pirraças em vol d’oiseau mas que nunca indiciavam maldade, antes
certificavam um humor de cepa lusitana sem ferocidades. Colaborou comigo em
suplementos e revistas. Fez capa para um livro meu que não chegou a sair na
altura por o seu presuntivo editor ter falido com pequenino estrondo, mas que
foi o suficiente para se lhe entravar a rota. Expusemos em conjunto aqui e
ali, no país e lá fora com envios pela prestimosa e bendita via postal.
E até combinámos, num dia mais sonhador e pachorrento, uma viagem a Itália
que o Lud afinal não pôde fruir por mor de outros afazeres e, razão muito
ponderosa, por não lhe abundar marcadamente o vil metal. Em casa dos familiares
próximos do Dr. Feliciano Falcão, médico analista de excepção já falecido,
conviva e amigo de Régio, está decerto uma obra sua. Foi compra/venda feita
durante uma das tais viagens até aos rincões da serra de São Mamede. Por mor
desse negócio artístico proveitoso, generosamente, o pintor quis debruçar-se
comigo, fazendo do seu bolso as honras do bródio, sobre uma vasta pratada de
marisco acompanhada de outros pitéus e líquidos condizentes, numa Casa do
ramo bem conhecida ali ao pé do Coliseu da capital. Lud tinha mão
de pintor e era – para mim sempre foi, como o atesta uma dedicatória
iluminada com um desenho e aposta no meu exemplar de um livro de C.W.Ceram –
um conversador tonificante ainda que algo deambulatório. Levemente
intempestivo para alguns, não sei porquê mas sempre manifestou pelo que aqui
o evoca e relembra uma cordialidade afectuosa e um companheirismo intelectual
que nunca desceu à zombaria ou ao descontrole. Ares serenos do Alentejo o
enlevavam nesses momentos? Não o sei, nunca o soube nem procurei tirar isso a
limpo, confesso que jamais pensei muito nisso. Mesmo agora e quando ele se
foi e só restou um halo de saudade com uma dúzia de anos. Nessa altura senti uma sensível
amargura e disse para os meus botões enquanto lhe recordava o perfil
desaparecido: “Até sempre, amigo Ludgero. Que descanses coloridamente, já
sem as tuas habituais inquietações, na absoluta paz final!”. Lud, Gato número seis (óleo) |
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