FRUTOS
“E frutos deliciosos aí
esperavam que tivéssemos fome.”
André Gide
I
Estes frutos que o
dia me oferece,
tão generosamente
ali dispostos,
sobre a mesa, que
um sol de abril aquece,
não são erros de
abril, não são supostos:
são frutos em que
o tempo amadurece
para além de
surpresas e desgostos:
abertos ao fervor
da minha prece,
como totens do
dia, como rostos.
Quando para eles
ergo a minha mão,
vazia de lembrança
e pensamento,
de ter construído
e conformado em vão –
o que deles
obtenho é a forma clara:
uma delícia rubra
do momento
que me sustenta,
me confirma e ampara.
II
Maçãs: não vos
cantei como devia,
quando, lento de
espera e pensamento,
me dispersei entre
os sinais do dia,
a procurar um
rastro no amplo vento.
Não me aqueci ao
sol que em vós havia,
nem de ser vosso
espelho tive o intento,
bastando-me a
penumbra da porfia
e o jogo sem
sentido do momento.
Indiferente ao que
de vós o imenso
incêndio do verão
testemunhava,
sobre o meu olho
pávido suspenso,
busquei na sombra
a sombra em que se dava
a comédia
imprecisa do que penso,
onde o meu sonho
em neutro se inflamava.
III
Laranjas, de áurea
cor que o olho medita,
que seriam sem vós
a minha sede
e este desejo em
mim, que o tempo mede,
de uma coisa mais
própria, mais finita?
Se esta ânsia de
encontrar, enorme e aflita,
que se ergue
contra mim, como uma rede
(ou como contra um
vento uma parede),
não descobrisse em
vós o que a limita,
que seria este
arder da noite à aurora,
este ignorar que
em nada se melhora,
senão no vosso
sumo ardente e estivo?
Em vós o meu
orgulho se modera,
minha velha
impaciência aprende a espera,
e eu sou somente
aquilo de que vivo.
IV
Carne suave da
pêra, que eu desvendo
entre os ventos e
as horas, como quem
decifrasse a
palavra de ninguém
sob aquela que o
dia vai dizendo
(e se importasse
mais com o sol que vem
do que com o seu
silêncio ermo e tremendo:
em que nada
descubro nem aprendo,
que é apenas uma
luz que o dia tem).
Teu sabor em meu lábio
me serena,
como um rio é
sereno em seu descer,
correndo para o
mar que ao longe acena :
como uma espada
aplaca o aço que faz
o corpo do seu
sono mais falaz –
onde o perigo
aguarda e quer nascer.
V
Dorme – rugoso e
espesso – o coração
do pêssego, em
silêncio, dentro dele:
e o seu bater e a
sua pulsação
não se adivinha
sob a cor da pele,
que é rósea e
aveludada. E, quando a mão –
toda pressa que apanha ou que repele –
tenta um esforço
de decifração,
o que ele diz ao
tato não é ele:
é preciso prová-lo,
lentamente,
numa tarde de
outubro em que ter fome
tem o sabor
da fome que se sente;
ou, como uma asa
prova o ar que a sustenta,
partilhar do que é
túmido e sem nome.
na calma
completude em que se inventa.
VI
Apresento-vos,
pois: eis a banana,
na sua forma
própria, tropical;
dentro da casca a
polpa inaugural,
e além da polpa a
fonte de onde emana
maciez e odor numa
mistura tal
que do açúcar ao
tato a mão se engana
e o olho toma a
nuança que a engalana
(seu agudo amarelo
original)
por qualquer coisa
de íntima, que envolve
não o corpo do
fruto madurado,
mas o próprio
dulçor que se resolve
em consistência e
forma; ou como um dedo
que, erguido em
riste para o não provado,
mostra também a
terra e seu segredo.
VII
Uma festa de
mangas em dezembro
e um frenesi de
insetos; e o que vejo
supera o êxtase de
ontem, que não lembro,
sopitada a monção
do meu desejo.
E no entanto ainda
quero, ainda planejo,
ainda procuro como
quem de um membro
privado ainda
buscasse algum sobejo,
já velhos os
desastres de novembro.
Desço da casca ao
sumo, e vou de mim
à promessa dourada
que se guarda
em seu jamais
tocar extremo ou fim:
pois é dezembro em
tudo; e, se o sentido
paira em nós como
um sol adormecido,
é justo que ele
acenda, é justo que arda.
VIII
Teus segredos não
foram revelados,
e entanto ei-los
ali: junto à soleira,
pela mão de algum
deus depositados,
que também nos
legou a arte e a maneira.
(Portanto não se
diga da videira
que seus caminhos
foram sazonados;
mas diga-se: são
muitos, não trilhados,
que é o mesmo que
se diz da vida inteira.)
Do mistério da
seiva, que trabalhas
pacientemente,
enquanto a estação foge,
dê-se ao vencido a
luz que se concede
ao vencedor de
pugnas e batalhas:
o vasto
esquecimento e o riso de hoje,
banhando como um
rio a nossa sede.
IX
O dia em vós se
anima, em vossa chama;
e eu em vós me
consolo, em vós me aqueço,
na vermelha
adstringência em que se inflama
qualquer coisa de
mim que não esqueço:
e vogo então, mais
rente ao que pareço,
em direção à voz
que me conclama
para o centro da
coisa em que começo
e sou também, na
luz que se derrama.
(Caquis – na tarde
acesa, e nada mais
que os complemente
nisso ou que os resuma
em pensamentos
nítidos e atuais.)
Que palavra direi
que vos explique,
vos torne mais do
dia ou simplifique –
no dia que se
basta e se consuma?
X
Abacate: entre
tons de verde e escuro,
tua semente evoca
a geometria
deste mundo em que
a vida, em queda, cria,
gerando as formas
simples do futuro.
Dentro do teu
invólucro maduro
(em mistérios de
tempo e de alquimia),
ensinaste aos
verdores do amplo dia
um gesto mais
contido, um tom mais puro.
Se da paisagem
guardas uma parte
em tua carne
esmeraldina e agreste,
só não o sabe quem
não foi provar-te:
quem não desceu à
claridade doce
que se aprofunda
em ti, como se fosse
a aurora dessa
noite que te veste.
17/19-11-2005
Renato Suttana (n. 1966) é professor universitário e autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado, PUC-MG, 1995) e dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005) e João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo: Editora Scortecci, 2005) e Bichos (poesia, 2005, ed. integralmente ilustrada por NS).
Sem comentários:
Enviar um comentário