quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Poemas de Renato Suttana

 

FRUTOS

 

“E frutos deliciosos aí esperavam que tivéssemos fome.”

 

                                                                      André Gide

 

 

I

 

Estes frutos que o dia me oferece,

tão generosamente ali dispostos,

sobre a mesa, que um sol de abril aquece,

não são erros de abril, não são supostos:

 

são frutos em que o tempo amadurece

para além de surpresas e desgostos:

abertos ao fervor da minha prece,

como totens do dia, como rostos.

 

Quando para eles ergo a minha mão,

vazia de lembrança e pensamento,

de ter construído e conformado em vão –

 

o que deles obtenho é a forma clara:

uma delícia rubra do momento

que me sustenta, me confirma e ampara.

 

 

II

 

Maçãs: não vos cantei como devia,

quando, lento de espera e pensamento,

me dispersei entre os sinais do dia,

a procurar um rastro no amplo vento.

 

Não me aqueci ao sol que em vós havia,

nem de ser vosso espelho tive o intento,

bastando-me a penumbra da porfia

e o jogo sem sentido do momento.

 

Indiferente ao que de vós o imenso

incêndio do verão testemunhava,

sobre o meu olho pávido suspenso,

 

busquei na sombra a sombra em que se dava

a comédia imprecisa do que penso,

onde o meu sonho em neutro se inflamava.

 

 

III

 

Laranjas, de áurea cor que o olho medita,

que seriam sem vós a minha sede

e este desejo em mim, que o tempo mede,

de uma coisa mais própria, mais finita?

 

Se esta ânsia de encontrar, enorme e aflita,

que se ergue contra mim, como uma rede

(ou como contra um vento uma parede),

não descobrisse em vós o que a limita,

 

que seria este arder da noite à aurora,

este ignorar que em nada se melhora,

senão no vosso sumo ardente e estivo?

 

Em vós o meu orgulho se modera,

minha velha impaciência aprende a espera,

e eu sou somente aquilo de que vivo.

 

 

IV

 

Carne suave da pêra, que eu desvendo

entre os ventos e as horas, como quem

decifrasse a palavra de ninguém

sob aquela que o dia vai dizendo

 

(e se importasse mais com o sol que vem

do que com o seu silêncio ermo e tremendo:

em que nada descubro nem aprendo,

que é apenas uma luz que o dia tem).

 

Teu sabor em meu lábio me serena,

como um rio é sereno em seu descer,

correndo para o mar que ao longe acena :

 

como uma espada aplaca o aço que faz

o corpo do seu sono mais falaz –

onde o perigo aguarda e quer nascer.

 

 

V

 

Dorme – rugoso e espesso – o coração

do pêssego, em silêncio, dentro dele:

e o seu bater e a sua pulsação

não se adivinha sob a cor da pele,

 

que é rósea e aveludada. E, quando a mão –

toda pressa que apanha ou que repele

tenta um esforço de decifração,

o que ele diz ao tato não é ele:

 

é preciso prová-lo, lentamente,

numa tarde de outubro em que ter fome

tem o sabor da  fome que se sente;

 

ou, como uma asa prova o ar que a sustenta,

partilhar do que é túmido e sem nome.

na calma completude em que se inventa.

 

 

VI

 

Apresento-vos, pois: eis a banana,

na sua forma própria, tropical;

dentro da casca a polpa inaugural,

e além da polpa a fonte de onde emana

 

maciez e odor numa mistura tal

que do açúcar ao tato a mão se engana

e o olho toma a nuança que a engalana

(seu agudo amarelo original)

 

por qualquer coisa de íntima, que envolve

não o corpo do fruto madurado,

mas o próprio dulçor que se resolve

 

em consistência e forma; ou como um dedo

que, erguido em riste para o não provado,

mostra também a terra e seu segredo.

 

 

VII

 

Uma festa de mangas em dezembro

e um frenesi de insetos; e o que vejo

supera o êxtase de ontem, que não lembro,

sopitada a monção do meu desejo.

 

E no entanto ainda quero, ainda planejo,

ainda procuro como quem de um membro

privado ainda buscasse algum sobejo,

já velhos os desastres de novembro.

 

Desço da casca ao sumo, e vou de mim

à promessa dourada que se guarda

em seu jamais tocar extremo ou fim:

 

pois é dezembro em tudo; e, se o sentido

paira em nós como um sol adormecido,

é justo que ele acenda, é justo que arda.

 

 

VIII

 

Teus segredos não foram revelados,

e entanto ei-los ali: junto à soleira,

pela mão de algum deus depositados,

que também nos legou a arte e a maneira.

 

(Portanto não se diga da videira

que seus caminhos foram sazonados;

mas diga-se: são muitos, não trilhados,

que é o mesmo que se diz da vida inteira.)

 

Do mistério da seiva, que trabalhas

pacientemente, enquanto a estação foge,

dê-se ao vencido a luz que se concede

 

ao vencedor de pugnas e batalhas:

o vasto esquecimento e o riso de hoje,

banhando como um rio a nossa sede.

 

 

IX

 

O dia em vós se anima, em vossa chama;

e eu em vós me consolo, em vós me aqueço,

na vermelha adstringência em que se inflama

qualquer coisa de mim que não esqueço:

 

e vogo então, mais rente ao que pareço,

em direção à voz que me conclama

para o centro da coisa em que começo

e sou também, na luz que se derrama.

 

(Caquis – na tarde acesa, e nada mais

que os complemente nisso ou que os resuma

em pensamentos nítidos e atuais.)

 

Que palavra direi que vos explique,

vos torne mais do dia ou simplifique –

no dia que se basta e se consuma?

 

 

X

 

Abacate: entre tons de verde e escuro,

tua semente evoca a geometria

deste mundo em que a vida, em queda, cria,

gerando as formas simples do futuro.

 

Dentro do teu invólucro maduro

(em mistérios de tempo e de alquimia),

ensinaste aos verdores do amplo dia

um gesto mais contido, um tom mais puro.

 

Se da paisagem guardas uma parte

em tua carne esmeraldina e agreste,

só não o sabe quem não foi provar-te:

 

quem não desceu à claridade doce

que se aprofunda em ti, como se fosse

a aurora dessa noite que te veste.

 

17/19-11-2005

 

Renato Suttana (n. 1966) é professor universitário e autor de Uma poética do deslimite: o poema como imagem na obra de Manoel de Barros (dissertação de mestrado, PUC-MG, 1995) e dos livros Visita do fantasma na noite (poesia, 2002), O livro da noite (prosa, 2005) e João Cabral de Melo Neto: o poeta e a voz da modernidade (São Paulo: Editora Scortecci, 2005) e Bichos (poesia, 2005, ed. integralmente ilustrada por NS).


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