Desenho de José Régio
Relance sobre a pintura de Régio
Desenhar era, para Régio,
uma naturalidade. Importa logo de início epigrafar esta naturalidade, que
cultivara desde muito novo – quando ele e seu irmão Júlio (como Joaquim Pacheco
Neves assinala no seu livro Os
desenhos de Régio) pintavam
lado a lado nesse tempo de Natal colorido pelos prestígios da memória.
Independentemente de ser uma
naturalidade era uma faculdade que ia bem para além do gosto inato de qualquer
ser votado aos mundos onde o fulgor das coisas espirituais nos faz andar
atentos à Arte. O mínimo que se poderá dizer de Régio é que era um bom
desenhador – mesmo um excelente desenhador. Pintor de domingo? Bom – só se a
maior atenção dada às letras e aos seus duros caminhos de concretização (para
encher a célebre página branca é preciso muito esforço, muito suor, para além
do talento, o que não está ao alcance dos zoilos) o remete para essa
qualificação, aliás inadequada e frequentemente pacóvia. Claro que para um
indivíduo como Régio não há hobbies
deste cariz – são algo de demasiado fundo e grave, com a gravidade sagrada da
vida e da mirada que sobre ela lança um ser de excepção como Régio foi.
Assentemos portanto que nele o interesse pela
pintura e o acto de desenhar/pintar era um dos aspectos da sua rica vida de
relação com os mistérios da arte entendida por extenso. Depois, se nos
debruçarmos sobre o seu traço, os seus temas (a sua maneira ou, para utilizarmos a expressão do grande crítico
português de artes plásticas, o arqtº Mário de Oliveira, a sua intenção) verificaremos que não andava
longe do que se fazia naquele tempo: um figurativismo lírico em tons ora mansos
ora adustos jogando com as cores complementares.
A visitação da figura humana é uma das
constantes a que recorria, fossem essas figuras de entalhe sagrado ou profano.
E, neste caso, haveria também que perguntar: onde fica traçada a linha que
absolutamente separa o profano do sagrado? Pergunta que já a propósito de obras
de diversos pintores autóctones ou estrangeiros – pense-se em Beckman, por
exemplo, ou em Chagall ou, entre nós, em Mário Botas – se tem colocado, visto
que uma figura de mulher é frequentemente a figura da Virgem (e vice-versa) e a
figura de um mendigo pode ser a figura de Cristo, noutra encarnação, noutro
místico enquadramento, noutra dimensão real ou onírica.
Régio revela-se inteiramente
nessas silhuetas contorcidas, nesses rostos arrepanhados, nessas expressões de
êxtase, de fúria, de inconcreta estupefacção – de interrogação, de medo, de
alguma esperança. E, estranhamente, nalguma súbita frescura de um rosto, de um
olhar, de um movimento, de uma feição secreta. Como Claude Roy, poder-se-ia
perguntar: “Essa frescura será uma ilusão do nosso olhar ou a expressão da
unanimidade das origens?”.
Na sua singeleza, há que ver
os desenhos de Régio como os irmãos
daqueles que Júlio executava. Não é difícil, não é mesmo possível, não se ver nos de Régio a versão como num espelho trágico daquilo que em Júlio é calma e
lirismo, mas uma calma e um lirismo bafejados pelo sopro dum surrealismo
metafórico, carregado de significados poéticos e de serenidade duramente
conquistada. Júlio (Saúl Dias), que tenho como um dos maiores poetas do século
vinte português (a minha participação na homenagem que lhe foi feita em livro
organizado por Valter Hugo Mãe não foi um act
gratuit da minha parte, pois não escrevo textos de circunstância – e sim
uma atitude de puro apreço) foi igualmente o protagonista central duma incursão
da maravilha pictórica no mundo por vezes contraditório da pintura portuguesa.
Régio, votado a outros mesteres mais instantes, que lhe carregavam o quotidiano
de tarefas que à escrita iam desaguar, teve o seu percurso de diferente
recorte. Mas o que fez brilha e distingue-se, porque pelos seus próprios meios
se tinha – mais uma vez parafraseando Roy – humanizado,
enriquecido, metamorfoseado.
E isto, repare-se, ante os mundos do alto e os do baixo: os da carne e os da alma, para tudo dizer.
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