Mayté Bayon
(Dedicado, com apreço, aos cretinos lusos & estrangeiros)
Devo dizer
que gosto de cretinos. Não, garanto
que não é por piedade
mas por apreço convicto. Talvez com
uma pontinha de malícia
mas sem acinte nem ferrete. Uma
(como dizer?) maneira
de tímida ternura.
Afinal - não é verdade? - o cretino
é uma espécie humanoide altamente
meritória
e multifacetada: vive connosco à
mão de semear, conhecemo-lo
das ruas, vemo-lo
na TV, lemo-lo nos jornais… Ele
acompanhou sempre
nos mais expressos lugares
a rude humanidade
desde o fundo dos tempos, desde os
primórdios
da vida. À roda da fogueira
lá nas épocas longínquas do período
quaternário
quando ainda não havia cretinices
modernas (televisão, rádio
parlamento…) podeis crer que já
havia, embora hirsuto
um ou outro cretinus sapiens.
E pelos tempos fora
na idade dos ancestros da
pré-história
que seria dos inícios adequados
da social organização
sem um par de cretinos a adorná-la?
Seja na arte ou na literatura
nos ramos do saber que o mundo
louva
ou demais regras e ofícios
como poderiam os cretinos
dispensar-se? Cretino foi, ao acaso
o tolo do Caim, ou o pobre do Job
ou – na quadra das letras – o bom
do Pinheiro Chagas
que teve a parvoíce de ser
contemporâneo
do Eça magricelas.
E nos domínios vicejantes da
pintura
o tremendo Bouguereau, que dizia de
Cézanne
que este só fazia borradelas.
Ou nos salões do espírito
sagrado
o magistral Bossuet, a águia de
Mons
que Deus tenha bem guardado.
Enfim, nobres exemplos
de douta cretinice. Pois o cretino
é plural
e em todo o lado sabe imiscuir-se.
(Aqui um aparte
para os estudiosos de gabinete: não
deve confundir-se
o propriamente cretino, cretinus
boçalis, com o pedaço-de-asno
que, sendo semelhante – a olhares
sem estética – claramente
pertence
a outra espécie cinegética).
Na boa sociedade, naquilo a que se
chama
a melhor sociedade, a tal
que se pauta por livros de etiqueta
escritos em geral por excelentes
senhoras – às vezes
excelentes cretinas –
o patarata é um valor seguro: já
pensaram
que seria das páginas sociais de
afidalgados
ou mesmo só de notáveis burgueses
agregados
sem um ror de cretinos e cretinas
interessados
em lhes saber da folha, em lhes
saber dos fados?
A vida sem cretinos
é como um lar sem pão, teatro sem
enredo, jardim
sem flores ou passarinhos (olha que
imagem cretina!),
como dizem as poetisas de arrabalde
com vaporosa graça
quase divina.
Numa recepção de Estado, no salão
duma autarquia,
numa cerimónia de homenagem a um
que nada fez mas morreu tarde
ou demasiado cedo, co’os diabos do
talento
seja na capital ou na feliz
província
a presença de cretinos é uma joia
sem preço:
são os que convictamente
mais aplaudem, sem maldade
nem cálculo traiçoeiro
ou gritam apoiado
criando felicidade
no elenco inteiro
ou mais valia, nas forças vivas da
cidade.
(E em geral,
por ironia do destino
o orador habitual
é que costuma ser, por sinal
o maior cretino!)
Sim. Gosto de palonços. Ei-los que
desfilam: na política,
no professorado
na res publica (que, como se
sabe, significa coisa pública
– dou o esclarecimento
não esteja algum cretino a ler-me)
o palonço
é fundamental.
Quem diz palonço diz palonça
(explico já
não vá
alguma feminista cretina
pensar que o meu poema a
discrimina).
A cretinice pura
é algo de adorável como tudo o que
é puro:
um puro mel, um puro amor, uma pura
doidice, uma pura miséria…
Mas para que o cretino seja
esplêndido
necessita de ambiente a condizer:
bons ares e boas águas, está claro
mas também uma família recheada de
atenções e de cuidados,
ao velho estilo patriarcal,
cultivando modelarmente
os sãos e pacientes
cretinos valores.
Não precisa, todavia
de ser fundamentalista praticante
desses conceitos sem jaça: ele há
tanto cretino oriundo
de meios inconvencionais! Como o
cacto, o cretino
adapta-se a qualquer terreno, por
mais adusto que seja!
Façamos-lhe justiça: o cretino,
digamos, é como
um livro aberto - o que ali está
não engana. Por isso tantos
cretinos, por serem senhores
graves e concentrados
até chegam a ministros,
a assessores,
a deputados.
(Também sucede que alguns
no entanto
nunca passam de criados…).
O cretino estimula as próprias
artes, as próprias letras. Até a filosofia!
Lembremos
as expressões fenomenal cretino,
cretino piramidal, cretino apimentado,
cretino até dizer basta.
Enfim, altos jogos verbais como
tudo o que o humano engenho
inventa. Já houve quem dissesse
que ele é como as castanhas: nem
sempre
as maiores são as mais saborosas!
Os cretinos rurais…
Os cretinos citadinos…
Os cretinos intermédios
sociais, profissionais…
Os viandantes cretinos…
Enfim, não divaguemos!
Vou, então, terminar.
Meter um ponto final
antes que, impaciente
o leitor inteligente
me apode gentilmente
de redundante ou, até,
de chatarrão
- espécie de parente
maganão
que também merece versos!
ns
Do livro recentemente publicado “A
escrita e o seu contrário)
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