quinta-feira, 29 de abril de 2021

Nicolau Saião, Evocações espanholas

 

                                                                    A don Juan Valderrama

                                      A don Josep Andreu i Laserre (Charlie Rivel)

                                                                                       in memoriam

 

1.

 

   Por su gracia

 




   Juanito Valderrama ergue a voz e solta o seu cante grande. E abrem-se os céus. Os céus de Sevilha, entre renques de laranjeiras, entre os odores de Sevilha, ao pé da sombra da Giralda, ao pé da Catedral a propósito da qual o cardeal Pedralva disse “Faremos uma igreja tão imponente que os vindouros dirão que estávamos todos loucos!”.

  Canta Juanito em criança e canta depois de velho. Andaluz dos pés à cabeça, voz de plata policromada, canta “Las carretas del rocio”, “La rosa cautiva”, “La hija de Juan Simón”…Canta e no seu canto vibra o amor e a morte, o desespero e a mais funda alegria, o vigor e a altivez e a simplicidade varonil de um povo de pessoas e não de números. E com ele cantam, sem cantarem com ele, Pedro Martin, o “Chato de las vendas” que morreu de desgosto duas horas depois de saber, durante a guerra civil, que o iam fuzilar. E Jimenez Rejano com a sua voz de vendaval, e Caracol, e os irmãos Montoya, e Camarón, e Paco de Lucia com a sua guitarra trágica e poética. E a Niña de la Puebla, que canta aquela que é provavelmente a mais bela canção de amor já feita pela tradição popular e pelo génio desse povo: a comovente, exaltante, lírica e desgarradora “Campanilleros en los pueblos de mi Andalucia”.

  Mas canta também o maestro Pepe Marchena, de grave e doce voz de hombre y caballero. E o Niño de Penarrubia, essa fonte de pura água andaluza. E os anónimos dos tascos, do “venga vino”, os azeitoneiros de Jaén, os “niños del mar” de Almeria, os minericos de Linares e Cartagena. E cantam o quê?

  Os fandanguillos, as alegrias, as seguidillas e as campanilleras do flamenco – que é a meu ver a maior invenção musical e cantaora já feita pelo povo. E onde ressoa a dignidade, a paciência, os momentos de fruição dessas gentes anónimas e pobres – mas tão ricas! – esses “gitanos de aristocrácia/ cantaores de cante grande/ flamenco en sus quatro ramas” que souberam erguer a figura entre os solavancos do tempo e os volteios das cordas das guitarras.

  Juanito Valderrama… Hombre! Toma mi pañuelo blanco para limpiarte la cara!

 

2.

 

    Em Louvor dos Palhaços




   Não por simbolismo mais ou menos evidente, não por se estar em tempo de clowns, de malabaristas, de hipnotizadores e de ilusionistas – mas sim por no fim do inverno a memória parecer mais nostálgica, intercedendo pelos tempos de grandes alegrias, de viagens interiores, de meandros que se acariciam com a palavra, com a recordação. Um mundo juvenil de circo, fremente e encantado.

   Charlie Rivel, que vi ao vivo em Madrid numa tarde de surpresas, no decorrer duma matinée inesquecível, com o seu lentíssimo andar, com as suas pequenas frases entrecortadas, com o seu huuuuuu! de rosto rodando para o céu, esse som surpreendente pontuando as estorinhas comoventes, terríveis e poéticas daquele que foi considerado o melhor palhaço do mundo.

   E os Irmãos Campos, portugueses retintos num elenco circense todo composto por húngaros de Linda-a-Pastora, por franceses do Cadaval, por italianos da Madragoa? E Oscarito, o palhaço bailarino com as pernas de arame que todo se desconjuntava quando Simeão, o palhaço-rico, o submetia a rudes diálogos de que aliás saía mal-ferido? E que com o seu serrote-violino, com a sua trompete destravada, com o seu saxofone bicéfalo nos levava por todos os lugares onde o sonho podia acontecer?

  E – posto que agora por fora – as distintas partenaires que eram jovens em início de carreira ou madames a finalizá-la, mas inteiramente frequentáveis para olhos adolescentes (um toquezinho de inusitado que ainda lhes conferia mais sedução…)?

  Deixem que me lembre desses anos de vinho e rosas… Em Portalegre por todo o Rossio, em frente do antigo campo da bola, por detrás da belíssima cascata do jardim barroco infelizmente passado à estória da História, quando ainda lá havia uma esplanada de Café sob um cedro do Líbano, onde pelas tardes a rapaziada hoje madura ia deslumbrar-se nos serões de província…

  Deixem que me recorde - como se, com vossa licença, tasquinhasse expeditamente um pacote de amendoins, antes de entrarem os trapezistas, os domadores, os hipnotizadores e outros acrobatas.

                                                                                                                                             

Nota: Aos interessados, sugerimos as biografias:

 

António Burgos,“Mi España querida”, introdução de Juan Manuel Serrat, (“La esfera de los libros”)

 

Sebastià Gasch, “Charlie Rivel, pallasso català “, (Ed.Alcides, Barcelona) 

 

ns


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