segunda-feira, 24 de maio de 2021

Caminhos da Literatura – Inquérito a Nicolau Saião (por Lino Mendes)

 


ns, A escrita


A POESIA

1.      O que define a maior ou menor qualidade de um texto literário?
A mensagem? A riqueza(?)linguística? A maior ou menor dificuldade da sua compreensão?

Resposta de NS

   Eu diria que é um conjunto de condições da qual afasto no entanto, à partida, a dificuldade maior ou menor da sua compreensão, que colocarei sob outro enfoque. E isto porque a dificuldade de entendimento de um texto literário pode até partir da maior ou menor inteligência ou preparação do leitor…

   Dizia Lichtenberg “Se um macaco se mirar num espelho, nunca verá um apóstolo” e a frase creio que tem todo o cabimento, como se entende.

   Indo agora ao cerne da questão, a chamada “mensagem” parte da riqueza linguística (melhor dizendo, da boa articulação da escrita – e é isso que configura a riqueza do que se diz e não um eventual estilo rebuscado ou grandiloquente, digamos assim), sendo o inverso também verdadeiro. Um texto de qualidade pode ser original ou mesmo inusitado, mas não é nunca descabelado ou pedante. Mais: o autor de qualidade nunca busca ser original – a originalidade é uma constituinte da sua escrita, simplesmente, parte dos olhares novos que ele soube abrir ou suscitar. A qualidade é sempre uma resultante: da forma e do conteúdo expressos, que fazem sentido e têm poder criativo e criador.

2.      Duas  situações:
Quem não entende António Aleixo?
Quem entende Camões?(LUSIADAS)
É claro que não vamos fazer comparações. Mas gostava que nos situasse
no seu espaço cada um destes exemplos.

NS - Só gente muito primária poderá não entender António Aleixo. Dito isto, há que referir que entender tem dois níveis (pelo menos) de estruturação: o sentido imediato e o sentido profundo. No primeiro parte-se da leitura corrida, digamos desta maneira. O segundo já requisita percebermos o que o autor dizia, queria de facto dizer, recorrendo a um simbolismo, a uma sugestão ou inflexão apontando mesmo para o que nem necessita de ser expresso claramente. No que se refere a Camôes, há o discurso global (celebração dos “heróis” portugueses), na linha de outras celebrações mais antigas (gregas e romanas). A forma em que está vasado, própria daquele tempo e daquele espaço poético é que não será de fácil apreensão, dependendo mesmo da preparação de cada um. Mais consensual, mais fácil de entender como usa dizer-se, será a sua obra lírica, não epopaica, que a meu ver é inclusivamente a sua mais alta realização. Independentemente da sua força discursiva, principalmente em dados trechos, a olhares modernos Os Lusiadas já começa a aparecer-nos como um “tour de force” que perde claramente no cotejo com A Odisseia (para não falarmos noutros…), dado o seu estrénuo esforço em pintar de epopeia uma incursão claramente histórica pouco entusiasmante dado o seu cariz quotidiano-comercial…por muita retórica patrioteira que se lhe faça em redor.

3.      O rimar deixou de ser necessário para haver poesia
Como sabemos então que se trata de um poema?

NS - O rimar nunca foi indispensável na poesia (como o não é o não rimar ou verso branco), correspondeu apenas a um estágio temporal bem determinado. Saliente-se que em certas épocas chegou a assumir, até, foros de obrigatoriedade por parte de alguns sectores “donos da cultura”. O que mostrava não só o seu autoritarismo como a sua própria falta de cultura. Dizendo de modo explícito: faziam passar por poesia algo que não era mais que rimação (perdoe-se-me o eventual neologismo) sem fulgor e sem valor, repisar monocórdico de conceitos ou de pseudo-moralismos de baixa estirpe.   

   Dito isto, realce-se que há por vezes poemas que, partindo da qualidade de escrita do autor, que sabe manejar a rima de forma a ter sentidos de drama, de ironia ou de graça simplesmente, têm nessa certa rima uma expressão adequadíssima – pois está ali a sublinhar uma intenção, uma qualificação, uma sibilina inflexão que posta doutra forma não resultaria na atingida beleza do poema.

  Um poema – e um poema pode ser em prosa, como se usa dizer – reconhece-se por ter nele uma imanência que atinge os mais secretos, mais profundos e mais desconhecidos, por vezes, sentidos do ser. A poesia é uma construção que toca as fontes da Humanidade e da existência comum e do ser vivente, há algo na frase que ultrapassa a simples verdade da sua estrutura para se projectar na realidade interior das coisas.

  Refira-se que uma novela, um romance, um ensaio – que são obras em prosa – podem ter na sua concretização uma imensa poesia e não precisam de sair da sua estrutura (que é específica). Mais: se, neles, o autor quisesse fazer poesia, ferindo a sua especificidade, provavelmente faria era uma obra falhada e pretensiosa. (Há exemplos de romancistas, novelistas, etc. que quiseram fazer romance/novela poéticos e só fizeram, afinal, emolientes pessegadas…).

  A poesia parte da estrutura intrínseca que lhe configura a permanência no tempo e no espaço. Ser com ou sem rima já é uma sequência (ou uma consequência, se quiserem…).


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