CHARLOT E OS JOGOS DO ESPELHO
Podemos questionar-nos: Charlot seria
Chaplin ao espelho? Pergunta talvez ociosa, mas que não deixa de ser
pertinente. Quase diria com humor: para ser Charlot, a Chaplin só lhe faltava o
bigodinho. Senão, vejamos: a vida de
Chaplin foi exemplar do ponto de vista de um ser humano que forcejava por se
enquadrar numa sociedade que sem cessar fazia esforços para o remeter, com o
clássico pontapé no traseiro das suas comédias, para lugares inabordáveis.
Recordemos, ao calhar, os episódios Lita Grey*, a tentativa de darem o nosso
homem como comunista por ter vendido bónus de guerra (Chaplin comunista é de
facto demasiado forte), a censura que lhe faziam em Inglaterra por ter
abandonado mais ou menos aquele rincão onde oficiavam os comediantes, esses sim
verdadeiros comediantes, no género de Lord Chipendale ou Neville Chamberlain…
Por isso é que hoje se nota sem precisarmos
de lupa – basta-nos a perspectiva do tempo, esse supremo crítico como lhe
chamou André Gide – que o riso de Charlot, mesmo o dos seus primeiros momentos
que a alguns distraídos pareceram simples vaudeville, é o que fica a qualquer
um depois de uma grande e pura tristeza. Pierre Hourcade, que um dia se forçou
a debruçar-se sobre os mecanismos do humor, como personagem grada que era e por
isso vagamente cómica (ia quase a dizer gravemente cómica) tinha dessa matéria
uma ideia que, com maldade, classificarei de “perspectiva de proprietário”.
Mais ou menos na altura em que Chaplin nos dava o seu “Monsieur Verdoux”,
referia aquele académico que o verdadeiro humor é sempre amável ou alegre,
ou seja dito de outro modo: excelente pitança para pessoas sérias e decentes
que gostam de amenizar os seus dias...
Bem melhor andou Wenceslau Fernandez Flores
ao referir que “O humorista é um descontente que se ri da Sociedade em vez
de a ferir” – o que remete Chaplin para o lugar que é efectivamente o seu:
um homem belamente encolerizado com os disparates do mundo, como diria
Chesterton, ao qual foi imposto, por inerência de talento (ou, se preferirem,
génio) um caminho traçado entre os pardieiros de Londres e, finalmente, as ruas
da imensa metrópole americana. E que ele soube transfigurar e tornar perene.
Ainda hoje se ri a bom rir durante a
projecção de ”Os ociosos”, de “A quimera do ouro”, de “As luzes da cidade”, de
“Tempos modernos”. Já não estou tão seguro que o mesmo suceda ao vermos “O
grande ditador”, ou “Um rei em Nova Iorque”, ou “Monsieur Verdoux”, ou “A
condessa de Hong-Kong”. Por esta razão muito simples: hoje sabemos à nossa
custa que as gargalhadas podem gelar na garganta e que, no fundo, o que Chaplin
encenava eram não comédias mas tragédias e que o riso só lá estava para
sublinhar uma evidência já posta em equação por Lautréamont: “Ride, mas
chorai ao mesmo tempo. Se não puderdes chorar pelos olhos, chorai pela boca ou
por qualquer outro lado. Sejam lágrimas, seja mijo, seja sangue, tanto faz. Mas
advirto que um líquido qualquer é aqui indispensável”.
Dizia Brassai, conversando com Malraux e
Picasso, que de cada vez que via nas actualidades Mussolini a discursar tinha a
impressão que por detrás lhe estava sempre alguém a dar pontapés no posterior.
Mas Mussolini era um patifório um pouco risível, apesar dos desmandos que
praticou na pátria de Leopardi. Quanto a Hitler o caso era diferente: sinistro
sem contemplações de picardia toscana, era de facto um canalha de alto coturno,
um verdadeiro criminoso e um ente que, com a sua simples aparição, espalhava a
inquietação à sua volta como nos conta Trevor Roper citado por Jean-Marie
Domenach. Será então de espantar que hoje nos apareça muito mais ridículo e
verdadeiramente objecto de maior riso ferino? Porque o que admira – o que assim
torna a regra mais sensível e com maior relevo – é como é que um patife daquele
calibre que de facto era não mais que um ser perturbado, pôde ser tido como
profeta e condutor de povos.
Porque, efectivamente, o riso profundo,
verdadeiro, que dói e liberta mesmo à custa de um arranco interior, tem sempre
como alvo o fundamental e nunca o acessório. Pois os ditadores, mesmo
disfarçados de gente quotidiana, são sempre um pouco como as figuras dos
baralhos de cartas: metade do corpo para cima e a outra metade para baixo, como
se estivessem cortados a meio por um espelho que os anos articulam
apropriadamente.
Chaplin e Charlot funcionavam noutra base,
estavam de corpo inteiro nesta história de imagens devolvidas por um vidro
encantado. Agiam noutro plano, que é o da realidade criada depois de se ter
atravessado o deserto da estupidez e da mediocridade habilmente forjada por um
quotidiano que se auto-designa como responsável e respeitável. À sua maneira
contundente, para além de tudo o mais, Chaplin demonstrou-nos e continua a
demonstrar-nos esta coisa pacífica e intuitiva: que o riso, tal como os raios
da manhã, são o mais eficaz elixir contra a monstruosidade codificada e que,
contra ele, os ditadores e os bandidos fardados ficam em petição de miséria –
até porque acabam por finalmente compreender que o riso é o verdadeiro
precursor daquilo que nas fitas vem efectivamente em sequência e que é a
finura de uma estaca plantada em pleno coração do fantasma.
Nota – Lita Grey, actriz vulgar mas
muito bela, foi casada com Chaplin. Instruída por sua mãe, mulher ávida e
cruel, apresentou queixa contra ele com o pretexto de que este quereria
praticar no leito conjugal actos eróticos que saíam do habitual – ou seja
fellatio, cunnilingus e sodomia – que em certos estados dos EUA são punidos com
pesadas penas de prisão. Entre pessoas casadas, repare-se, nomeadamente por
qualquer uma das diversas igrejas existentes e sem que haja violência ou
constrangimento moral pelo meio.
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