Fez há
um par de dias um ano sobre o falecimento deste nosso confrade - poeta,
cronista, viageiro, ensaísta e homem da rádio, além de cidadão interventivo.
Aqui o recordamos e à sua postura de pessoa
sempre cordial e participativa.
Nuno Rebocho
– Um convivente goliardo
moderno
“Muitos
são os benefícios de viajar: a frescura que nos traz ao espírito, ver e ouvir
coisas maravilhosas, a delícia de contemplar novos lugares, o encontro com
novos amigos e o aprender finas maneiras”
Muslih-din-Saadi, poeta persa
1.
Dizia Samuel Clemens (Mark Twain), também
ele viajante e cronista devido a decisão própria e, durante algum tempo, viageiro
por profissão, que viajar era passear um
sonho.
E acrescentou que a escrita que daí resulta
passa a ser o sonho transfigurado, com o seu território de realidades e de
quimeras, de minutos que se abriram para novas visões e novos pensamentos e
doravante perduram como relatos que nos ensinam e nos maravilham.
Andar pelo mundo e pela vida e escrever
sobre isso – pessoas, coisas, sucessos da mais diversa ordem – não é fácil
tarefa, é preciso manter simultaneamente a inocência (temperada por alguma
malícia), a perspicácia e um enorme sangue-frio, pois sem aviso as recordações
apoderam-se de nós e como que nos obrigam a passar para outra realidade, em
geral extremamente sedutora mas que nos enfeitiça com inexactidões
involuntárias, filhas do nosso mistério pessoal. Por isso Benjamin Disraeli
dizia avisadamente que “vi mais coisas do
que as que recordo e recordo mais coisas do que as que vi”. Todavia, a
grande solução consiste sempre em entrarmos generosamente na viagem, sem temermos a multiplicação de
experiências, até mesmo de acasos, pois sabe-se que no final a escrita e seus
interiores meandros – se dispomos da adequada dose de sensatez criadora –
acabam por depurar, resolver e transfigurar aquilo que se viu, se sentiu e se
viveu, como que por uma brusca mutação que vem não se sabe muito bem donde.
E depois há a memória que se convoca nos grandes momentos de fecunda solidão, de
fulgurante isolamento criativo em que somos simultaneamente objecto e sujeito
porque é por nós que passa a organização do que significam realmente as lembranças, do que foram efectivamente os perfis das
gentes que nos rodearam, os tempos
reencontrados em que revivemos uma conversa, um ritmo vital, um passeio, em
que de repente ressuscitam perplexidades e encantamentos, fragmentos de tempo
em que a nostalgia nos visitou sem que nos pudéssemos esquivar e que logo a
seguir assumimos peremptoriamente como um dos nossos maiores bens.
A isto, creio, chama-se compreender. Porque por detrás de toda a alegria difusa
transportada numa evocação, ou em todo o pequeno tremor que nos assalta ao
termos a sensação de que qualquer coisa
nos abandonou, há sempre um rosto ou a ideia de que por ali paira algo de
humanizado e aonde se chegou através de um olhar mais exacto, mais treinado
pelos mundos onde se esteve por destino e pelos universos que as deambulações
nos propiciaram.
2.
Já se sabe que a arte da crónica não é nem
nunca foi uma arte menor ou muito menos mero preâmbulo para qualquer coisa de
maior envergadura. Trata-se, com efeito, de um corpo inteiro que se joga ali mesmo, nesse continente de luzes e
sombras onde crescem deuses e demónios inteiramente nascidos da realidade que
se forja com os factos arrolados e sua representação palpável. Ou seja, uma
poesia muito própria e sem sujeições a outras escritas aparentemente de maior
porte no arsenal do autor.
Cronista e ser convivente, o viajeiro de
“Estravagários” – estas crónicas belamente poéticas sobre o Alentejo real que
os sonhos perduráveis do autor encenaram – tem parentes perfeitamente
reconhecíveis, ainda que seja seu e muito próprio o estilo que arrola entre o alinhavo jornalístico e o
desalinhavo livresco. São os amantes dos prazeres do espírito – e dos
outros que gostosamente passam pelo corpo e a que alguns, com certa dose de
leviandade, apelidam de transitórios ou baixamente materiais. Em todas as
evocações de NR se sente perpassar uma clara alegria de viver, ainda que
cifrada por alguma melancolia; donde o gosto pela boa mesa, por exemplo, não se
ausenta nunca – e repare-se que aquela expressão vai no sentido lato. O espírito do lugar, que é o das pessoas
que o habitam, é bem palpável com todo o seu manancial de coisas essenciais que
vivem intensamente se tivermos olhos para cheirar, ouvidos para ver e alma para
saborear. Nas crónicas de Nuno Rebocho, colega evidente de Goldoni, Hazlitt,
Cela ou Saroyan, sente-se que as pessoas que recorda e os acontecimentos a que
dá relevo não estão ali como pretextos fantasmais para umas tantas laudas
literatas, mas para habitarem o quotidiano deste seduzido sedutor. Caldeados
pelo pormenor argutamente observado, pelo trecho recortado com ironia, pela
frase incisiva e mediada quantas vezes por uma indisfarçável comoção, cobram
vida relatos donde pode extrair-se um perfume de passados finalmente
refigurados e limpos da escória que o tempo lhes fez adquirir, de coisas e de
momentos que se vão esquecendo e de outros que, embora existindo ainda na hora
que passa, irão ser pasto para esquecimentos futuros.
Com estas crónicas, onde freme um tom
pessoal e que possuem aquele sabor coloquial que a profissão do autor certifica
e esclarece, mediante a maneira
peculiar onde se desenha a sua aposta e o nosso privilégio Nuno Rebocho presta
inquestionável serviço à nossa convivencialidade humana e cultural, à nossa
memória específica de povo e ao nosso aprumo de pessoas que querem lembrar o melhor e o mais alto.
ns
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