Vamos criar uma situação imaginária: numa
certa noite um hortelão de meia-idade, que até aí tratara do seu vergel com
devoção e talento, senta-se numa cadeira de baloiço a um canto do quarto e sem
tugir nem mugir fica ali durante quase três horas, de olhos presos no vazio,
como se meditasse na morte da bezerra ou tivesse levado uma pancada na
cachimónia.
Daí em diante não colhe nenhum fruto: nem as
maçãs firmes e doces, nem as peras com cheiro de moçoila taful, nem os figos e
as laranjas e as cerejas. Nicles. Deixa que umas sequem e as outras bichem, que
estes se engelhem e os outros encarquilhem.
Já estou a ouvir, ali do canto, aquele leitor
que atura os meus escritos a dizer-me com unção:”O gajo está é com uma depressão. Diga-lhe já para tomar uma dose
reforçada de pílulas marretas ou então, na volta, uns cálices de rum “James
Cook”. (Aqui entre nós: é desse que eu gasto).
Nisto das escritas e, muito mais, das
literaturas, há por vezes situações que se assemelham e nos apoquentam: dum
querido amigo do Brasil chega-me a informação de que Ribeiro Couto, o admirável
cronista/ensaísta e não menos excelente poeta de diversos livros para quem lê
com a razão e o coração – quase não é lido ali e está quase esquecido! E não é
o único, com mil bombas!
Ou seja: é como se um Brasil hortelão,
dispondo de frutos de alta qualidade, se pusesse feito catrapuz e não ligasse
importância ao belíssimo pomar.
Mas Ribeiro Couto ainda é lido, ainda é
considerado. A chama ainda brilha e creio que cedo ou tarde voltará a cintilar.
Nomeadamente espevitada pelo amigo a que aludo e decerto muitos amigos mais (ou
seja: por muita, muita gente – que estimaria conhecer).
O excelente cantor de “Entre mar e rio”, de
“Sentimento lusitano”, de “Cancioneiro do ausente”, de contos inspirados e de
ensaios em que se debruçou com pertinácia sobre figuras da cultura portuguesa
não pode cair num esquecimento que, se fere a sua memória, muito mais fere a
qualidade que, pertencendo-lhe, é também herança de todos nós.
E que
dizer do afastamento igualmente estranho que parece atingir os admiráveis Mauro
Mota ou José Paulo Moreira da Fonseca? Há coisas que não consigo perceber, aqui
vos digo à puridade: ainda se o seu estro e o seu verbo não fossem, como de
facto são, dos mais pujantes da escrita brasileira! Como pode solapar-se,
epigrafando ad contrarii alguns operadores
poéticos (como diz com chiste um conhecido meu) cuja prosápia está nos antípodas
da sua potência poética, o autor de “Elegias”, de “O galo e o catavento”, de
“Os epitáfios”; ou o poeta de “Duas Poesias” de “Raízes”, de “Três livros”?
Ainda se fosse em Portugal, onde se festeja
um apepinador marxiano por ser uma pessoa grada do meio autoritário! E onde
muitas vezes as “vitórias poéticas” são futebol de secretaria! Agora no Brasil,
esse país que…Mas vocês já perceberam. Não vou alongar-me, não me vou pôr com
as minhas tiradas de sujeito mal adestrado para assuntos pouco claros…
Aqueles
autores que ali referi estão ligados a três ou quatro tardes felizes do meu como
se diz antigo emprego (Centro de Estudos José Régio) em que, libertariamente,
tive o gosto de passar à máquina de escrever, completinhos da silva e p’ra meu
gáudio e proveito das minhas estantes, livros que já não estavam no mercado mas
existiam no lugar onde tirocinei para aposentado.
E Régio, de certezinha, com um meio-sorriso
maroto espraiado pela manhã da Velha Casa me contemplava, lá do Além, por cima
do ombro num relancear cúmplice que muito me satisfez…
ns
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