quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Um poema de José Carlos Costa Marques

 

Trovoada

 

Baixaram já as águas das primeiras tempestades

de outono, refluíram para o vale e nos deixaram

gravetos, terras desmoronadas, latas e desperdícios

que não conseguimos identificar; o sol dispersa

nuvens de chumbo e enxuga o que resta das chuvas

repentinas; e, entre os destroços, enquanto distraídas

crianças brincam sem que a paz lhe perturbem,

jaz o cadáver de um verde translúcido contra o cimento

de uma pequena rã, seis centímetros longitudinais

há pouco ainda vivos, na perfeita simetria da posição natatória,

pernas flectidas como as nossas se flectem,

inteiro ainda e incorrupto o corpo diminuto e espalmado,

na harmonia de quem pelo charco avança naquele preciso

instante em que o impulso vai, de um salto, levá-la mais à frente.

E o verde translúcido por entre dois ou três matizes desiguais

ali permanece, naquele instante em que a vida já não está

e a podridão não começou, e no entanto se anuncia,

duas ou três formigas afadigadas exploram já as cercanias

e os exércitos numerosos não tardarão a surgir,

em hordas disciplinadas, na sua misericordiosa tarefa de limpeza.

E nós, sobre o cimento, quando as crianças, desatentas,

intensamente se concentram na sua conversa a fingir,

tão verdadeira, nós inclinamo-nos, e uma última

lembrança dedicamos àquele momento vivo de tão verde,

tão igual ao nosso momento breve, e em quem ninguém mais pensou.


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