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A Velhota das Estrelas –
Vendia-as, estrelas de farinha e
açúcar com ervas de cheiro a condimentar, em loja modesta de frutas e legumes
num recanto escuso duma rua improvável. É que se apanhava com o aroma das
laranjas, queijos, nabiças, de repente – pois a lojeca ficava numa curva onde
não se esperava que estivesse. Para mim, contudo, cheiros compensadores,
límpidos para gente que goste de bosques, quintas e hortejos. Hoje a loja
desapareceu, engolida pelos quotidianos desesperados. E, para minha maior mágoa
e ligeira fúria, nem sequer lhe deram sumiço mediante um bar finório ou uma
taberna manhosa - limitaram-se a fechar a grossa porta pintada de castanho. Já
entenderam o porquê da fúria: é que me ficou ali como um cadáver requentado, absolutamente
cegueta e mudo. E, clarete, nem valeria a pena rebentar a porta à patada para,
ao entrar-se, apanhar a adolescência evolada numa das prateleiras vazias.
Mulher de preto, a cara era como se diz um
pergaminho. Não faria êxito num moderno supermercado. Lenço na cabeça, as mãos
grosseiras de quem sabe dosear o doce nos caminhos da vida e nos bolos de
canela, de arroz e nas leves boleimas
ou, como em outros lugares se crismam, enxovalhadas.
Muito calada, um ar grave de pessoa que tivera ou passara mundo. Passara, não
passara – quem lho iria perguntar?
Desapareceu andava eu no fim das
secundárias, que nas primárias a filava manhã sim manhã sim, com os meus
tostões prontos para amendoins e as tais estrelitas,
bolo de canela que ainda hoje move a minha gula saudosa. Escrupulosa nos
trocos, duvido que alguma vez tivesse enganado algum petiz ou graúdo mesmo com
distracções pelo meio. Fiquei-lhe devendo muitos minutos de gozo mastigador. E
a não menor delícia daquele ar bondoso de aia exilada. E um resto impalpável,
um não-sei-quê de desventura ou íntima tristeza. Cá para mim aquilo não era
comércio, era puro destino fixado em dias ora melancólicos ora decididamente
alegres oferecidos de graça, nos dias ensolarados, aos passantes fixos e
descontínuos. E como deixar em escrita aquele silêncio interior, aquele perfume de realidade real que, agora, sei
que gozei nos meridianos da doçaria humilde mediante esses contactos matinais,
pensava eu que fortuitos e já perdidos no tempo?
Hoje já não há por aqui lojas daquelas. A
última que naquele estilo conheci foi uma taberna na rua do Mercado,
transformada ao presente em quitanda com luzes e balcão moderno. Curiosamente,
também gerida nesses outroras por uma velhota parecida no pormenor, de perna
arrastada e trajando de escuro.
Coincidências temporais, quero crer, numa
cidade com viúvas para dar e vender.
O Tio Pequenino - Homem do campo dos seus quarentas/cinquentas,
topava a sua figura pequena e escorreita em todas as Feiras (das cebolas, das
cerejas) e em tudo o que era festa ou romaria (do Bonfim, do Reguengo, da
Sant’Ana, da Ribeira de Nisa, do Senhor dos Aflitos) onde eu me deslocava
canonicamente acompanhando os pais e vizinhos com quem se fraternizava.
Correctamente vestido, muito direito e asseado, notava-se que tinha nos ombros
e nas mãos fortes e calejadas os sóis e os trabalhos da quinta ou da horta, do
romper do dia ao cair da noitinha. Era proverbial, a certa altura, na barraca
dos comes-e-bebes escorripichando com denodo e aprumo o seu tintol acompanhado de viandas delicadas como o costado, a
isca, o peixe frito…
Nunca com ele troquei palavra ou aceno que
fôssem. Nunca soube a sua graça ou a quem pertenceria e em que courelas
granjearia o seu pão. Até um dia, mas já lá vamos. Para mim era apenas, com
toda a velada simpatia interior, o “tio Pequenino” e bastava-me esta alcunha
p’ra meus internos usos. Muito cordial e respeitador, tratava com cortesia,
numa voz suave e campesina, os convivas avulsos. E a sua cara escanhoada e seca
abria-se às vezes num leve sorriso de singeleza. A partir de certa altura,
enquanto eu crescia e passava de infante a adolescente e de adolescente a
adulto, como que deixou de fazer anos. Imutável, sentia-o deslocar-se através
dos tempos como uma presença pacífica e serena. E que alegria eu senti, depois
de ter voltado da loucura da guerra com a inocência feita em fanicos, quando um
dia na Festa dos Aventais topei encostado ao balcão de tábua duma barraca
bendita o meu “tio Pequenino”, que com grisalha convicção atirava a terra uma
sandes de lombo de lindo recorte!
Se a festa era na cidade, digamos a do Senhor
dos Passos, “tio Pequenino” deslocava-se ao Largo da Sé a mercar o seu torrão de Alicante e a sua boa ervilhana
na barraquita posta rés-vés ao edifício dos Paços do Conselho. Sempre composto,
sempre urbano e solitário nas suas andanças todavia comparticipativas. Também o
via às vezes no mercado municipal (um dos meus locais sagrados) falando com
este-aquele hortelão seu companheiro de labutas – mirando este figo, relanceando
aquela meloa, apreciando esta couve…Eu era visto e achado, principalmente nos
sábados, a deambular circulando o edifício da Praça. Coisa que ainda hoje, que
já vivo por bandas vitais muito distantes, é um dos meus grandes gostos. E –
cabeçorra distraída - também era meu
colega na ida à massa-frita, ao santo brinhol
acompanhado pelas canecas de café de cafeteira, fracote mas com um sabor
que nunca mais, minha mágoa, terei na vida…
Ora um dia, passeando de carro (emprestado)
com a família, teria eu uns dezanove anos, o meu primo que guiava fez-nos ir
ter a um lugar que não conhecíamos bem, em busca de um outro parente de raspão,
desses em sétimo grau mas que são indispensáveis. O meu pai desceu do automóvel
e abeirou-se de um murozito de pedra em cujo lado de lá um hortelãozito, tapado
com um velho chapeirão, mourejava ali à beira e perguntou-lhe sobre a morada do
tal parente. O trabucador aprochegou-se, descobriu-se…e era o “tio Pequenino”,
que em frases curtas e apropriadas iluminou a informação. Soube então que era dali que ele partia para as suas
incursões festivas! E sem me dirigir palavra, num diálogo mudo, percebi nos
seus olhos plácidos que também me reconhecera. Foi, durante um segundo, uma
espécie de cumplicidade. Senti que ele pensara: “Olha…este é o tal…”. Que eu, para ele, devia ser o que ele era para
mim – presença sentida aqui e acolá de seres que passam quase ao mesmo tempo
pela Terra irmanados num destino comum de jamais trocarem palavra. Coisas da
sociedade e dos acasos, diria eu.
Mais tarde – já ele começava a
transformar-se numa presença esfumada – desapareceu-me do horizonte. Soube
depois, ao folhear um periódico com a data já requentada, que morrera. A foto
lá estava, era o “tio Pequenino” dos meus tempos de criança transfigurado em
eternidade pela necrologia noticiosa. Ficou-me um nó na garganta, que a morte
tem destes desembaraços: traz de súbito à nossa comoção uma figura de outrora,
como se o olhar se irmanasse com a saudade dos tempos idos. Como, afinal,
cumpre a quem vive, mesmo que virtualmente, como retrato perpétuo e
inesquecível.
ns
in “Retratos
de fantasmas nítidos”
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