quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Nicolau Saião, Dois retratos

 


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A Velhota das Estrelas – Vendia-as, estrelas de farinha e açúcar com ervas de cheiro a condimentar, em loja modesta de frutas e legumes num recanto escuso duma rua improvável. É que se apanhava com o aroma das laranjas, queijos, nabiças, de repente – pois a lojeca ficava numa curva onde não se esperava que estivesse. Para mim, contudo, cheiros compensadores, límpidos para gente que goste de bosques, quintas e hortejos. Hoje a loja desapareceu, engolida pelos quotidianos desesperados. E, para minha maior mágoa e ligeira fúria, nem sequer lhe deram sumiço mediante um bar finório ou uma taberna manhosa - limitaram-se a fechar a grossa porta pintada de castanho. Já entenderam o porquê da fúria: é que me ficou ali como um cadáver requentado, absolutamente cegueta e mudo. E, clarete, nem valeria a pena rebentar a porta à patada para, ao entrar-se, apanhar a adolescência evolada numa das prateleiras vazias.

   Mulher de preto, a cara era como se diz um pergaminho. Não faria êxito num moderno supermercado. Lenço na cabeça, as mãos grosseiras de quem sabe dosear o doce nos caminhos da vida e nos bolos de canela, de arroz e nas leves boleimas ou, como em outros lugares se crismam, enxovalhadas. Muito calada, um ar grave de pessoa que tivera ou passara mundo. Passara, não passara – quem lho iria perguntar?

   Desapareceu andava eu no fim das secundárias, que nas primárias a filava manhã sim manhã sim, com os meus tostões prontos para amendoins e as tais estrelitas, bolo de canela que ainda hoje move a minha gula saudosa. Escrupulosa nos trocos, duvido que alguma vez tivesse enganado algum petiz ou graúdo mesmo com distracções pelo meio. Fiquei-lhe devendo muitos minutos de gozo mastigador. E a não menor delícia daquele ar bondoso de aia exilada. E um resto impalpável, um não-sei-quê de desventura ou íntima tristeza. Cá para mim aquilo não era comércio, era puro destino fixado em dias ora melancólicos ora decididamente alegres oferecidos de graça, nos dias ensolarados, aos passantes fixos e descontínuos. E como deixar em escrita aquele silêncio interior, aquele perfume de realidade real que, agora, sei que gozei nos meridianos da doçaria humilde mediante esses contactos matinais, pensava eu que fortuitos e já perdidos no tempo?

  Hoje já não há por aqui lojas daquelas. A última que naquele estilo conheci foi uma taberna na rua do Mercado, transformada ao presente em quitanda com luzes e balcão moderno. Curiosamente, também gerida nesses outroras por uma velhota parecida no pormenor, de perna arrastada e trajando de escuro.

  Coincidências temporais, quero crer, numa cidade com viúvas para dar e vender. 

 

O Tio Pequenino -  Homem do campo dos seus quarentas/cinquentas, topava a sua figura pequena e escorreita em todas as Feiras (das cebolas, das cerejas) e em tudo o que era festa ou romaria (do Bonfim, do Reguengo, da Sant’Ana, da Ribeira de Nisa, do Senhor dos Aflitos) onde eu me deslocava canonicamente acompanhando os pais e vizinhos com quem se fraternizava. Correctamente vestido, muito direito e asseado, notava-se que tinha nos ombros e nas mãos fortes e calejadas os sóis e os trabalhos da quinta ou da horta, do romper do dia ao cair da noitinha. Era proverbial, a certa altura, na barraca dos comes-e-bebes escorripichando com denodo e aprumo o seu tintol acompanhado de viandas delicadas como o costado, a isca, o peixe frito…

  Nunca com ele troquei palavra ou aceno que fôssem. Nunca soube a sua graça ou a quem pertenceria e em que courelas granjearia o seu pão. Até um dia, mas já lá vamos. Para mim era apenas, com toda a velada simpatia interior, o “tio Pequenino” e bastava-me esta alcunha p’ra meus internos usos. Muito cordial e respeitador, tratava com cortesia, numa voz suave e campesina, os convivas avulsos. E a sua cara escanhoada e seca abria-se às vezes num leve sorriso de singeleza. A partir de certa altura, enquanto eu crescia e passava de infante a adolescente e de adolescente a adulto, como que deixou de fazer anos. Imutável, sentia-o deslocar-se através dos tempos como uma presença pacífica e serena. E que alegria eu senti, depois de ter voltado da loucura da guerra com a inocência feita em fanicos, quando um dia na Festa dos Aventais topei encostado ao balcão de tábua duma barraca bendita o meu “tio Pequenino”, que com grisalha convicção atirava a terra uma sandes de lombo de lindo recorte!

  Se a festa era na cidade, digamos a do Senhor dos Passos, “tio Pequenino” deslocava-se ao Largo da Sé a mercar o seu torrão de Alicante e a sua boa ervilhana na barraquita posta rés-vés ao edifício dos Paços do Conselho. Sempre composto, sempre urbano e solitário nas suas andanças todavia comparticipativas. Também o via às vezes no mercado municipal (um dos meus locais sagrados) falando com este-aquele hortelão seu companheiro de labutas – mirando este figo, relanceando aquela meloa, apreciando esta couve…Eu era visto e achado, principalmente nos sábados, a deambular circulando o edifício da Praça. Coisa que ainda hoje, que já vivo por bandas vitais muito distantes, é um dos meus grandes gostos. E – cabeçorra distraída -  também era meu colega na ida à massa-frita, ao santo brinhol acompanhado pelas canecas de café de cafeteira, fracote mas com um sabor que nunca mais, minha mágoa, terei na vida…

   Ora um dia, passeando de carro (emprestado) com a família, teria eu uns dezanove anos, o meu primo que guiava fez-nos ir ter a um lugar que não conhecíamos bem, em busca de um outro parente de raspão, desses em sétimo grau mas que são indispensáveis. O meu pai desceu do automóvel e abeirou-se de um murozito de pedra em cujo lado de lá um hortelãozito, tapado com um velho chapeirão, mourejava ali à beira e perguntou-lhe sobre a morada do tal parente. O trabucador aprochegou-se, descobriu-se…e era o “tio Pequenino”, que em frases curtas e apropriadas iluminou a informação. Soube então que era dali que ele partia para as suas incursões festivas! E sem me dirigir palavra, num diálogo mudo, percebi nos seus olhos plácidos que também me reconhecera. Foi, durante um segundo, uma espécie de cumplicidade. Senti que ele pensara: “Olha…este é o tal…”. Que eu, para ele, devia ser o que ele era para mim – presença sentida aqui e acolá de seres que passam quase ao mesmo tempo pela Terra irmanados num destino comum de jamais trocarem palavra. Coisas da sociedade e dos acasos, diria eu.

   Mais tarde – já ele começava a transformar-se numa presença esfumada – desapareceu-me do horizonte. Soube depois, ao folhear um periódico com a data já requentada, que morrera. A foto lá estava, era o “tio Pequenino” dos meus tempos de criança transfigurado em eternidade pela necrologia noticiosa. Ficou-me um nó na garganta, que a morte tem destes desembaraços: traz de súbito à nossa comoção uma figura de outrora, como se o olhar se irmanasse com a saudade dos tempos idos. Como, afinal, cumpre a quem vive, mesmo que virtualmente, como retrato perpétuo e inesquecível.

 

ns

in “Retratos de fantasmas nítidos”


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