quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Resposta de NS ao questionário a circular na net

 


Alfonso Bonifacio



     Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?

    

    Posso escolher três? Aí vão: “O homem da montanha” de Dino Buzzati, “As minas de Salomão” de Ridder Haggard - mas não na tradução (incompleta) revista pelo Eça, que é à portuguesa curta - com as encenações duma rota para todas as viagens: ”Fui-me deitar. E levei toda a noite a sonhar com o deserto, diamantes e animais ferozes e com o infortunado aventureiro morto de fome nas vertentes geladas dos montes Suliman” e as páginas marcadas a fogo de “O pássaro pintado” de Jerzy Kosinski.

 

    Já alguma vez ficaste apanhadinho por uma personagem de ficção?

 

     Sim, por várias: o Axel Munthe de “O livro de San Michele, o sir Charles Ravenstreet de “Os mágicos” de J.B.Priestley, a mrs. Dolloway de Virgínia Woolf, o Herbeleau de Jean Husson… E porque não o Danny April de Bill Ballinger, na sua busca desesperada da pureza e do amor absoluto no magnífico thriller “Versão Original”?

 

Qual foi o último livro que compraste?

 

     Foram quatro e não um – e todos em espanhol (há já muito tempo, por uma questão de “localização”, que não compro livros novos em língua portuguesa, essa tarefa está agora reservada a um dos meus filhos): “El viaje de Simbad” de Tim Severin, roteiro muito real (as costas do Malabar… as terras de Oman…) construído sobre os mapas do ficcionado aventureiro árabe; o “Dalí” de Lluís Llongueras acabadinho de sair na Ediciones BSA; o “Mentiras fundamentales de la Iglesia Católica”, uma análise séria e competente de Pepe Rodríguez também na BSA; as “Prosas” de Cláudio Rodriguez, onde se arrolam em menos de 300 páginas (é o suficiente…) tudo o que o grande poeta nos deixou – e, como que fazendo parte do pacote, as suas “Poesias” oferecidas na horinha…

 

     Qual o último livro que leste?

 

     “Os grandes cemitérios sob a Lua” de Georges Bernanos.

 

Que livros estás a ler?

 

     Como leio/releio vários ao mesmo tempo posso dizer três? “Os filhos do capitão Grant”, de Verne; “A costa das Syrtes”, de Gracq; “A vida essa aventura” do grande biólogo Jean Rostand.

 

     Que livros (cinco) levarias para uma ilha deserta?

 

     Depois de meditação algo aturada: “A ponte sobre o Drina” de Ivo Andric, tributo ao real, ao sonho e à sua mútua interpenetração; “Alain Decaux raconte” - tributo à História, para não perder o continente; “A montanha mágica” de Mann, tributo ao exactamente porque sim; “Os triunfos de Eugène Valmont” de Robert Barr, para manter na ilha o champanhe gelado; e “En compagnie des vieux peintres” de Léo Larguier, para saber ver o horizonte enquanto esperava o barco que me levaria definitivamente de regresso.  

    (Passado sob as barbas dos guardas-marinhas, o “Diário” do Amiel na edição velhinha - a mais completa - da Stock…).


A quem vais passar este testemunho e porquê?

 

     Ao Floriano Martins da “Agulha”, porque Fortaleza também é a minha debilidade.


Paul McCartney, For no one

 



segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Para um minuto de meditação - 128

 

PARA QUE A TERRA NÃO ESQUEÇA…




   Por oportuno e lúcido transcrevemos, com vénia ao seu autor, este texto de João Pedro Pimenta, que se debruça com propriedade sobre a figura do estadista e democrata luso recentemente desaparecido.

  Nota adenda - Os de muitíssimo boa memória talvez recordem que, por decisão ética tomada naquela altura, fiz parte da Comissão de Honra (Portalegre), da candidatura de Jorge Sampaio à presidência da República. Refiro ainda que o mesmo, já presidente, galardoou Mário Cesariny com a Ordem da Liberdade – tendo-se deslocado a sua casa, onde ele se encontrava doente, para lhe entregar o colar honorífico.

  Foi pouco depois desse acto – quando tal entrou no noticiário e conhecimento nacional - que alguns turiferários ditos “esquerdistas” bolsaram inanidades contra a acção e contra o Poeta, chegando um deles, notório estalinista e semi-intelectual, a referir que a distinção não devia ter sido outorgada a alguém que ele descrevia de forma aqui irreproduzível – o que dá bem o nível rasteiro e obsceno de quem assim falava.

ns



Ainda sobre Jorge Sampaio, já quase tudo se disse, de bom, sobretudo, e de mau, bem menos, e merecido. Mas gostaria de acrescentar um ponto sobre o político que pela postura, carreira e até a cor do cabelo poderia perfeitamente ser um parlamentar trabalhista britânico. Acerca do momento mais polémico da sua presidência, a nomeação de Santana Lopes e a dissolução do Parlamento seis meses depois, convocando as eleições que depois dariam o poder a Sócrates, relembro que apesar das críticas que a direita lhe teceu então, ficaram ainda assim aquém das que a esquerda lhe disparou ao decidir convidar Santana a formar governo. Provavelmente a maioria acha hoje que ele faria melhor em convocar logo eleições (e o PSD em escolher a então segunda figura do governo, Manuela Ferreira Leite, para o liderar, quatro anos do que sucedeu mais tarde).    

   Mas decidiu não o fazer e com isso atraiu a fúria da esquerda. Ferro Rodrigues demitiu-se da liderança do PS nesse mesmo dia, indignado com a decisão presidencial. Saramago disse que "a democracia acabara em Portugal". Francisco Louçã retorquiu que era "o princípio do fim do 25 de Abril". Na festa do Avante desse ano usaram-se t-shirts anti-Sampaio. E como na noite seguinte, precisamente, morreu de súbito Maria de Lurdes Pintassilgo, não faltou quem dissesse explicitamente que tal se deveria ao desgosto da decisão de Sampaio. Em suma, provavelmente nunca nenhuma figura da esquerda (nem da direita) portuguesa atraiu tanto os ódios do seu espectro político como Jorge Sampaio.    

   Curiosamente, muitos destes correligionários aplaudiram dez anos depois a constituição da "geringonça", que, tal como no governo Santana, se baseava numa maioria parlamentar.

   Que o "cenoura", como carinhosamente lhe chamavam, descanse em paz.


Dois poemas de José Carlos Breia

 


Nikos Ghika



O NOVO ALADINO

 

Se tivesse uma lâmpada

como tinha Aladino

que iria eu fazer para Pasárgada?

 

Ser amigo de rei

tem desvantagens.

 

Não precisava de um rei

para escolher a cama desejada

e nela a mulher

com quem bulisse.

 

Primeiro,

queria uma casa com relvado,

entre campo e praia,

sem vizinhos amáveis

que são uma chatice.

 

Amigos

isso sim

quantos quisessem vir.

Mas nunca mais de dois

de cada vez.

 

Queria

uma cama de água

com comando,

para sentir a calma das lagunas

a lua das marés

e dos riachos

o sussurro fresco.

 

A mulher é que era o drama:

 

olhos que falassem fundo,

esguia e louca

feita malagueta,

frescura de água de coco

e o doce da carambola.

 

Mas nada de escravatura.

 

Nua ou velada,

só viesse

quando o ritmo lhe pedisse

ou a isso fosse levada.

 

E pouco mais queria.

 

Escrever por acaso.

A melodia

do meu galgo solto.

E, na iridiscência

do meu copo

o reflexo inquieto

da memória.

 

 

A  CASA

 

No caminho

olho as janelas

donde já ninguém espreita

e as portas

a que só o vento bate.

 

O homem

levantou as paredes,

pôs as telhas,

e por baixo do fumeiro

a pedra do fogo

e a panela de ferro.

No canto mais escuro

escondeu a cama

onde dormia

e fazia os filhos.

Arroteou a terra,

fez a horta

e mais tarde a cerca

onde o porco

chafurdava os restos.

Dos filhos, muitos,

só ficaram dois:

um áspero e rude

a quem o pai deixou as cabras

e outro que cedo morreu.

Os restantes perderam-se

por oficinas, fábricas,

áfricas, que a imaginação debulhava

em frutos, terras úberes

e o bronze das mulheres.

O último deixou a casa

a que nada o prendia.

 

No silencio que só os ratos roem

pairam fiapos do riso

que a madeira range,

das lágrimas

que ressumam das paredes.

Apodrece o esqueleto.

Vai ruindo           

a velha casa. 

 

Já ninguém se lembra

de quem lá vivia.

 

Do livro “Outro Lado”


Nicolau Saião, Evocando Travanca Rego, a 80 anos do seu nascimento

 


Iberé Camargo



1. Encontrei-me com J.O.Travanca-Rego, pela primeira vez, no decorrer da inauguração duma exposição colectiva de obras de alguns pintores alentejanos – uns vivos, outros já falecidos – que organizei em Portalegre com o apoio do sector cultural dessa época do município desta cidade.

   Já de há certo tempo nos carteávamos. Quem nos pôs em contacto foi o José do Carmo Francisco, que aliás me mandara poemas dele para um suplemento elvense que eu então orientava, o “Miradouro” do defunto Notícias de Elvas.

  Assim que lhe li os versos de imediato me dei conta que não estava ali uma voz de vulgar amenidade. O mesmo que senti quando pela vida fora tenho estado a contas com outros autores que muito estimo: ele sabia o que dizia, quando o dizia e como o dizia. Não era (não é) e creio que não será por muitos anos e bons, um autor de lugares simétricos carreados por um talento urbano e suave. Em Travanca-Rego há o espanto, a garra, o meditar de muitos mistérios que na poesia e pela poesia se consubstanciam. E, no entanto, existe paralelamente uma harmonia que nos seus momentos mais altos nos comunica a certeza de que no seu discurso, na sua linguagem, tudo faz o verdadeiro sentido e é dotado de um padrão interior votado à permanência no tempo.

    “A pena valerá que mais palavras/ suportem a voz nua a (des)dizer-se/ como selámos todos – enigmáticos - / uma dúvida perante o indizível?”, diz-nos ele nos versos iniciais de “Comunicação”, o terceiro poema do seu “Sinais: 15 poemas de sideração e saudade”.

   Siderado e saudoso do que não se sabe definitivamente, me parece ter sido o tónus poético deste autor. Interrogativo e em certos casos crepuscular, em Travanca-Rego há como em muitos outros – mas nele com a acuidade dolorosa que o seu passamento veio confirmar – uma amargura filha dum espanto e duma melancolia abertos à procura, contudo, de novos ritmos e da maneira de dizer mais exacta, mais real e adequada aos diversos momentos daquilo que se sente e por isso se descreve. Descrição, comunicação… No fundo, doação de descobertas, de universos que se encontram no percurso que mal ou bem o poeta efectua quotidianamente a despeito das suas mágoas e das suas alegrias, ou para dizer doutra forma: os poemas que encontram a sua existência nessa escrita que se fornece a todos para que a leiam e assim revelem o mundo - que em todos vive, mas que o poeta encarnou.

   Diz ele em “Ilha”, arrolado em “Cinco Incisões”: “Deixa-me contar o tempo/ pelos nós dos dedos. Nesta ilha,/ nem estrelas nem uma árvore!”. Mas o poeta efectua a religação mediante os poemas, as palavras que articula ainda que algo o destroce ou, melhor, tente destroçar-lhe o sentido do que cria. Travanca-Rego, sendo um autor de clara vocação lunar, nocturna e aforística, não se compraz nesse mergulho, não se recreia na convulsão: o que ele tenta é efectivamente encontrar uma medida para que esse caos seja reordenado e se extinga como tal, passando para o lado solar das propostas de vida plenamente erguida: “Grão de trigo,/ feitio de um ventre:/ Um planeta/ te habita?”, pergunta ele na primeira quadra do pequeno texto “Intimidade(s)” de “Extracto sensitivo”. Ou seja: o universo contido num pequeno elemento da vida vegetal, o que está no alto tornando-se igual ao que está em baixo como na Tábua alquímica da tradição e da sageza.

   Travanca-Rego soube pesquisar o mistério, assim tentou devassar o segredo da esfinge. Perplexo ante os enigmas cumpriu contudo a sua íntima tarefa, se alguma tem o poeta.        

    Pôde, portanto, afirmar num trecho do seu “Sentido sexto”: “Onde habitasse o desespero alheio,/ deveria ter construído a minha casa!/ - Onde habitasse um pássaro sem asas/ pedindo uma árvore ou um veleiro ou/ pedindo simplesmente/ a mão do vento que sob o seu corpo/ - a afogar-se de mágoa -,/ transformasse em Espaço/ o seu canto em mágoas prisioneiro!

 E não é este, para um autor, um profundo projecto de vida que completamente nos reivindica de pé perante a morte?

 

2. Durante os sete dias que antecederam o seu falecimento, Travanca-Rêgo fez-me três telefonemas.

    No último contacto que comigo estabeleceu, dois dias antes de partir, pareceu-me deprimido, com algo indefinível a limitar-lhe a comunicabilidade. Vinha perguntar-me se recebera a carta contendo um poema para a antologia sobre Abril, organizada por um confrade a quem servi de intermediário e, depois, de co-prefaciador. Mostrava-se um pouco ansioso, como se temesse que os irregulares e frequentemente desrespeitadores correios lusitanos da época lhe frustrassem o intento.

   Quando lhe referi que sim senhor, recebera o envelope, que gostaria de o ver e, para o dispor melhor, me dispunha mesmo a ir buscá-lo a Vila Boim, para em Arronches ou Portalegre degustarmos umas especialidades da região e conversarmos até às tantas, senti que se comovera. Respondeu-me, com um travo ameno na voz, que teria muito gosto nisso, mas andava a sentir-se mal. Eram incómodos no corpo e no espírito. Insisti em que o meu propósito, francamente lho confessava, era contribuir para as suas melhoras. Estava ele disposto a entrar nessa jornada? - tornei eu.

  Em vão. Não que não lhe fosse agradável tal passeio mas...não se sentia nada bem.

  À guisa de consolo, intuí, informou-me que estava praticamente pronta a estruturação do bloco específico que seria inteiramente preenchido com poemas meus - a dar a lume na Revista de Elvas, de propriedade municipal e que ele coordenava com Fernando Guerreiro.

   Recomendou-me com alguma insistência que procurássemos que o poema saísse, quando saísse, sem quaisquer gralhas. “É um poema complexo...Tem aquelas recorrências... Veja lá isso, está bem?”.

   Nos dois anteriores telefonemas preocupara-se com o andamento do “Fanal”, o suplemento de que era colaborador e que saiu durante três anos no “Distrito de Portalegre” e que posteriormente, por constrangimento da administração, foi suprimido. Informou-se também sobre o caso em que tivera parte, um processo contra três difamadores que nos haviam enxovalhado numa folha portalegrense.

   Dê-lhe a informação que me pedia, tentando pelo meio alguma ironia fraternal.

   A sua morte, comunicada de supetão, foi para mim uma dolorosa surpresa. Lá o fui acompanhar ao cemitério de Vila Boim.

   Estava um dia de calor atabafante. O ambiente, para além da tristeza habitual em ocasiões assim, era soturno – um ambiente de pequena vila do Alentejo profundo e sem muitos horizontes.

   Durante vários dias aquelas horas que constituíram os funerais do poeta pesaram em mim como algo de irreal e de absolutamente não desentranhável.


Chuck Berry, C'est la vie

 



quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Para um minuto de meditação - 127

 



   4716 livros foram destruídos no Canadá numa cerimónia denominada “purificação pelo fogo”. Há anos que as bibliotecas do Canadá são alvo de políticas censórias. Em nome da igualdade, dos direitos e das identidades vão-se retirando títulos. Do Tintin ao Astérix acabou tudo devidamente passado pelo fogo.

   As purificações pelo fogo dos livros terá começado em 2019 mas a pandemia suspendeu-as. Agora voltaram em grande e para recuperar o tempo perdido: quase 5 mil livros foram queimados no Ontario, nas 30 escolas francófonas que integram o Conseil Scolaire Catholique Providence. Uma das Torquemadas destas fogueiras é a senhora que se vê na imagem ao lado do primeiro-ministro do Canadá. A senhora em causa é Suzy Kies que se apresenta como uma guardiã do saber autóctone e presta os seus serviços em diferentes instituições.

(Dos jornais)


   Tal como na Alemanha de Hitler, estas gentinhas fazem o mesmo. Sem rebuços, sem vergonha ou noção de que estão a imitar os nazis. Ou porque, na verdade são eles mesmos proto-nazis que se desconhecem, com pretexto politicamente correcto? Não são apenas gente boçal e prepotente, mas realmente fanática. Lê-se-lhes no rosto a palermice atrevida. A isto chegámos!

Mendonça de Castro


   Não admira que esta dupla sorria desvanecida de forma alvar. Este Trudeau é um dos mais fúteis políticos ocidentais, capaz de todas as manobras deste género. Quanto à senhora, é um exemplo do que pode a ignorância beata e a estreiteza de caracter ao serviço do mais acabado reacionarismo.

Regina Lopes


  Estes actos, sendo do mesmo estilo mas mais graves que as aleivosias da Joacine que quer retirar pinturas duma sala da Assembleia da República, são verdadeiramente repugnantes e credores da nossa mais viva repulsa e indignação.

Jorge Mira


Dois poemas de Gérard Calandre

 


Velasquez



SOBRE UM QUADRO DE VELASQUEZ

 

Em vida tinhas tudo, menos a morte.

Agora, estás completo. Em figura

em pedaços dispersos nos muitos olhos

que te visitaram já no esquife

ou através dos séculos. Completo

como um risco no céu, ou um canto

que alguém entoa ao amanhecer. Completo

como a tinta    o escuro    a própria madeira

Toada pouco a pouco desfazendo-se.

O teu quarto, a tua roupa, os gestos

que fizeste durante a pose destinada

vivem no mundo por detrás de ti

no mundo que ora há ora não há por detrás de ti 

Desaparecem. E na rua

que o pintor calcorreava todos os dias

existirá ainda a tua memória

uma interrogação, talvez uma dúvida?

 

A prova é que não falas, ou então tudo dizes

Leve rasto de fumo inscrito nos anos perdidos.

 

 

VESTÍGIOS

 

Na Rua do Touro, ao pé das escadinhas

que antecedem a grande descida da praça do Tribunal

entrei por uns minutos no livreiro-antiquário

Às vezes vejo-me ali como que em séculos passados

Palaciano se calhar aproximo-me com a boca aberta

Restos de sono vontade louca de ler    comichão

E diz-me o proprietário nos seus tempos um belo compincha

E ao dizer-me, não vou repeti-lo, mostra-me uma folha de papel

não de árvore verbena teixo das Índias eucalipto

Era um manuscrito de Manzonni

Só deus sabe como lhe teria ido parar às mãos

A letra muito firme as ideias límpidas um ar de quem

lavava as mãos simpaticamente depois de obrar

Tudo se conjuga

Tudo se irmana mesmo em casos particulares

linhas interseccionando-se quebradas abatidas

de rostos de passos que se perderam de motivos

Uma escrita articulada entre si e rigorosa

obedecendo bem a leis exactas e ao eventual aparo

 

Pouco depois no Café olho algumas folhas onde tracei

afirmações, ou dúvidas, ou restos de música retórica piolhenta

perdão um solfejo de palavras que afinal me dizem muito

letra mal acabada que pena um pouco rasca

emendas riscos agudos e graves    e o papel amarfanhado

 

Por vezes seremos obrigados a escrever dissonâncias

mas faz favor    não tenho o jeito dos séculos

o amplexo    mesmo a lisura    e isso me custa

Neste debate gramatical a que eu mesmo presido.

 

do livro VESTÍGIOS

Editora Nephelibata, São Paulo (Brasil)

Tradução de ns


Nicolau Saião, In Memoriam

 

SOBRE A POESIA DE ANTÓNIO JOSÉ FORTE



Constantine Andreou



  Dizia Ernesto Sampaio em “A única real tradição viva” que “É esta a orla de um tempo onde todo o pensamento grande e rigoroso vai dar ao Inferno”. Noutro continente, por seu turno, referia Chesterton que “Todo o encadeamento de palavras leva ao êxtase, todos podem levar ao país das fadas”. É pois entre florestas e sombras inquietantes ou surpreendentes que se movem as vozes dos Poetas, uma vez que a razia social, se acaso consente a maravilha, muito mais desejaria essas vozes perenemente sob um sol negro de amargura. Nestes tempos do fim como lhes chamou André Coyné, a Poesia move-se com dificuldade e é deslocando-se entre Sila e Caribdis que a nave poética busca chegar a bom porto.

   Não tenhamos ilusões: o Poeta que o é e não simples abonador de prestígios em verso para maior glória dos seus donos, tem sempre pela frente a insídia das horas do quotidiano vigiado – mesmo sendo homem de paz – da intolerância social das aparelhagens sediadas nos polos onde a avidez, o interesse orientado, a mesquinhez, a corrupção judicial e a fraude pública ditam as suas leis.

   Para os que persistem em opor aos desvigamentos sociais do dia-a-dia uma palavra alta e clara, já Gilbert Proteau nos esclareceu qual o destino mais provável: a corda, o punhal, o garrote, as difamações geralmente impunes, o calabouço e, nos casos mais suaves, a marginalização. Aos que acaso escapam, resta em geral uma vida de dificuldades que, entre nós, se cifra na “apagada e vil tristeza” dum mundo que não pode e não quer consentir a liberdade luminosa de ser-se “profeta e aedo num país onde só querem que haja lapuzes e vilões”, para citar Manuel Carreira Viana.

    A poesia de António José Forte, falecido em meados de 1989, ilustra de maneira perfeita o trajecto de quem não cede e persiste em procurar a casa encantada em cujo telhado crescem floridas excrescências carnosas, o “palácio ideal” que Cheval levou à prática e tantos outros tentam erguer ora aqui ora ali, entre bosques primordiais e estranhas muralhas de granito.

   Desde o seu primeiro livro “Trinta noites de insónia de fogo nos dentes numa girândola implacável” até aos poemas finais dados a lume na Editorial Estampa, passando pelo texto que tinha como personagem nuclear Daniel Cohn-Bendit vindo a público na revista “Grifo”, imediatamente retirada de circulação pela PIDE (a kgb portuguesa) que impediu a publicação de novos números, sente-se perpassar uma grande inquietação temperada, todavia, pela ternura dos seus melhores momentos. As imagens encadeiam-se de forma inusitada, sempre muito próximas de um “real absoluto” que punha em destaque o amor e o conhecimento do mundo onde as figuras estendiam salutarmente de mão em mão os objectos comuns como um cigarro ou uma chave.

    Lembro, das conversas havidas ao velejar dos minutos ao fim da tarde ou já na noite colectiva, o interesse que Forte tinha pelos grandes mistérios da existência (pirâmides de Tenochtitlan, as construções desenhadas na planície desértica de Nazca…) e, em contraponto, os enigmas contidos na existência quotidiana habitual, que lhe pareciam ultrapassar os outros em fascínio e estranheza. Esse quotidiano onde ele “passasse a fumar/ e o fumo fosse para se ler”.

    A poesia de António José Forte foi-me dada pela primeira vez a ler por Donato Faria, seu companheiro de emprego nas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, numa das nossas habituais reuniões (já Forte saíra de Portalegre para ir trabalhar na Casa mãe) na pensão da Rua 31 de Janeiro, frente à taberna Capote e cujas janelas de terceiro andar deitavam para o Largo da Sé – sempre repleto de gente, principalmente rapazes e raparigas alunos da Escola do Magistério Primário, nesses anos em que a cidade não mergulhara ainda na desertificação que hoje a caracteriza em geral e no casco histórico em particular.

   Foi ali que este me mostrou os “Cadernos Pirâmide” da responsabilidade de Carlos Loures e Máximo Lisboa. Era a segunda vaga surrealista, que trazia nela autores como Manuel de Castro, o magnífico poeta de “Estrela Rutilante” que teria como pares, no desenho e na pintura, as explosões singulares de Mário Botas e José Escada, posto que actuassem por outras bandas.

   Mergulhando inelutavelmente no sonho de todas as horas, interiores e exteriores, a poesia surrealista desses tempos, seguidos logo de outros onde mais autores se forjavam, forçava por libertar-se dos enleios do hábito, do conformismo imposto por condottieri exteriores, geralmente literatos subidos ao poder administrativamente e nele mantidos pelos mandantes dentro e fora dos órgãos de comunicação e das estantes desses lugares de massacre que demasiadas vezes são os “estabelecimentos de ensino” de alto coturno. E em que o lirismo, mais que ser apenas “um epigonismo da prisão de ventre” como Cesariny dizia com justa ferocidade, seria luz revelada na noite geral.

    O lirismo de Forte, separado – por uma brusca mutação interior – daquele que ainda hoje se expande em revoadas de folhas propiciadas por tanto vate de ocasião (ou, o que ainda é pior, por operadores de safada carreira cimentada por áulicos), aspirava à realidade, essa realidade outra (surrealidade) em que as mãos, por exemplo, já não são objectos para prender os movimentos alheios mas sinal palpável de fraternal sabedoria alcançada, pomo finalmente liberto abrindo fulgores diferentes e mais autênticos.

   Contra a quinquilharia que frequentemente fere o viajante, a sua poesia é susceptível de criar em quem a lê um apetite de melhor e menos banal. A sua adjectivação, que nunca bordeja as margens do efémero ou do destrambelhadamento pseudo-original, que nunca reside e se deixa cair na redundância pretensiosa mas é antes um sublinhar de adequadas iluminações, faz passar de estrofe para estrofe símbolos que extinguem a inutilidade das escritas que acatitam a leitura.

    Dizia Étienne de Sénancour: “O homem é perecível; pode ser…Mas pereçamos resistindo e se, ao fim, o que nos espera é o vazio e o nada façamos com que isso seja uma injustiça”. A poesia de António José Forte, que permanece nos nossos ouvidos e na nossa cabeça muito depois de ser lida, ilustra de forma soberana como é possível lançar, aos deuses programados e programadores, o grande desafio dos que sabem ser e dar-se a si mesmos como penhor de que não foi em vão a passagem dum Poeta pelas planícies do tempo destroçado.


Folclore russo, Troika (balalaika)

 



segunda-feira, 13 de setembro de 2021

ÚLTIMA HORA

 






FALECEU MANUEL FERREIRA PATRÍCIO

  No Hospital de Elvas, onde se encontrava internado há alguns dias, faleceu o nosso confrade Professor Manuel Patrício, que entre outros cargos foi antigo Reitor da Universidade de Évora. catedrático jubilado da Universidade de Évora e Doutor Honoris Causa pela Universidade do Porto.

  Ensaísta e pensador, nasceu na vila de Montargil em 1938. Homem de interesses culturais multidisciplinares, além de ter criado a Escola Cultural dedicou-se também à música, tendo sido  Maestro do Coro da Academia de Amadores de Música, a convite de Fernando Lopes Graça, em 1965; Maestro da Tuna Académica do Liceu Nacional de Évora (1967-1972); Fundador e maestro do Pequeno Conjunto de Câmara do Liceu Nacional de Évora (1968-1972); Maestro do Orfeão de Estremoz Thomaz Alcaide, entre 1973 e 1984; Fundador e Maestro do Coral da Universidade de Évora (11 de Abril de 1983), que dirigiu até 1987 e Fundador do Grupo de Metais da Universidade de Évora, em 2003.

   Referência fundamental no domínio da Educação, Pedagogia, Filosofia e Cultura em Portugal e profundo estudioso da Obra de Leonardo Coimbra, foi autor de numerosas publicações, versando temas da sua especialidade e dos seus interesses culturais, publicadas em revistas científicas e culturais e em jornais nacionais e regionais, e de cerca de duas dezenas de livros, como atesta o seu vasto curriculum vitae. Fundou e dirigiu as revistas “Inovação” (1988-1999), “Escola Cultural” (1992-1994), e “Revué” (2004-2005) e dirigiu as revistas “Noesis” e “Educação e Liberdade” (1989-1990).

  Também interessado pelo cinema, tivemos ensejo de o conhecer aquando da jornada de Estudos Cinematográficos de Sintra/76, orientada por José Vieira Marques, estabelecendo então relações de amizade prolongada pelos anos.

  À sua família, endossamos sentidos pêsames pelo confrade desaparecido no dia 11 do corrente.

ns


Para um minuto de meditação - 126

 

JÁ NÃO HÁ PACIÊNCIA PARA OS JOGOS DE MARCELO


Portugal é um país onde os cidadãos são tratados como crianças, onde ninguém responde ao essencial e onde o Presidente da República, em vez de meter ordem nisto, investe em intrigas e jogos políticos.

(Dos jornais)


    Mas estavam à espera de quê? Que este notório malabarista, o famigerado “Maquiavel à moda do Minho”, como que num passe de mágica passasse a ser um estadista em vez de ser um entertainer caricatural? Inteligente sim, mas um manobrador com uma ética de fugir. Quando o cansaço abrir os olhos aos portugueses, vai sair não odiado mas desprezado. Os senhores deste género é isso que merecem.

António Moreira


   De facto, Marcelo continua a ser um comentador, tal como, aliás, Marques Mendes continua a ser um político. E ambos fingem ser outra coisa, querendo fazer de nós parvos. Que somos. Pois só um povo parvo poderia ter como principais figuras políticas o Habilidoso e Marcelo, que não são mais do que jogadores exímios de política rasteira e que fazem de Portugal o seu tabuleiro de jogo e dos portugueses os seus peões.    

   Aparentemente, estes jogadores rasteiros continuam a ser os preferidos dos portugueses, numa atitude masoquista que é difícil de compreender. A hibernação da oposição será uma razão, claro. Mas não explica tudo. Sermos constantemente manipulados pela falta de valores, pela propaganda ilusória e pelo cinismo desta dupla pouco-sertaneja é sinal de que adormecemos e de que nos conformámos com a queda abrupta da qualidade da nossa democracia. É gente que vive numa impunidade total. Que sente que não precisa de prestar contas nem dar satisfações. Basta olhar para o insuportável Cabrita e o encobrimento do Habilidoso e de Marcelo, cuja magistratura de influência é uma ficção.

André Ondine


Dois poemas de José Carlos Costa Marques

 


Paul Burlin



LIRA


O preço que se paga é este: ninguém,

Na língua onde nascemos, esta palavra

Profere. Prece aos deuses, punhal que crava

Na pomba e no cordeiro, e o sangue tem

 

Para o sacrifício. Ou então, o que retém

O mistério iniciático, ou ainda a lavra

Fecunda aberta onde dos cereais a mãe

Extrai a virgem que a nada responde, cabra

 

Que nenhum bode cobre, mas cujos pés

Nosso destino são – doce, suave, embalador,

Mas cuja verdade se revela de través.

 

Hino de amor e espuma, hino de dor,

Tragédia e trevas que a esfinge fez.

Enigma e luz, irrespondível clamor.

 

           

METEOROLOGIA


Vento forte na faixa ocidental,

A pele o capta, a ciência o mede.

Os sentidos são o que o corpo pede,

A razão, transviada, perde-se no mal.

 

Investiguemos, e negaremos os sentidos.

Sintamos – e a razão é fútil.

Filosofia busca a teia inconsútil

Que visão, gosto e pele, entre gemidos

 

De dor e fogo, tecem, bem tecida.

Poesia, essa, é deixar razão de lado,

Tudo sentir, estremecer com o que sente.

 

Mas não. Poesia é, apesar da mente

Estreita, de que Platão não é culpado,

A sensação maior à maior razão unida.

 

in “POÉTICA DA GAVETA


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...