Iberé Camargo
1. Encontrei-me com J.O.Travanca-Rego,
pela primeira vez, no decorrer da inauguração duma exposição colectiva de obras
de alguns pintores alentejanos – uns vivos, outros já falecidos – que organizei
em Portalegre com o apoio do sector cultural dessa época do município desta
cidade.
Já de há certo tempo nos carteávamos. Quem nos pôs em contacto foi o
José do Carmo Francisco, que aliás me mandara poemas dele para um suplemento
elvense que eu então orientava, o “Miradouro” do defunto Notícias de Elvas.
Assim que lhe li os versos de imediato me dei conta que não estava ali
uma voz de vulgar amenidade. O mesmo que senti quando pela vida fora tenho
estado a contas com outros autores que muito estimo: ele sabia o que dizia,
quando o dizia e como o dizia. Não era (não é) e creio que não será por muitos
anos e bons, um autor de lugares simétricos carreados por um talento urbano e
suave. Em Travanca-Rego há o espanto, a garra, o meditar de muitos mistérios
que na poesia e pela poesia se consubstanciam. E, no entanto, existe
paralelamente uma harmonia que nos seus momentos mais altos nos comunica a
certeza de que no seu discurso, na sua linguagem, tudo faz o verdadeiro sentido
e é dotado de um padrão interior votado à permanência no tempo.
“A pena valerá que mais palavras/
suportem a voz nua a (des)dizer-se/ como selámos todos – enigmáticos - / uma
dúvida perante o indizível?”, diz-nos ele nos versos iniciais de
“Comunicação”, o terceiro poema do seu “Sinais: 15 poemas de sideração e
saudade”.
Siderado e saudoso do que não se sabe definitivamente, me
parece ter sido o tónus poético deste autor. Interrogativo e em certos casos
crepuscular, em Travanca-Rego há como em muitos outros – mas nele com a
acuidade dolorosa que o seu passamento veio confirmar – uma amargura filha dum
espanto e duma melancolia abertos à procura, contudo, de novos ritmos e da
maneira de dizer mais exacta, mais real e adequada aos diversos momentos
daquilo que se sente e por isso se descreve. Descrição, comunicação… No fundo,
doação de descobertas, de universos que se encontram no percurso que mal ou bem
o poeta efectua quotidianamente a despeito das suas mágoas e das suas alegrias,
ou para dizer doutra forma: os poemas que encontram a sua existência nessa
escrita que se fornece a todos para que a leiam e assim revelem o mundo - que
em todos vive, mas que o poeta encarnou.
Diz ele em “Ilha”, arrolado em “Cinco Incisões”: “Deixa-me contar o tempo/ pelos nós dos dedos. Nesta ilha,/ nem
estrelas nem uma árvore!”. Mas o poeta efectua a religação mediante os
poemas, as palavras que articula ainda que algo o destroce ou, melhor, tente
destroçar-lhe o sentido do que cria. Travanca-Rego, sendo um autor de clara
vocação lunar, nocturna e aforística, não se compraz nesse mergulho, não se
recreia na convulsão: o que ele tenta é efectivamente encontrar uma medida para
que esse caos seja reordenado e se extinga como tal, passando para o lado solar
das propostas de vida plenamente erguida: “Grão
de trigo,/ feitio de um ventre:/ Um planeta/ te habita?”, pergunta ele na
primeira quadra do pequeno texto “Intimidade(s)” de “Extracto sensitivo”. Ou
seja: o universo contido num pequeno elemento da vida vegetal, o que está no
alto tornando-se igual ao que está em baixo como na Tábua alquímica da tradição
e da sageza.
Travanca-Rego soube pesquisar o mistério, assim tentou devassar o
segredo da esfinge. Perplexo ante os enigmas cumpriu contudo a sua íntima
tarefa, se alguma tem o poeta.
Pôde, portanto, afirmar num trecho do seu “Sentido sexto”: “Onde habitasse o desespero alheio,/ deveria
ter construído a minha casa!/ - Onde habitasse um pássaro sem asas/ pedindo uma
árvore ou um veleiro ou/ pedindo simplesmente/ a mão do vento que sob o seu
corpo/ - a afogar-se de mágoa -,/ transformasse em Espaço/ o seu canto em
mágoas prisioneiro!”
E
não é este, para um autor, um profundo projecto de vida que completamente nos
reivindica de pé perante a morte?
2. Durante os sete dias que antecederam
o seu falecimento, Travanca-Rêgo fez-me três telefonemas.
No último contacto que comigo estabeleceu, dois dias antes de partir,
pareceu-me deprimido, com algo indefinível a limitar-lhe a comunicabilidade.
Vinha perguntar-me se recebera a carta contendo um poema para a antologia sobre
Abril, organizada por um confrade a quem servi de intermediário e, depois, de
co-prefaciador. Mostrava-se um pouco ansioso, como se temesse que os
irregulares e frequentemente desrespeitadores correios lusitanos da época lhe
frustrassem o intento.
Quando lhe referi que sim senhor, recebera o envelope, que gostaria de o
ver e, para o dispor melhor, me dispunha mesmo a ir buscá-lo a Vila Boim, para
em Arronches ou Portalegre degustarmos umas especialidades da região e
conversarmos até às tantas, senti que se comovera. Respondeu-me, com um travo
ameno na voz, que teria muito gosto nisso, mas andava a sentir-se mal. Eram
incómodos no corpo e no espírito. Insisti em que o meu propósito, francamente
lho confessava, era contribuir para as suas melhoras. Estava ele disposto a
entrar nessa jornada? - tornei eu.
Em vão. Não que não lhe fosse agradável tal passeio mas...não se sentia
nada bem.
À guisa de consolo, intuí, informou-me que estava praticamente pronta a
estruturação do bloco específico que seria inteiramente preenchido com poemas
meus - a dar a lume na Revista de Elvas, de propriedade municipal e que ele coordenava
com Fernando Guerreiro.
Recomendou-me com alguma insistência que procurássemos que o poema
saísse, quando saísse, sem quaisquer gralhas. “É um poema complexo...Tem
aquelas recorrências... Veja lá isso, está bem?”.
Nos dois anteriores telefonemas preocupara-se com o andamento do
“Fanal”, o suplemento de que era colaborador e que saiu durante três anos no
“Distrito de Portalegre” e que posteriormente, por constrangimento da
administração, foi suprimido. Informou-se também sobre o caso em que tivera
parte, um processo contra três difamadores que nos haviam enxovalhado numa
folha portalegrense.
Dê-lhe a informação que me pedia, tentando pelo meio alguma ironia
fraternal.
A sua morte, comunicada de supetão, foi para mim uma dolorosa surpresa.
Lá o fui acompanhar ao cemitério de Vila Boim.
Estava um dia de calor atabafante. O ambiente, para além da tristeza
habitual em ocasiões assim, era soturno – um ambiente de pequena vila do
Alentejo profundo e sem muitos horizontes.
Durante vários dias aquelas horas que constituíram os funerais do poeta pesaram
em mim como algo de irreal e de absolutamente não desentranhável.
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