segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Nicolau Saião, Evocando Travanca Rego, a 80 anos do seu nascimento

 


Iberé Camargo



1. Encontrei-me com J.O.Travanca-Rego, pela primeira vez, no decorrer da inauguração duma exposição colectiva de obras de alguns pintores alentejanos – uns vivos, outros já falecidos – que organizei em Portalegre com o apoio do sector cultural dessa época do município desta cidade.

   Já de há certo tempo nos carteávamos. Quem nos pôs em contacto foi o José do Carmo Francisco, que aliás me mandara poemas dele para um suplemento elvense que eu então orientava, o “Miradouro” do defunto Notícias de Elvas.

  Assim que lhe li os versos de imediato me dei conta que não estava ali uma voz de vulgar amenidade. O mesmo que senti quando pela vida fora tenho estado a contas com outros autores que muito estimo: ele sabia o que dizia, quando o dizia e como o dizia. Não era (não é) e creio que não será por muitos anos e bons, um autor de lugares simétricos carreados por um talento urbano e suave. Em Travanca-Rego há o espanto, a garra, o meditar de muitos mistérios que na poesia e pela poesia se consubstanciam. E, no entanto, existe paralelamente uma harmonia que nos seus momentos mais altos nos comunica a certeza de que no seu discurso, na sua linguagem, tudo faz o verdadeiro sentido e é dotado de um padrão interior votado à permanência no tempo.

    “A pena valerá que mais palavras/ suportem a voz nua a (des)dizer-se/ como selámos todos – enigmáticos - / uma dúvida perante o indizível?”, diz-nos ele nos versos iniciais de “Comunicação”, o terceiro poema do seu “Sinais: 15 poemas de sideração e saudade”.

   Siderado e saudoso do que não se sabe definitivamente, me parece ter sido o tónus poético deste autor. Interrogativo e em certos casos crepuscular, em Travanca-Rego há como em muitos outros – mas nele com a acuidade dolorosa que o seu passamento veio confirmar – uma amargura filha dum espanto e duma melancolia abertos à procura, contudo, de novos ritmos e da maneira de dizer mais exacta, mais real e adequada aos diversos momentos daquilo que se sente e por isso se descreve. Descrição, comunicação… No fundo, doação de descobertas, de universos que se encontram no percurso que mal ou bem o poeta efectua quotidianamente a despeito das suas mágoas e das suas alegrias, ou para dizer doutra forma: os poemas que encontram a sua existência nessa escrita que se fornece a todos para que a leiam e assim revelem o mundo - que em todos vive, mas que o poeta encarnou.

   Diz ele em “Ilha”, arrolado em “Cinco Incisões”: “Deixa-me contar o tempo/ pelos nós dos dedos. Nesta ilha,/ nem estrelas nem uma árvore!”. Mas o poeta efectua a religação mediante os poemas, as palavras que articula ainda que algo o destroce ou, melhor, tente destroçar-lhe o sentido do que cria. Travanca-Rego, sendo um autor de clara vocação lunar, nocturna e aforística, não se compraz nesse mergulho, não se recreia na convulsão: o que ele tenta é efectivamente encontrar uma medida para que esse caos seja reordenado e se extinga como tal, passando para o lado solar das propostas de vida plenamente erguida: “Grão de trigo,/ feitio de um ventre:/ Um planeta/ te habita?”, pergunta ele na primeira quadra do pequeno texto “Intimidade(s)” de “Extracto sensitivo”. Ou seja: o universo contido num pequeno elemento da vida vegetal, o que está no alto tornando-se igual ao que está em baixo como na Tábua alquímica da tradição e da sageza.

   Travanca-Rego soube pesquisar o mistério, assim tentou devassar o segredo da esfinge. Perplexo ante os enigmas cumpriu contudo a sua íntima tarefa, se alguma tem o poeta.        

    Pôde, portanto, afirmar num trecho do seu “Sentido sexto”: “Onde habitasse o desespero alheio,/ deveria ter construído a minha casa!/ - Onde habitasse um pássaro sem asas/ pedindo uma árvore ou um veleiro ou/ pedindo simplesmente/ a mão do vento que sob o seu corpo/ - a afogar-se de mágoa -,/ transformasse em Espaço/ o seu canto em mágoas prisioneiro!

 E não é este, para um autor, um profundo projecto de vida que completamente nos reivindica de pé perante a morte?

 

2. Durante os sete dias que antecederam o seu falecimento, Travanca-Rêgo fez-me três telefonemas.

    No último contacto que comigo estabeleceu, dois dias antes de partir, pareceu-me deprimido, com algo indefinível a limitar-lhe a comunicabilidade. Vinha perguntar-me se recebera a carta contendo um poema para a antologia sobre Abril, organizada por um confrade a quem servi de intermediário e, depois, de co-prefaciador. Mostrava-se um pouco ansioso, como se temesse que os irregulares e frequentemente desrespeitadores correios lusitanos da época lhe frustrassem o intento.

   Quando lhe referi que sim senhor, recebera o envelope, que gostaria de o ver e, para o dispor melhor, me dispunha mesmo a ir buscá-lo a Vila Boim, para em Arronches ou Portalegre degustarmos umas especialidades da região e conversarmos até às tantas, senti que se comovera. Respondeu-me, com um travo ameno na voz, que teria muito gosto nisso, mas andava a sentir-se mal. Eram incómodos no corpo e no espírito. Insisti em que o meu propósito, francamente lho confessava, era contribuir para as suas melhoras. Estava ele disposto a entrar nessa jornada? - tornei eu.

  Em vão. Não que não lhe fosse agradável tal passeio mas...não se sentia nada bem.

  À guisa de consolo, intuí, informou-me que estava praticamente pronta a estruturação do bloco específico que seria inteiramente preenchido com poemas meus - a dar a lume na Revista de Elvas, de propriedade municipal e que ele coordenava com Fernando Guerreiro.

   Recomendou-me com alguma insistência que procurássemos que o poema saísse, quando saísse, sem quaisquer gralhas. “É um poema complexo...Tem aquelas recorrências... Veja lá isso, está bem?”.

   Nos dois anteriores telefonemas preocupara-se com o andamento do “Fanal”, o suplemento de que era colaborador e que saiu durante três anos no “Distrito de Portalegre” e que posteriormente, por constrangimento da administração, foi suprimido. Informou-se também sobre o caso em que tivera parte, um processo contra três difamadores que nos haviam enxovalhado numa folha portalegrense.

   Dê-lhe a informação que me pedia, tentando pelo meio alguma ironia fraternal.

   A sua morte, comunicada de supetão, foi para mim uma dolorosa surpresa. Lá o fui acompanhar ao cemitério de Vila Boim.

   Estava um dia de calor atabafante. O ambiente, para além da tristeza habitual em ocasiões assim, era soturno – um ambiente de pequena vila do Alentejo profundo e sem muitos horizontes.

   Durante vários dias aquelas horas que constituíram os funerais do poeta pesaram em mim como algo de irreal e de absolutamente não desentranhável.


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