quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Dois poemas de Gérard Calandre

 


Velasquez



SOBRE UM QUADRO DE VELASQUEZ

 

Em vida tinhas tudo, menos a morte.

Agora, estás completo. Em figura

em pedaços dispersos nos muitos olhos

que te visitaram já no esquife

ou através dos séculos. Completo

como um risco no céu, ou um canto

que alguém entoa ao amanhecer. Completo

como a tinta    o escuro    a própria madeira

Toada pouco a pouco desfazendo-se.

O teu quarto, a tua roupa, os gestos

que fizeste durante a pose destinada

vivem no mundo por detrás de ti

no mundo que ora há ora não há por detrás de ti 

Desaparecem. E na rua

que o pintor calcorreava todos os dias

existirá ainda a tua memória

uma interrogação, talvez uma dúvida?

 

A prova é que não falas, ou então tudo dizes

Leve rasto de fumo inscrito nos anos perdidos.

 

 

VESTÍGIOS

 

Na Rua do Touro, ao pé das escadinhas

que antecedem a grande descida da praça do Tribunal

entrei por uns minutos no livreiro-antiquário

Às vezes vejo-me ali como que em séculos passados

Palaciano se calhar aproximo-me com a boca aberta

Restos de sono vontade louca de ler    comichão

E diz-me o proprietário nos seus tempos um belo compincha

E ao dizer-me, não vou repeti-lo, mostra-me uma folha de papel

não de árvore verbena teixo das Índias eucalipto

Era um manuscrito de Manzonni

Só deus sabe como lhe teria ido parar às mãos

A letra muito firme as ideias límpidas um ar de quem

lavava as mãos simpaticamente depois de obrar

Tudo se conjuga

Tudo se irmana mesmo em casos particulares

linhas interseccionando-se quebradas abatidas

de rostos de passos que se perderam de motivos

Uma escrita articulada entre si e rigorosa

obedecendo bem a leis exactas e ao eventual aparo

 

Pouco depois no Café olho algumas folhas onde tracei

afirmações, ou dúvidas, ou restos de música retórica piolhenta

perdão um solfejo de palavras que afinal me dizem muito

letra mal acabada que pena um pouco rasca

emendas riscos agudos e graves    e o papel amarfanhado

 

Por vezes seremos obrigados a escrever dissonâncias

mas faz favor    não tenho o jeito dos séculos

o amplexo    mesmo a lisura    e isso me custa

Neste debate gramatical a que eu mesmo presido.

 

do livro VESTÍGIOS

Editora Nephelibata, São Paulo (Brasil)

Tradução de ns


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