terça-feira, 3 de maio de 2022

José do Carmo Francisco, Um sobre futebol

 




Poema afastado nº 77 para Ana Isabel


Na descida da Académica à terceira divisão lembrei uma história passada no Metro de Lisboa: um jovem dirige-se a um idoso com o emblema da A.A.C. no casaco sobre uma possível subida de divisão nesse ano ouvindo a resposta: «Na primeira, na segunda ou na terceira a Académica é sempre a Académica!»

Finalista em Faro do Campeonato de Portugal em 24-6-23 (o Sporting venceu por 3-0) a Académica derrotou o Benfica por 4-3 na final da primeira Taça de Portugal em 25-6-39 e disputou quatro em nove Nacionais de Juniores: 7-6-40, 18-5-47, 2-5-48 e 11-5-49. Havendo o Nacional, o Santa Clara e o Sport, a rivalidade sempre foi com o União.

Tudo conforme o livro «Football para o serão» de Armando Sampaio: «Do comando da GNR veio a ordem aos soldados: «Se houver conflito e vocês entrarem em campo só batem nos de azul!» A certa altura um militar levantou a espingarda para o Albano mas logo lhe disseram: «Nesse não, que é dos nossos…»


Nicolau Saião, Bilhete aos confrades no Dia da Mãe

 





Ucrânia:

Presidente de associação diz não perceber como

 PCP continua a existir em Portugal


O presidente da associação Refugiados Ucranianos (UAPT) afirmou este sábado à Lusa não perceber como é que Portugal continua a ter um partido como o PCP, nem por que as organizações não filtram as pessoas que lá trabalham.

O dirigente associativo Maksym Tarkivskyy comentava a notícia divulgada pelo Expresso de que refugiados ucranianos foram recebidos no município de Setúbal por russos pró-Putin, durante a iniciativa “Obrigado a Portugal (Glória a Portugal)”, que decorreu na Praça do Comércio, em Lisboa, entre as 17h00 e as 19h00 e reuniu mais de duas centenas de pessoas perante um sol abrasador.

(Dos jornais)

 

   O PCP pode e deve existir! Como lembrança do que é o comunismo e que propósitos serve... O melhor garante daquilo que devemos evitar...

Alberto Sousa


  Portugal continua a ter um partido como o PCP porque se deixou reduzir à insignificância. Porque continuou atrasado e a atrasar-se, e acima de tudo porque os próceres do regime passaram pelas carteiras de escola do “Partido” com os manuais de Moscovo. Situação que o povo ucraniano tão bem conhece... A ignorância, o não querer saber e a pobreza de espírito, fazem o resto.

Paulo Silva

 

  O presidente da Câmara de Setúbal, o que não nos espanta, mentiu duas vezes, ao primeiro-ministro e aos dirigentes do SEF. Não tem condições honestas para continuar a ser autarca, deve demitir-se e sem demora. Por outro lado, é imperativo que as autoridades democraticamente constituídas e por isso legítimas, investiguem qual o tipo de comprometimento do PC com o regime autocrático russo.

  Como afirmou na TV um coronel comentador, “já estamos em guerra, ainda não mundial mas já internacional”. É pois necessário agir afastando ingenuidades, tanto mais que Portugal que é considerado pelo Kremlin como país hostil expulsou como devia vários membros da embaixada russa, tidos como agentes provocadores ligados ao FSB, a pide russa. Mas a bem da defesa do povo português como se fez contra a Gestapo em 39-45 nas democracias, devem também ser investigadas até às últimas consequências as possíveis ligações de autores de espaços interativos aos serviços russos e chineses, quer de embaixadas quer de serviços secretos. Não os simples opinativos, por depravados que sejam, mas os estipendiados quintas-colunas que são verdadeiros propagandistas-espiões.

Jofre Cabral


Um poema de Léon-Paul Fargue

 


Greta Knutson



QUIOSQUES

 

O mar em vão faz a viagem

do fundo do horizonte para beijar os teus pés sábios.

Tu sempre a tempo os desvias.

 

Em silêncio ficas e eu também nada digo.

Nisso talvez não mais pensamos,

mas os vaga-lumes passo a passo

pegaram na sua lanterna de bolso

de propósito para fazer brilhar

nos teus olhos calmos esta lágrima

que um dia fui obrigado a beber.

 

E o mar é salgado a valer.

 

Depois, uma medusa loira e azul

que aprender quer enquanto se entristece

atravessa os fundos atulhados do mar,

limpa e clara como um ascensor.

 

E desgrenha a lâmpada à flor da água

para te ver fingir na areia

com tua sombrinha em mão, chorando,

 

os três casos da igualdade dos triângulos.

 

(Trad. ns)


Nicolau Saião, Maria Alzira Brum Lemos ou A reconstrução da memória

 


ns



                 “Não se pense, meus senhores, que a memória é coisa do passado.

                        Ela é matéria do presente, deste infinito presente e umas vezes             

                   está no que foi e outras no que vai ser e sempre será”.

                                                                    “Aforismos” - Fernando Batalha

 

1.

   Como nos disse em tempos François Jacob, num texto tão excitante como de clara feitura, “A vida é mais questão de engenhoquice do que de engenharia”.

  Referia-se, no caso vertente, à vida carnal, material do Homem elaborada através dos séculos, mas eu estou em crer que se referiria efectivamente à vida em geral, fôsse ela de seres humanos ou de tigres, de lobos de Alsácia ou do nosso estimado “ornithorhynchus anatinus”, animalzinho estimável, protegido pelas leis internacionais e que, a quem o viu pela vez primeira com olhos de ver, deve ter comunicado um espanto que apenas podemos conjecturar ou inferir a partir de relatos cabais e com chancela científica.

   O mesmo se dá igualmente, arriscaria dizer, com certos livros – que naturalmente são representação dos seus autores ou, melhor, das congeminações dos seus autores em certa fase de vivência ou de escrita. Livros únicos, de uma feitura que não se pode entretecer de novo sem se correr o risco da repetição desnecessária, ainda que o que se pretendesse fôsse o de uma mais perfeita adequação, mais exacta preparação como uma iguaria de maestro ou de transmutador. E livros absolutamente, felizmente compósitos, com suas diversas partes e escaninhos, aparentemente intercambiáveis  como  puzzles,  como labirintos  comunicacionais, como peças de um mecanismo intelectual, literário e feito a partir de uma escrita cujo cimento mais evidente é o que parte da memória, do como e do porquê em que tudo surgiu e, depois, se estruturou para fazer sentido – ainda que um sentido que a uma primeira vista (uma primeira leitura?) não é imediatamente reconhecível ou, ia dizer, mesmo descriptável a quem dele se aproxime sem ter tido a precaução de verificar que se está a contas com um texto-ornitorrinco.

  No qual se mescla, como se fôsse só por acaso, uma certa angústia de viver  trespassada de súbitas alegrias (ou comoções) que principalmente vêm da infância ou da extrema juventude, que é onde as coisas todas começam antes de termos necessidades evolutivas interiores em que a engenhoquice a que se reportava o insigne autor de “O jogo dos possíveis”, livro onde as hipóteses biológicas são postas em equação (mas também de “A estátua interior”, autobiografia a que eu melhor chamaria viagem memorialística por si mesmo e pelos outros que lhe certificaram a existência e a permanência como pessoa em todas as direcções) assenta arraiais de maneira significativa e incontornável.

 

2.

   a. Não estamos a contas com um livro ameno ou, dito de outra forma, amável. A autora, como se fôsse uma bióloga-cirurgiã, disseca o texto (a memória dos eventos que o constróiem), descarna a escrita de forma simuladamente (mais que dissimuladamente, num jogo que nos arrasta como cúmplices para dentro das páginas) natural, tranquila, habitual dos meios em que nos faz excursionar: areópagos universitários, terras do (seu) estrangeiro, entrepostos colegiais que frequentou, cidades e lugares onde residiu ou visitou, em suma - elementos que, mais tarde, na nossa existência civil, constituem mesmo que o não queiramos lembranças por extenso e que são, por si sós, lugares estranhos.

   Creio que me faço entender...

   No entanto, não nos deixemos iludir, pois este é também um livro vincadamente filho de uma prestidigitação que os poetas aliás assumem sem que o mostrem excessivamente, uma vez que isso faz parte, diria, das regras do jogo em que se cruzam realidade e imaginação e já se sabe, desde Madame de La Fayette e do seu canónico “A princesa de Clèves”, que há fantasias que são muito mais reais que presumíveis realidades, ou dito de outro modo: que para uma situação ser vincadamente real necessita do colorido da construída fantasia, que é alma da escrita, dos relatos e das efabulações, da célebre folha de papel branco vencida pelas palavras e as frases organizadas de determinada feição. Ou seja, exactamente, da Literatura.

 

  b. “Ninguém nunca admitiu ter feito parte da Ordem”, diz-nos, significativamente, a autora a dado passo ao referir-se à entidade que consubstancia o título deste seu livro simultaneamente aberto e fechado, convivente e provocatório, simbólico, metafísico e no entanto muito concreto nas recorrências a que alude (da infância, dos encontros e desencontros, mesmo da própria nomenclatura discursiva e circunstancial dum quotidiano pós-moderno que subitamente irrompeu e riscou transversalmente um mundo onde está mesmo presente, ainda que em fotografia desfocada, o erotismo interactivo ou digitalizado e os sinais de uma técnica e de uma ciência entre “a opacidade e a transparência”(sic) e que, se têm a ver com a evolução das sociedades, muito mais o têm com a resposta que cada um lhe possa dar, seja em escrita seja em existência comum e de todos os dias civis.

   É um livro onde as personagens, vistas ou recordadas, sentidas ou apenas criadas para que o pensamento e o sentimento possam existir numa escrita que incessantemente se questiona, ora se perdem ora se encontram, revoluteando como imagens num espelho, como dizia Fulcanelli, no espelho que é este livro onde a autora (gémea ou mulher com rabo como um ornitorrinco? alguém pagando o pato ou madame bovary entrevistadora de Templiakov? poetisa dando comida às plantas carnívoras ou gestora da Coisa Perdida onde se pesquisa a língua?) se expressou.

  Essa língua, afinal, que dá origem a universos alternativos – ou seja, da escrita – que foi segundo os cânones o princípio do Mundo e que é pelo menos, indestrutivelmente e enquanto houver tempo, memória e terra para os conter, aquilo com que se faz a vida passível de existir num livro, em todos os livros, neste livro simultaneamente atormentado, complexo, sugestivo e onde, afinal e ao cabo, se consegue aperceber uma difusa e conquistada e sentida alegria de existir.


King Crimson, Heroes

 



terça-feira, 26 de abril de 2022

Para mais tarde recordar

 

ns



Sócrates e PS: quem aldrabou quem?



António Costa declarou que Sócrates aldrabou o PS. Mas esqueceu-se de acrescentar que o PS também aldrabou Sócrates ao fazer de conta que acreditava nele e que ambos nos aldrabaram a nós, portugueses.

(Dos jornais)

 

   O que acaba de escrever é a pura realidade dos factos. O "engº" Sócrates perdeu-se na sua vaidade louca de querer ser o mais em tudo: em elegância, em pergaminhos, em extravagâncias e em diplomas, mas o seu sucessor, político experiente e sabido, consegue ser muito pior do que ele. É dos que pela calada e sem grandes alardes, vai fazendo pela vida e tem toda a comunicação social a louvaminhá-lo, sem nunca lhe fazer perguntas incómodas nem tão pouco fazer o escrutínio da sua vida, pelo que engorda ele e a sua corte a seu bel-prazer e nós ficamos todos embevecidos com o tal optimismo irritante do amigo do sr. Marcelo!

Alberico Lopes

 

   Quando A. Costa afirmou que Sócrates aldrabou o PS, reconheceu que afinal houve muitas aldrabices! Logo, os ataques ferozes de vários líderes do PS contra as acusações da imprensa, do MP e da Justiça (apelidando-as de cabalas), exigem uma retratação pública do partido socialista e uma indemnização às respectivas vítimas.

Fernando Martins do Vale

 

   O Kosta que se cuide. Não há honra entre socialistas e após o mesmo abandonar o poleiro, não demorará muito até que comecem a vir à tona do pântano algumas verdades desagradáveis. Uma delas é o porquê de Kosta não ter uma conta bancária conhecida (onde será que recebe o ordenado?) É inevitável que o PS descarte Kosta, como agora descartam o 44. Estou curioso quanto ao epíteto que o Nuno da TAP usará para descrever o seu antecessor.

Elvis Wayne


Lembrança de Pedro Oom - Três poemas

 




Poema

 

                 À Júlia Chaves

 

Há um ar de espanto

no teu rosto em silêncio    pequenas pausas

entre nós e as palavras

          que desfiamos

Quando o silêncio (pausa mais longa

           que nos contrai o peito)

cai bruscamente

duas mãos agitam-se meigamente     as nossas

e os mendigos, todos os mendigos

espreitam ao postigo do teu pequeno apartamento

coroados de rosas e crisântemos

 

É o momento

em que afirmamos a realidade das coisas

não a que vemos na rua

e que sabemos fictícia

 

mas a outra

 

aurora cintilante

que põe estrelas no teu sorriso

quando acordas de manhã

com um sol de angústia na garganta

 

acredita

nada nos distingue

entre a multidão anónima a que pertencemos

embora

o fotógrafo teime sempre

em nos oferecer uma esperança

- fluido imaterial que nem mil anos

poderão condensar -

 

O nosso rasto

mal se apercebe na areia

condenados ao fracasso

pequena glória dos pequenos heróis deste tempo

ainda aspiramos

          no entanto

a ser o índice deste século

único sinal humano, florescente e salubre

de contrário

seremos apenas

um halo de vento

arco-íris de luto

ou estrada para sedentários

É ocioso

preparar a objectiva

que nos vai condenar a um número

nesta cidade onde cada homem

é escravo de uma arma

Ocioso

avivar as flores do cenário

encher de luar o jardim do nosso afecto

                      Só um acaso

                      nos poderá revelar

                 por isso

                        fechemos o rosto

                                                   meu amor

 

 

Poema

 

Os camaradas

saíram para a rua

com os bolsos cheios de serpentinas

 

            (o calendário

            estava trocado

            e de Entrudo

 

                        nicles

              nem um só cabeçudo

              ou máscara

              até o polícia de giro

              com a dignidade sui generis

              dos pequenos autocratas

              participou na patuscada

              depois do jogo

              - o Benfica foi eliminado)

 

Os camaradas

compraram fatos novos

nos alfaiates dernier-cri

e botaram as serpentinas

no lixo

 

para não deformar

os bolsos (novos).


 

História do meu boneco

 

Cresceu comigo

neste espaço que se diz português

e neste tempo (histórico)

 

Maricas (era de esperar)

mas rebelde como um felino

ninguém se lhe pôs inteiro

ficou sempre um bocadinho

porque rangia a dentadura.

 

Deixou de acreditar na Santíssima Trindade

quando notou as primeiras brancas do púbis

mas já era muito tarde para ir às “meninas”

pelo que aderiu aos movimentos parlamentares

- lixou-se!

 

Depois de 45

afundou-se na continuidade

engordou (discretamente)

caíram-lhe os últimos molares

farfalhou o bigode, à Guarda Nacional antiga

e hoje

para fingir que é   ainda o teso,

levanta a calva luzente

e bate o pé

 

ao peso dos argumentos.

 

                                            Sacavém, Março de 1973

 

   Enviados a nicolau saião para serem publicados no Suplemento Cultural - do semanário “A Rabeca” - que este dirigia e onde foram integralmente cortados pela Censura.

   Faleceu em Lisboa a 26 de abril de 1974, com quarenta e sete anos de idade. O falecimento ocorreu no “Restaurante 13”, devido a um ataque cardíaco fulminante, quando conjuntamente com amigos festejava os acontecimentos da véspera, a conquista da liberdade pelo povo..


Um prefácio de João Garção...

 




... ao livro A CUMPLICIDADE DOS SENTIDOSde Ana Maria Amorim  

  

Conta-se que o editor Marc Humblot, ao rejeitar a obra À Procura do Tempo Perdido, de Marcel Proust, argumentou que não compreendia por que razões eram precisas trinta páginas para descrever as voltas que alguém dá na cama antes de dormir… E, no entanto, nesta magistral obra, Proust fez a realidade ganhar sentido precisamente através das suas mais peculiares impressões. Mas não nos enganemos, pois essa obra não se resume a uma simples análise introspectiva, revelando também – revelando sobretudo – uma dimensão de mordaz e justa crítica social em relação à sociedade do seu tempo.

Não pude deixar de me recordar desse episódio ao ler este trabalho de Ana Maria Amorim, autora que evidencia (com as devidas diferenças em relação ao grande escritor francês) uma predisposição de teor semelhante. As dezenas de páginas por si escritas ‘de rajada’ (entre 25 e 26 de Setembro de 2010, como indica), não são apenas ‘reflexões ao correr da pena’, impressões subjectivas sobre o mundo que a rodeia e onde lhe foi dado viver, mas, ao introduzirem-nos no seu mundo pessoal (com os seus fantasmas, os seus lamentos, as suas esperanças, as suas angústias e as suas alegrias), levam-nos igualmente a reflectir sobre o estado desse mesmo mundo, que também é o nosso. A própria autora, aliás, afirma imaginar-se ‘muitas vezes outra pessoa’, afirmação de alteridade indispensável para qualquer indivíduo poder ter veleidades de carácter ético e moral, já que a incapacidade de nos colocarmos no lugar do outro impossibilita sabermos conferir-lhe a indispensável dignidade de que é merecedor, decorrente da sua condição de ser humano.

Este é um trabalho que funciona como balanço de vida da autora até ao presente momento. É, nesse sentido, uma obra de amadurecimento pessoal. Mas é também uma obra de descoberta – de descoberta de si mesma e de descoberta da forma como encara a maravilhosa aventura que é a vida (garantia de quotidiano renascimento, mesmo que esteja, aqui e ali, salpicada de desilusões, de angústias e de receios).

Ao efectuar esta análise à sua existência e ao mundo que tem habitado, Ana Maria Amorim coloca-se claramente como tributária das doutrinas católicas que enquadram o seu viver e norteadoras das suas acções. Em várias passagens da obra, a autora mostra aceitar os ensinamentos de Cristo e da Igreja e colocar-se nesse patamar de aceitação. A adesão a esses princípios leva-a a construir determinadas mundividências e a manifestá-las de forma sincera, algumas das quais, pelo menos para quem se situar fora desses princípios, podem considerar-se polémicas e merecer uma rápida rejeição. Mas essa adesão de Ana Maria Amorim não é absolutamente linear e acrítica, a meu ver. É o que sucede, por exemplo, com a sua apreciação sobre a Morte. Como católica, a autora aceita que ‘a vida não é aqui’ (pelo menos, a ‘vida’ mais importante). Com efeito, os ensinamentos de S. Paulo salientam que o corpo pode estar morto, mas que o Espírito é vida - “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que habita em vós.” (Romanos, 8. 11). Idêntico posicionamento se pode encontrar em S. João: “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas passou da morte para a vida.” (João, 5.24). Mas, mesmo assim, Ana Maria Amorim não deixa de se questionar acerca do que existirá numa outra vida para além desta (“quer ela exista ou não”, como refere), desejando rejeitar a morte, a doença e o sofrimento terrenos. Embora a dogmática cristã lhe dê alento, não lhe proporciona completa tranquilidade: “Viver, é o que mais importa nesta passagem. Viver intensamente, desfrutando todos os prazeres que a vida nos proporciona, como se cada dia fosse o último. A morte é o que mais me assusta e atormenta. A dúvida e a incerteza, que enigma delirante e ao mesmo tempo detestável!”.

Menos cristã, por isto? Creio que não. Aliás, a rejeição da Morte e a exaltação da Vida são princípios divulgados pelo Cristianismo (e, como tal, por todos os cristãos deveriam ser sempre enfatizados, em qualquer tempo e em todas as circunstâncias). Foi aliás o Nazareno que disse: “Eu sou a Verdade e a Vida”. A Morte, que, no dizer de Cristovam Pavia (um poeta português, límpido como poucos e frequentemente – e injustamente – esquecido e em cujos poemas é bem visível a mensagem de Jesus), é velha, gorda e feia, merece da autora, muito salutarmente, a maior rejeição. Como Cristovam Pavia, Ana Maria Amorim, corajosamente, não foge e sustem ‘o peso da hora’ para homenagear familiares já falecidos e, ainda como o escritor alentejano, desejaria poder regressar à ternura de menina, a um tempo de felicidade onde todos os seus irmãos ainda viviam e onde as vivências quotidianas tinham o doce sabor da alegre inocência, mesmo que experimentadas sob o amargor de algumas difíceis condições materiais (a que muitos portugueses não podiam furtar-se, em tempos idos – como ainda o não podem fazer, infelizmente, em tempos actuais).

A recordação desses queridos familiares, entretanto falecidos, leva Ana Maria Amorim a construir-lhes uma elegia ao longo de algumas páginas desta obra. ‘Y aunque la vida murió, nos dexó harto consuelo su memoria”, escreveu no século XV Jorge Manrique, cavaleiro de Santiago, nas suas magníficas Coplas a la Muerte de Su Padre. “Tudo está escrito em mim”, afirma Ana Maria Amorim, que também deseja compartilhar connosco essas gratas (mas simultaneamente dolorosas) recordações, pelo que a escrita – e a autora o deixa entrever – constitui também para si uma actividade catártica, através da qual vai desabafando e, por essa via, procurando amortecer o peso da dor que essas pungentes memórias, nunca apaziguadas, ciclicamente lhe vão trazendo (“o mal é inesquecível” e “o passado é uma sombra”, como afirma).

As gratas vivências quotidianas, em anos felizes, servem de ponto de comparação em relação ao quotidiano actual e, em consequência, de claro contraponto. Os tempos actuais são, para a autora, uma “floresta habitada, mas cada vez mais deserta em valores éticos e morais.”. Ana Maria Amorim contesta a violação dos direitos humanos, enfatizando as situações que têm as crianças como vítimas, manifestando grande inquietação pelas apetências pesadamente materialistas contemporâneas e pelas correlativas inconsistências e traições que considera grassarem com despudor na actual sociedade. O comodismo egoísta do homem contemporâneo reflectir-se-á na sua paralela solidão (solidão espiritual, já que fisicamente, pelo contrário, está muito próximo dos seus semelhantes). Esta avaliação, refira-se, tem sido uma constante ao longo da história humana, evidenciando-se com particular acuidade em certas épocas. Jorge Manrique, por exemplo, na obra atrás referida, não deixou de salientar ‘cómo, a nuestro parescer, cualquiera tiempo passado fue mejor.”. Este desconforto com as características do tempo presente levou alguns autores a elogiar uma vida retirada (Frei Luís de León, por exemplo, na senda deste tema ‘Beatus Illie” popularizado pelo poeta latino Horácio, escreveu no século XVI: “Qué descansada vida/ la del que huye del mundanal ruido,/ y sigue la escondida/ senda por donde han ido/ los pocos sabios que en el mundo han sido.”.

A autora, no entanto, não cede a esta possibilidade. É no aqui e no agora imperfeitos, a seus olhos, que decide travar o seu combate, enfrentando, do passado, as memórias que ferem; do presente, as insuficiências individuais e colectivas, e, do futuro, as perturbantes incógnitas.

Deseja fazê-lo, porque conseguir enfrentar as experiências dolorosas faz parte do seu sonho enquanto mulher (“quando nasce uma mulher, nasce um sonho com ela”, escreveu).

E deseja fazê-lo de forma corajosa, mas sem perder a humildade em prol do orgulho que o excesso de veemência pode acarretar aos menos avisados – humildade de que o já citado Frei Luís de León exemplarmente deu mostra, quando, libertado dos cárceres da Inquisição para retomar a sua cátedra na Universidade de Salamanca, após anos de prisão, mostrou desejar viver a sua vida “ni envidiado, ni envidioso.”.

A autora fá-lo-á com dúvidas, com angústias e com temores?

Sim, mas também com alegrias, pois o riso existe porque o choro também existe (digo agora eu, tomando a liberdade de inverter os termos de uma passagem desta obra). E Ana Maria Amorim deixa bem evidente a sua mensagem de esperança sobre a Vida, apesar de tudo: “Ontem talvez fosse assustador, mas já passou, foi apenas uma chama que quase se apagou. Voltou a acender-se. Hoje é uma fogueira que se sustenta e se consome. Arde e continua a arder em labaredas incandescentes.”.

É que, afinal, como disse Swan (personagem de Proust de À Procura do Tempo Perdido), “a que mais se deve ligar senão à Vida, o único presente que o bom Deus nunca faz duas vezes?...


Giovanni Marradi, Just for you

 



terça-feira, 19 de abril de 2022

PÓRTICO

 


Ithell Colquhoun



Com vénia ao seu Autor, transcrevemos este lúcido texto de Pedro Correia:




EM OBEDIÊNCIA AO CATECISMO TOTALITÁRIO


 

  Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar. Sucedem-se as novas Guernicas, na massacrada Ucrânia.

   Decoramos os nomes destas cidades-mártires: Mariúpol, Butcha, Borodianka, Irpin, Kramatorsk.

   Estão já abertas 5600 investigações oficiais por crimes de guerra cometidos por forças militares e para-militares às ordens de Putin em solo ucraniano.

   Alguns, no entanto, persistem em ignorar. Cegos e surdos perante as evidências. Submetidos a dogmas ideológicos que os inibem de pensar como cidadãos livres. Em obediência servil ao catecismo totalitário.

   Vários destes são cartilheiros por mera fidelidade tribal. Limitam-se a papaguear a cartilha da trincheira, receando ser excomungados. 

  Outros vivem mergulhados num mundo alternativo. Chamam verdade à mentira e mentira à verdade. Têm o quadro mental adaptado à ficção em que creem e evitam validar qualquer facto capaz de contaminar essa ficção.

   Gente como o repugnante Éric Zemmour, candidato da ultradireita que no domingo obteve 7% na primeira volta das presidenciais francesas. Defensor intransigente do carniceiro do Kremlin.

   «É preciso parar de fazer de Putin o agressor. Putin é o agredido, está a defender-se», ladrava ele no Twitter em Junho de 2021.

  Acontece que muitos, no campo político oposto de Zemmour, ladram exactamente isto. Usando as mesmas frases, palavra por palavra.

   Prestam vassalagem a Putin sem qualquer sobressalto de consciência. Os crimes de guerra cometidos pelos russos na Ucrânia não lhes despertam a mais leve censura nem lhes provocam o menor abalo moral. 

   Fascistas e comunistas aplaudem o tirano russo como podiam defender o Raskólnikov de Dostoievski. Indiferentes ao sangue que lhe mancha as botas.


Para que a Terra não esqueça

 


Nicolau Saião, O medo



Abusos:

Igreja não comenta suspeitas de ocultação

 

Comissão independente revelou que há indícios de encobrimento de abusos de menores por parte de bispos católicos ainda no ativo. Mas a Conferência Episcopal não comenta nem diz o que vai fazer.

(Dos jornais)

 

   Mais vergonhoso que a vergonha em si mesma é tentar encobrir este tipo de crimes; só há uma leitura, são todos cúmplices e coniventes nos crimes.

Marco Gomes

 

   A Hierarquia da Igreja lusa estava convencida que a Comissão Independente era um subterfúgio para branquear os abusos dos padres e bispos, safando a ICAR desta vergonha. Mas como se enganaram, agora recorrem ao mais profundo silencio. Como sempre, são a hipocrisia completa personificada em gente cujo estofo causa repugnância.

 Bráulio Garcia


Dois poemas de H. P. Lovecraft

 


Greta Knutson



A COLINA DE ZAMÁN

 

  A grande colina erguia-se perto da velha cidade,

  Um penhasco contra o fundo da rua mais povoada;

  Verdejante e cheia de bosques, cá de baixo parecia escura

  E dominava com a sua altura

  O campanário junto à curva da estrada.

 

  Há duzentos anos que se ouviam rumores

  Sobre o que ocorria nessa ladeira que o homem devia evitar ...

  Histórias de veados e de pássaros estranhamente mutilados

  Ou de garotos perdidos cujos pais tinham cessado de esperar.

 

  Certo dia o carteiro não achou o povoado no seu lugar

  E ninguém voltou a ver os habitantes ou as casas;

  As pessoas vinham de Aylesbury e ficavam-se a olhar...

 

  No entanto, todos diziam ao carteiro que era um ingénuo

  Ou estava louco   por dizer que conseguira descortinar

  Os olhos carnívoros das altas colinas e as bocarras

  Abertas de par em par.

 

 

O PORTO

 

  A dez milhas de Arkham descobrira um carreiro

  Ao longo da falésia alcantilada de Boyton Beach

  E aguardava o momento em que o ocaso coroa

  A crista que assoma por sobre o vale de Innsmouth.

 

  Ao longe, no mar alto, uma vela vogava

  Branqueada por árduos anos de velhos ventos,

  Carregada com o mal de algum facto inexplicável.

  E não ergui, assim, mão ou voz para saudá-la.

 

  Veleiros de Innsmouth! Ecos de idas memórias

  De tempos já longínquos; a noite ia caindo,

  Bem cerrada, quando cheguei ao topo

  De onde era meu hábito olhar a povoação.

 

  Além estão os campanários e os telhados... Mas, olhai!

  As trevas

  Propagam-se nas ruas, tenebrosas como tumbas!


(Tradução de Nicolau Saião)

Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...