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“Não se pense, meus
senhores, que a memória é coisa do passado.
Ela é matéria do
presente, deste infinito presente e umas vezes
está no que foi
e outras no que vai ser e sempre será”.
“Aforismos” - Fernando Batalha
1.
Como nos disse em tempos François Jacob, num texto tão excitante
como de clara feitura, “A vida é mais
questão de engenhoquice do que de engenharia”.
Referia-se, no caso vertente, à vida carnal,
material do Homem elaborada através dos séculos, mas eu estou em crer que se
referiria efectivamente à vida em geral, fôsse ela de seres humanos ou de
tigres, de lobos de Alsácia ou do nosso estimado “ornithorhynchus anatinus”, animalzinho estimável, protegido pelas
leis internacionais e que, a quem o viu pela vez primeira com olhos de ver,
deve ter comunicado um espanto que apenas podemos conjecturar ou inferir a
partir de relatos cabais e com chancela científica.
O mesmo se dá igualmente, arriscaria dizer,
com certos livros – que naturalmente são representação dos seus autores ou,
melhor, das congeminações dos seus autores em certa fase de vivência ou de
escrita. Livros únicos, de uma feitura que não se pode entretecer de novo sem
se correr o risco da repetição desnecessária, ainda que o que se pretendesse
fôsse o de uma mais perfeita adequação, mais exacta preparação como uma iguaria
de maestro ou de transmutador. E livros absolutamente, felizmente compósitos,
com suas diversas partes e escaninhos, aparentemente intercambiáveis como
puzzles, como labirintos comunicacionais, como peças de um mecanismo
intelectual, literário e feito a partir de uma escrita cujo cimento mais
evidente é o que parte da memória, do como e do porquê em que tudo surgiu e,
depois, se estruturou para fazer sentido – ainda que um sentido que a uma
primeira vista (uma primeira leitura?) não é imediatamente reconhecível ou, ia
dizer, mesmo descriptável a quem dele se aproxime sem ter tido a precaução de
verificar que se está a contas com um texto-ornitorrinco.
No qual se mescla, como se fôsse só por
acaso, uma certa angústia de viver
trespassada de súbitas alegrias (ou comoções) que principalmente vêm da
infância ou da extrema juventude, que é onde as coisas todas começam antes de
termos necessidades evolutivas interiores em que a engenhoquice a que se
reportava o insigne autor de “O jogo dos
possíveis”, livro onde as hipóteses biológicas são postas em equação (mas
também de “A estátua interior”, autobiografia a que eu melhor chamaria viagem
memorialística por si mesmo e pelos outros que lhe certificaram a existência e
a permanência como pessoa em todas as direcções) assenta arraiais de maneira
significativa e incontornável.
2.
a. Não estamos a contas com um livro ameno ou, dito de outra
forma, amável. A autora, como se fôsse uma bióloga-cirurgiã, disseca o texto (a
memória dos eventos que o constróiem), descarna a escrita de forma
simuladamente (mais que dissimuladamente, num jogo que nos arrasta como
cúmplices para dentro das páginas) natural, tranquila, habitual dos meios em
que nos faz excursionar: areópagos universitários, terras do (seu) estrangeiro,
entrepostos colegiais que frequentou, cidades e lugares onde residiu ou visitou,
em suma - elementos que, mais tarde, na nossa existência civil, constituem
mesmo que o não queiramos lembranças por extenso e que são, por si sós, lugares
estranhos.
Creio que me faço entender...
No entanto, não nos deixemos iludir, pois
este é também um livro vincadamente filho de uma prestidigitação que os poetas
aliás assumem sem que o mostrem excessivamente, uma vez que isso faz parte,
diria, das regras do jogo em que se cruzam realidade e imaginação e já se sabe,
desde Madame de La Fayette e do seu canónico “A princesa de Clèves”, que há fantasias que são muito mais reais
que presumíveis realidades, ou dito de outro modo: que para uma situação ser
vincadamente real necessita do colorido da construída fantasia, que é alma da
escrita, dos relatos e das efabulações, da célebre folha de papel branco
vencida pelas palavras e as frases organizadas de determinada feição. Ou seja,
exactamente, da Literatura.
b.
“Ninguém nunca admitiu ter feito
parte da Ordem”, diz-nos, significativamente, a autora a dado passo ao
referir-se à entidade que consubstancia o título deste seu livro
simultaneamente aberto e fechado, convivente e provocatório, simbólico,
metafísico e no entanto muito concreto nas recorrências a que alude (da
infância, dos encontros e desencontros, mesmo da própria nomenclatura
discursiva e circunstancial dum quotidiano pós-moderno que subitamente irrompeu
e riscou transversalmente um mundo onde está mesmo presente, ainda que em
fotografia desfocada, o erotismo interactivo ou digitalizado e os sinais de uma
técnica e de uma ciência entre “a opacidade e a transparência”(sic) e que, se
têm a ver com a evolução das sociedades, muito mais o têm com a resposta que
cada um lhe possa dar, seja em escrita seja em existência comum e de todos os
dias civis.
É um livro onde as personagens, vistas ou
recordadas, sentidas ou apenas criadas para que o pensamento e o sentimento
possam existir numa escrita que incessantemente se questiona, ora se perdem ora
se encontram, revoluteando como imagens num espelho, como dizia Fulcanelli, no
espelho que é este livro onde a autora (gémea ou mulher com rabo como um
ornitorrinco? alguém pagando o pato ou madame bovary entrevistadora de
Templiakov? poetisa dando comida às plantas carnívoras ou gestora da Coisa
Perdida onde se pesquisa a língua?) se expressou.
Essa língua, afinal, que dá origem a
universos alternativos – ou seja, da escrita – que foi segundo os cânones o
princípio do Mundo e que é pelo menos, indestrutivelmente e enquanto houver
tempo, memória e terra para os conter, aquilo com que se faz a vida passível de
existir num livro, em todos os livros, neste livro simultaneamente atormentado,
complexo, sugestivo e onde, afinal e ao cabo, se consegue aperceber uma difusa
e conquistada e sentida alegria de existir.
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