segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Três poemas de José Pascoal

 


Javier Pagola



DOIS RAPAZES

Dois rapazes discutem Parménides
Em plena livraria.
Pura perda de tempo.
Descobrirão mais tarde.

Ao mesmo tempo, manifestam o desejo
De ler Santo Agostinho
No original.
Não lhes faz mal.

Também já fui de bicicleta
Aos Alpes do pensamento.

 

A PEDRA NO SAPATO

Se tens a pedra no sapato,
Não chores o leite derramado,
Olha bem o dente a cavalo dado,
Não te percas no mato.

Isto, em sentido lato,
Com música de fado,
Letra de encapuzado
E paciência de gato.

Se não tens, deita-te a correr
Estrada fora,
Feito pedra rolante.

Pois, chegarás a ver,
Perto da aurora,
Os pés de barro dum gigante.


O TERAPEUTA BELGA

 

Preparai as vias respiratórias.

Vamos cantar.

 

Um velho sentou-se na curva da estrada

E cumprimentou o mundo.

Pode passar.

As virgens, por exemplo, passam apressadas

E brancas,

Comprimindo o vento nos lábios.

Mas eu (ele, o outro) disse que íamos cantar.

A canção da mãe e dos seus dois filhos.

Da cabra e das suas duas crias.

Do vigário e dos seus dois meninos de coro.

Do vento e das suas duas velocidades.

Moderado, forte com rajadas.

Ora, abri a boca enquanto vos enfiam o dedo

E estareis prontos para cantar

Ai solidão

Ai solidão

 

O velho cumprimentou o mundo a seu modo.

 

Ao sul, levanta-se a poeira do deserto

E o homem da gaiola corre atrás

Do pássaro português.

Aonde? Perguntam, boquiabertos,

E espantam a ave

E espevitam o homem.

O velho, sentado e sentido, chora,

Ultrapassado por um carro funerário

(Ocasião para esclarecer que os caracóis

Não vão ao enterro deste homem).

E a canção? Perguntam, desapontados.

Que querem? Eu não sou o homem do saco

E secaram-se-me os ossos,

Que não são flautas

(Longe de mim tal alegria),

E a canção fica enterrada no peito,

Tal como a gaiola no homem

E o pássaro na gaiola.

 

E, depois, vou-me embora,

E, triste, deixo para trás

A cidade e o campo,

A terra, o mar e o céu,

E, de joelhos,

Toco no pássaro morto na erva

E não penso mais.


José do Carmo Francisco, Breve dissertação para uma rua de Lisboa

 


    Não por acaso (e nada acontece por acaso) há quem chame às ruas de uma cidade «artérias» e poderia também chamar-lhe «veias» pois a cidade, qualquer cidade, não deixa de ser um corpo e o sangue ora venoso ora arterial corre no coração dos seus habitantes sejam eles naturais ou adoptados. No meu caso pessoal posso dizer que sou «lisboeta» desde 1966 e esta Rua (Academia das Ciências) sempre fez parte dos meus roteiros. Por aqui passei a caminho do Hospital de Jesus, do Cinema São Jorge e do Instituto Britânico. No primeiro caso para ser operado duas vezes a um quisto dermóide gigante, no segundo caso era sempre ao Domingo de manhã que o Cineclube Católico dava as suas sessões no Cinema São Jorge, no terceiro caso para estudar inglês que muito útil foi no meu trabalho no Departamento Operacional de Estrangeiro do Banco Português do Atlântico (1966-1996) e mais tarde (2005) quando a minha filha mais velha casou com um súbdito britânico nascido na cidade de York. Tanto quanto sei esta Rua da Academia das Ciências começou por se chamar Rua do Arco a Jesus sendo este Jesus, nada mais e nada menos, o Convento quase ao lado da Rua, do Hospital e da Igreja do mesmo nome que era ao tempo (1935) paroquial das Mercês (e julgo que ainda se mantém) e é curioso porque no ano do livro «Ruas de Lisboa» não tinha dístico municipal nem número de polícia. Há fotógrafos que dizem que a vida é a preto e branco e não a cores; continuo a pensar que eles têm toda a razão. Esta rua por onde tenho passado desde 1966 até hoje 2021 nada tem das cores artificiais; continua a preto e branco como as minhas lágrimas e o meu sangue pisado.  


Scorpions&Vanessa Mae, Still loving you

 



quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Para um minuto de meditação - 133

 

Doze jogadores cubanos de beisebol fogem para os EUA


Metade da seleção cubana sub-23 de beisebol aproveitou o fim do mundial do México para desertar do seu país de origem.

Após o Campeonato do Mundo de Beisebol no México, doze dos 24 beisebolista da seleção sub-23 de Cuba desertaram rumo aos Estados Unidos da América. Trata-se da maior deserção coletiva de uma equipa desportiva cubana nos últimos anos.

As autoridades cubanas não ficaram contentes com o sucedido.

(Dos jornais)

Sem comentários


Dois poemas de Cristino Cortes

 


ns



POEMA PARA CARLOS CARRANCA, NO DIA DA SUA MORTE

 

Talvez, quem sabe, meu Caro Carlos Carranca, CC como eu

Já o tenho pensado e hoje é maior ainda a razão:

Se vestisse a tua capa de Coimbra, quem sabe se no coração

Não ficaria diminuída esta saudade que arrasto ao léu …

 

À guitarra não te poderia acompanhar, tal capacidade

Me falta. Mas sempre soube reconhecer-te a beleza da voz,

O timbre, a boa colocação, oh irmão de tantos de nós

Amigo e camarada, sem jamais ter vivido na tua cidade!

 

A poesia nos uniu, oh companheiro. É de olhar embaciado

Mesmo bem triste que me curvo, nesta última e sentida homenagem;

Tão prematura, no fundo algo imprevista, te foi esta viagem

Contigo levando o muito sonho que querias ver realizado…

 

Homem bom, digno, decente, aqui te deixo esta flor, e um abraço

Oh poeta que já lá estás, nome sublinhado a grosso traço.

 

29/8/2019

 

 

TRIBUTO E GRATIDÃO

 

Para António Salvado

 

Marcam os poetas os lugares que para viver escolhem

Ainda que a mesma seja acaso ou de circunstâncias

Dificilmente repetíveis fruto… Vindouras vivências

Justificá-la-ão a seguir - quando as terras os merecem.

 

Assim em Castelo Branco. Um grande poeta aqui festejo

Sempre que passo, indo ou vindo. Não podendo parar

Não deixo de o saudar, como que a taça empunhar

Bater-lhe a pala se fôssemos tropas. E assim cumpro o desejo.

 

Sei que compreende o silêncio, esta falta de contacto

Que outras circunstâncias mal explicam. Sabe, no entanto

Como lhe estou grato, como comungamos neste espanto

Das palavras que nos visitam, e nem sempre abunda o tacto.

 

Aprecio-lhe o testemunho, sábia constância ele a tem.

É bem verdade sagrarem os poetas os lugares que escolhem.


"Vemos, ouvimos e lemos - não podemos ignorar!"

 


ns


   Pela importância deste texto, que será certamente iluminante, transcrevemo-lo do órgão de informação que o deu a lume – também com vénia ao seu autor – referindo de antemão que as tentativas de ocultação de vozes críticas foram durante anos e anos uma das características da entidade universal que aqui é referida no seu polo francês e que, dessa forma, se certificou como uma verdadeira “entidade criminal”, tão inquietante – ainda que de diferente timbre – como a outra oriental que, de maneira directa e nefanda, hoje por hoje elimina brutalmente pessoas e colectivos que não aceitem ou comunguem nos seus postulados doutrinários e pretensamente fideístas.


Igreja Católica francesa "envergonhada" pede "perdão" a vítimas de abusos sexuais

   Relatório diz que mais de 300 mil menores foram abusados e agredidos em instituições da Igreja Católica francesa. "O meu desejo neste dia é pedir o vosso perdão", disse bispo Eric de Moulins-Beaufort. O relatório responsabiliza diretamente clérigos e religiosos por 216 mil vítimas, entre 1950 e 2020.

   O episcopado francês expressou esta terça-feira “vergonha” e pediu “perdão” às vítimas de crimes de pedofilia, após a divulgação de um relatório que revela que mais de 300 mil menores foram abusados pela Igreja Católica francesa durante 70 anos.

   Elaborado por uma comissão independente e apresentado esta terça-feira em Paris, o relatório concluiu que mais de 300 mil menores foram abusados e agredidos em instituições da Igreja Católica francesa, responsabilizando diretamente clérigos e religiosos por 216 mil vítimas, entre 1950 e 2020.

   “O meu desejo neste dia é pedir o vosso perdão, o perdão de cada um de vós”, disse o bispo Eric de Moulins-Beaufort, presidente da Conferência Episcopal Francesa.

   De acordo com o relatório, cerca de 216 mil crianças ou adolescentes foram abusados ou agredidos sexualmente por clérigos católicos ou religiosos. O número de vítimas sobe para 330 mil quando considerados “agressores leigos que trabalham em instituições da Igreja Católica”, nomeadamente nas capelanias, professores nas escolas católicas ou em movimentos juvenis, segundo o presidente da Comissão Independente sobre os Abusos da Igreja (Ciase, na sigla em francês), Jean-Marc Sauvé, durante a apresentação do relatório à imprensa.

   “Estes números são mais do que preocupantes, são condenáveis e não podem de forma alguma ser ignorados”, disse Jean-Marc Sauvé, explicando que a estimativa revelou que cerca de 80% são vítimas masculinas.

   “As consequências são muito graves”, disse Sauvé, adiantando que “cerca de 60% dos homens e mulheres que foram abusados sexualmente revelam grandes problemas na sua vida sentimental ou sexual”. O relatório de 2.500 páginas identifica cerca de 3.000 abusadores — dois terços dos quais padres — que trabalharam na igreja francesa durante este período.

   Para a comissão, as conclusões do relatório revelam um fenómeno de “natureza sistémica”, cuja responsabilidade a Igreja Católica deve reconhecer, assegurando “reparação” financeira para todas as vítimas.

   De acordo com Sauvé, há 22 alegados crimes que ainda não prescreveram e foram encaminhados para as autoridades judiciais. Mais de 40 casos demasiado antigos para serem processados, mas que envolvem suspeitas sobre abusadores ainda vivos, foram encaminhados para análise dentro da própria Igreja.

   Olivier Savignac, líder da associação de vítimas “Parler et Revivre”, que contribuiu para a investigação, sublinhou, que a elevada proporção de vítimas por agressor é particularmente “aterradora para a sociedade francesa e para a Igreja Católica”. O relatório surge depois do escândalo que envolveu o agora ex-padre Bernard Preynat, condenado, no ano passado, por abuso sexual a uma pena de prisão de cinco anos, por ter abusado de mais de 75 rapazes durante décadas.

in “Observador”

 

Nota – Importa referir que, como a História nos esclarece liminarmente, estes abusos e outras demais atitudes de opressão obscurantista foram sempre a característica estrutural da ICAR, em qualquer país. Ainda que membros dela, gente bem formada e sem fanatismos, hoje como ontem agissem individualmente com dignidade pessoal e respeito humano, verdadeiramente de louvar e colocar em justa evidência. – ns


Bel Canto Choir Vilnius, Laudate Dominum

 



segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Para um minuto de meditação - 132

 

   “Gerald, aborrecido e triste, perguntava a si próprio: valerá o trabalhão que se tem para se conservar a vida uma vez que ela se encaminha fatalmente para a morte?”

Mary Plum

 

  “Mas será que, como dizia Sartre numa frase depois célebre, o Inferno são os outros?”

Alfred Vogler

 


Três poemas de H. P. Lovecraft

 


ns



O LIVRO

 

O lugar era escuro e poeirento, meio perdido

Num labirinto de vielas junto aos molhes,

Cheirando a coisas raras trazidas de outros mares,

Envolto em estranhas névoas agitadas p’lo vento.

 

Uns vidros em losango, que a geada e o fumo velavam

Deixavam entrever pilhas de livros, como torcidas árvores

Desde o sobrado ao tecto – putrefacto amontoado

De sapiência antiga a baixo preço. Enfeitiçado

 

Entrei,  e dum montão cheio de teias

Um cartapácio tirei e ao acaso o folheei,

Estremecendo ao ler palavras raras  que pareciam

Esconder de olhares humanos  um prodigioso segredo.

 

E então, quando o vendedor astuto  em volta quis achar

Apenas um eco de gargalhadas pude encontrar.

               

 

A PERSEGUIÇÃO

 

Guardei o livro debaixo do casaco, preocupado por furtar

Tal objecto aos olhares em semelhante sítio.

Enquanto apressava o andar ao longo das velhas ruas

Do porto, virava a cada instante   receoso   a cabeça.

 

Opacas e furtivas nas vacilantes casas de tijolo

As estranhas janelas espreitavam os meus rápidos passos

E, intuindo o que almejavam custodiar,  ansiava

P’lo clarão redentor de um puro azul de céu.

 

Ninguém me vira furtá-lo... e no entanto

Ainda tinha na cabeça uma ôca risada,

E  percebi que mundos de nocturna maldade

Enchiam o volume que havia cobiçado.

 

O caminho tornava-se cada vez mais estranho. Os muros

Demenciais assemelhavam-se. E atrás de mim,

Ao longe, uns passos invisíveis ressoavam.

 


A CHAVE

 

Não sei que deambulações pelas desertas

E estranhas ruas do porto me levaram

Até ao lar. No vestíbulo  comecei a tremer

Lívido  com a pressa de entrar e de me achar

Trancado a ferrolho por trás da pesada porta.

 

Tinha o livro que indicava a via oculta

Que atravessa o vazio e as suspensas telas espaciais

Que sustentam em suas raias os mundos sem dimensão

E guardam a eternidade no domínio que lhe é próprio.

 

Por fim  era minha a chave daquelas vagas visões

Espirais ao sol poente   bosques crepusculares

Gerando o opaco nos abismos além dos limites da terra

Ocultando-se como memórias de infinidade.

 

Era minha a chave,  mas enquanto ali estava

Sentado  e balbuciando

No sótão  uma leve pressão fez abanar a janela.

 

 

in “Os fungos de Yuggoth”

“Black Sun Editores”

Tradução e prefácio de ns


Um texto de Lino Mendes

 

HUMANISMO



Eileen Agar


   Não somos todos iguais nos conhecimentos, não somos todos iguais quanto à saúde, mas somos todos iguais sob o prisma do humanismo, todos somos seres humanos, seja-se ”sem abrigo”, seja-se um alto funcionário do estado. Mas a sociedade ainda não entendeu que seja assim. Os próprios cidadãos ainda não entenderam que é urgente um NÃO à subserviência.

   Aqui não se trata de poderes, de dinheiros, pura e simplesmente de “valores humanos”. E se José António Saraiva, num artigo que nos faz pensar, diz que caminhamos para a barbárie, eu atrevo-me a lançar esta questão polémica. Claro que não se pretende abolir o “respeito hierárquico”, não queremos transformar a “liberdade” em “libertinagem”, as regras da “boa educação” são sagradas.

   Agora não podemos voltar aos tempos do “Senhor” e do “Servo”, que ainda no antes do 25 de Abril eram latentes. Fui testemunha, era criança, e desde logo fiquei marcado para hoje ser um defensor da igualdade de tratamento.                                                                  

   É esta a missão a que nos propomos, que para uns até será utópica, mas em que eu acredito - abrir os ”Caminhos da Igualdade Humana”

   Recordo-me da rivalidade vila-campo, em que eram estes que se comportavam como inferiores na maioria dos casos. E há muitos anos que a situação se alterou.

   Recordo-me de as mulheres da vila chamarem cabreiras às do campo. E estas ripostavam que eram cabreiras para guardar as cabras da vila. E hoje “todos somos Montargil”

   No respeito pelos valores humanos, acabemos com os complexos de inferioridade. Mas somos nós, os menos protegidos, que nos temos que impor, porque ainda há muitos arrogantes que desconhecem o humanismo.

   Ainda agora se realizou mais um acto eleitoral e quer um “sem-abrigo” quer o presidente da República, cada um valeu um voto.

Montargil, 28/09/021


Franz Schubert, Trio op. 100 (Barry Lindon)

 



quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Para um minuto de meditação - 131

 

Mulheres afegãs afastadas da Universidade de Cabul

 

O reitor talibã da Universidade de Cabul proibiu professoras e alunas de frequentarem a universidade, até ser criado "um ambiente islâmico". Aulas através de uma cortina são uma hipótese.

(Dos jornais)

 

  Ambiente islâmico? Eles chamam isso ao reacionarismo fanático discriminatório? É a novilíngua islamita a funcionar. Os ingénuos, maioritariamente líderes políticos ocidentais que esperavam que os talibãs estivessem sériozinhos, aqui têm a resposta esclarecedora. Ou serão tão estúpidos que ainda não perceberam?

Joaquim Barbosa

 

  No Iraque são estes mânfios. Em Itália são uns semelhantes politicões que se indignaram por uma estátua de homenagem a uma camponesa ser demasiado sexy. Irmãos em politicamente correto e em estupidez maldosa. “Porca miséria”!

Cid Monteiro

 

   Lembram-se daquele cavalheiro da UEFA que tempos atrás, por mando da sua entidade, veio dar indicação aos operadores televisivos que se abstivessem de focar as moças airosas da assistência? Lembram-se? Pois isto de talibãs, fratelli dirigentes transalpinos e líderes patuscos é tudo a mesma “tropa”. São irmãos colaços dos gandulos que nos tempos dele tentavam agredir e enxovalhar o pintor Cézanne por ter exposto numa montra o “retrato” duma rapariga em trajes menores… O que os move não é a consideração pelas mulheres mas sim o desprezo e a hostilidade p’la sua condição de seres sexuados e livres!

ns


Três poemas de Carlos Garcia de Castro

 


ns



“MENINA E MOÇA”

 

A Grande Guerra mundial nazi

deixara às escolas um destino hermético.

 

Distantemente, Portugal morria.

 

– Foi quase natural ter-me formado.

 

Como na história da “Menina e Moça”,

saí de casa com legais propinas.

 

Havia à noite os rádios e o cinema.

Chegava a ser bonito ir-se para a Tropa,

fardar-se de Aspirante, uma hierarquia,

para estar às ordens dum Quartel em paz.

Era saudável ser comerciante.

 

Solenemente, Portugal vivia.

 

Por compleição, o Livro das Saudades,

com professores – Bernardim Ribeiro,

que às raparigas inspirava os vícios

dum namorado, casamento, filhos.

 

Em grupo se lançavam vários ócios,

“Cahiers du Cinema”, a JUC, a Opus Dei,

modernos pajens, menestréis compostos.

 

Nenhum de nós, tomado, em liberdade,

– de alguma vez deixara o fingimento.

 

Um templo nos resolvia,

– o Banco de Portugal,

Bravos rapazes de gravata e fato.

As raparigas eram Enfermeiras

ou professoras de Letras.

 

Até as noivas, de inocência amarga,

que os padres e as famílias alisavam,

com habilidade nos surgiam virgens,

 

– nas ocorrências dum País alegre!

(Eu próprio me casei vestindo fraque).

 

Por toda a parte havia a sedução

de amáveis permissões corporativas

à Casa dos Estudantes do Império.

 

Anos Cinquenta, as dores em segurança.

 

“Por sobre um verde ramo acima d’água”,

meu pai se contentou com a minha Formatura.

– Também se fazem nojo as coisas entre si.

Trivialmente, Portugal ouvia

todos os dias as estações da Rádio,

com Vitorinos, Pessoas,

as proteínas nacionais de acesso.

 

Qualquer artista serviçal de sempre

cantava e acentuava o Cais/Sodré.

 

– Foi quase natural ter-me formado.

 

 

A ERNEST HEMINGWAY

 

Quando é no verão e o vinho está gelado,

à sombra luminosa do pós-guerra

que os toldos espalham de amarelo vivo,

as raparigas cheiram a morango,

cosmopolitas de higiene química.

 

Comemos frutos rígidos à mão

para simularmos o bravio do sol,

só pelo gosto ácido e vulgar

que os nossos dentes têm de morder

ainda as espoletas das granadas.

Tomamos banho a nadar no mar,

vamos de férias todas as semanas

para nos amarmos nos hotéis de luxo

ao pé das praias, lagos, das montanhas,

onde haja uma esplanada para vivermos.

Lemos jornais e conversamos manso,

fumamos, apostamos nas corridas,

Martini branco, seco, sugestivo,

pessoas vivas, débeis ou dramáticas

do coração anónimo da paz.

 

Então os homens de falar pausado

serenamente com a pele tisnada,

escanhoados, têm olhos verdes,

olhos de cor, suscitam as mulheres

 

e toda a esplanada para as trincheiras.

 

 

GENÉRICO

 

Nas lojas, antigamente,

havia o Mestre, que era o dono delas.

As suas Artes eram seu Ofício,

para que ensinava sempre um Aprendiz.

O Mestre tinha o seu Oficial,

homem já feito, casadouro às vezes,

que ele criava à mão das ferramentas.

O Mestre era o patrão, e em sua casa

todos viviam como pai e filhos.

Lá tinham percentagem e alimento,

que a carne é corpo para criar o espírito.

Da profissão faziam a família,

comunalmente a sua lealdade,

e cada obra, ideia produzida,

era o louvor unido deles todos

que em troca dos seus ganhos ao freguês

levavam pronto como novidade.

Esse freguês em pouco procurava

aquelas coisas para o seu enfeite,

delas se dava à sua precisão.

Ainda quase não havia máquinas,

das suas mãos directas, com aprestos,

provinham simples complicadas peças

de sentimento e cérebro trasladadas

da vida para o tempo, persistentes.

O quadro se fazia de esquadria,

a roda se fazia de redondo,

as regras eram quem dizia o ser,

ditavam liberdade e consciência.

– Deus era sempre a explicação distante

e perto de qualquer matéria-prima.

 

Também a História pode ser um sonho.

 

Da Antologia “Fora de Portas”

Editada pela “Escrituras” de São Paulo (Brasil)

Prefácio de ns


Antologia

 

ALGUNS TEXTOS DE JORGE DE LIMA ALVES




DA FOTOGRAFIA

   Para ver bem é preciso tempo. É preciso vagar. É preciso ver e rever. Voltar mais do que uma vez aos mesmos locais é, muitas vezes, essencial para um fotógrafo.

   Dito isto, a essência da fotografia, para mim, é ser misteriosa, na medida em que o que quer que seja que procure manifestar, o seu 'objecto' permanece invariavelmente por revelar. O segredo de qualquer fotografia depende sempre mais de quem a vê do que de quem a tirou.

   Enquanto fotógrafo, o que procuro está para além da fotografia. É algo que não pode ser registado e isso é, precisamente o que faz o seu valor aos meus olhos. Pois o que queremos e não conseguimos obter ou lograr - o poder que não temos - é, talvez, o que melhor nos define.


UM SONHO E MUITAS CANÇÕES (Para John Berger)

   Esta noite, sonhei em inglês. Sem dúvida influenciado por um livro de John Berger que estou a ler no original, sonhei que estava a ser entrevistado por uma jornalista britânica que, a certa altura, me perguntava o que é que eu achava da voz e da maneira de cantar do Ian Curtis. Num inglês impecável, entre muitas outras considerações que não consigo recordar, afirmei que ele não cantava para as pessoas, nem sequer para si próprio, mas para procurar libertar a sua alma atormentada, mesmo sabendo que isso é impossível. Libertá-la de quê? Libertá-la da morte, claro, ou da ideia da morte, penso eu. É por isso, acrescentei, que naquela forma tão intensa e complexa de se entregar ao canto havia uma grande parte de revolta e um desejo de formular algo que nunca fora formulado. Aos meus olhos, pelo menos, havia nele uma vontade de superação, de si próprio e da própria vida.

   No seu livro (Confabulations), John Berger escreve: “The essence of songs is neither vocal nor cerebral but organic”. No mesmo parágrafo, diz ainda: “We find ourselves inside a message”. É verdade para a maior parte dos casos, mas outros cantores, entre os quais Ian Curtis, vão muito para além da letra que cantam. Eles próprios são a mensagem, sabendo perfeitamente que a linguagem é demasiado pobre para comunicar o que sentem e o que são. De resto, muito provavelmente, não sabem bem o que sentem ou o que são, pelo que só a música e o canto podem exprimir a sua angústia. Como refere Berger: “…songs can express the inner experience of Being and Becoming”.

   Isso explica, pelo menos em parte, julgo eu, porque é que certas vozes (estou a pensar na Cesária Évora, por exemplo, que John Berger evoca no seu livro) nos tocam tanto, nos comovem tanto, mesmo quando não compreendemos a língua em que se exprimem. Alguns cantores, digo eu, conseguem, por momentos, apoderar-se das nossas almas! Já agora, deixem-me que vos diga que sou dos que ligam muito pouco às letras (em geral, muito fracas), preferindo focar-me na musicalidade das palavras e dos corpos. É no corpo dos cantores, no seu rosto, nos seus olhos, nos seus gestos e postura, que a música e letra se transforma em arte.


DA LEITURA

   Como autor, acho que o mais fascinante de um livro é, talvez, aquilo que ele me esconde. Por outro lado, o que procuro nos livros dos outros é, muitas vezes, aquilo que só eu poderia lá encontrar. Revelações sobre mim próprio, vislumbres do que eu poderia ter sido, restos do que fui e tinha esquecido. Os livros que mais gozo me dão são, naturalmente, aqueles que eu gostaria de ter escrito. Aqueles que “escrevo” à medida que os vou lendo.


ARIZONA


   O Arizona tem uma variedade impressionante de paisagens. Na verdade, as mais extremas que se possam imaginar, entre as quais esses locais absolutamente surreais que são a Petrified Forest e o Painted Desert (que se pode observar nesta foto). Dois universos geológicos espantosos, insólitos, onde não custa nada acreditar que estamos noutro planeta, numa galáxia bem longínqua. Vejam-se, por exemplo, as árvores fossilizadas, com as suas estrias loucas, com cores de pedras preciosas. Diz-se que têm 200 milhões de anos!

*

   Ainda lá estava e já sentia saudades. Saudades do calor e do silêncio, um dos silêncios mais musicais que jamais conheci. Saudades daqueles céus sem fim, onde há sempre nuvens para acentuar o azul profundo do céu (um céu tão luminoso que a estrada parece pavimentada de prata). Saudades de poder conduzir interminavelmente, com a paisagem a desenrolar-se à minha frente como um filme apaixonante.


O VENEZIANO COXO

   Encontrei-o numa feira de antiguidades que visitei por acaso, numa terriola da província. Ia a caminho de outra cidade e parei a meio do caminho para almoçar. Quando procurava um restaurante, reparei que estava a decorrer uma feira e decidi, depois do almoço, ir espreitar. Na verdade, era mais uma feira da ladra do que de antiguidades.    

   Havia de tudo: roupas e livros usados, quinquilharias, loiças, o costume. Quando me aproximei de uma banca com velharias, ouvi um senhor barbudo exclamar: “Macacos me mordam se não é um veneziano coxo!” Nas mãos segurava uma espécie de arlequim de lata, com uma chave para dar corda nas costas. Como viu que eu o olhava com curiosidade, lançou-me: “Nunca tinha visto um veneziano coxo ao vivo, conhecia apenas uma gravura que vi num livro que o meu avô me mostrou quando eu era adolescente.    

   Estes pequenos autómatos foram feitos em Veneza no século XVIII, por um relojoeiro chamado Lindopel, se não estou em erro. Era famoso pelos seus homúnculos mecânicos, muito em voga na altura. Este, a confirmar-se a minha intuição, ficou conhecido como Veneziano Coxo. É considerado a sua obra-prima, concebido e realizado já numa idade muito avançada, por encomenda de um sultão turco cujo nome não me ocorre. Creio que não haverá mais de meia-dúzia deles no mundo.” O dono da banca, um rapaz excepcionalmente novo e bem parecido, tinha-se aproximado entretanto e o potencial cliente perguntou-lhe timidamente: “Está a funcionar? Posso experimentar? Posso dar-lhe corda?” Perante o aceno afirmativo do feirante, deu corda ao boneco e soltou-o no chão. Para meu espanto, o boneco deu meia-dúzia de passos, coxeando, de uma forma engraçada. Tanto o feirante como o barbudo riram à gargalhada. “É ele, é!”, quase gritou este último radiante. Voltando-se para o vendedor perguntou com visível ansiedade: “Mas funcionará realmente?” Sem uma palavra, o outro pegou na marioneta mecânica, deu-lhe corda e soltou-o no passeio. Para meu grande espanto, desta vez, o arlequim andou normalmente, sem coxear minimamente. Os dois homens olharam um para o outro com aquele olhar cúmplice dos iniciados. O barbudo quis saber: “Quanto é que está a pedir por ele?” “Dois mil euros”, respondeu o outro. “Nem está caro”, suspirou o barbudo, “infelizmente não posso dispor desse dinheiro neste momento”. Foi nessa altura que intervim, empolgado pelo entusiasmo deles: “Posso experimentar também?” O rapaz passou-me o boneco para as mãos e foi a minha vez de, com mil cuidados, dar-lhe corda e colocá-lo no chão. O robô deu seis passos exactos a coxear (contei-os), e os outros dois riram a bom rir. O barbudo explicou: “O autómato foi concebido, a pedido do tal sultão, para só funcionar bem nas mãos de quem tem um coração puro. Quem não o tiver, só conseguirá fazê-lo coxear”. Ri-me: “Isso é absurdo”. “Pode não acreditar, mas é assim que reza a lenda”, garantiu o meu interlocutor. “Este senhor tem razão” acrescentou o vendedor muito sério. “Poucas pessoas conseguem pô-lo a andar sem que ele coxeie. Não sei explicar porquê, mas é assim, como pôde verificar”.

   Fosse como fosse, o brinquedo era lindo, estava em muito bom estado e eu nunca tinha possuído qualquer objecto do século XVIII. Por isso, perdi a cabeça e comprei-o. Ainda o tenho, está ali na estante, em posição de destaque para mostrar aos amigos. Uma coisa é certa: até hoje, nunca nenhum deles conseguiu pô-lo a caminhar direitinho, como fez o rapaz que mo vendeu.

 

 

“LE GANT ROUGE”



   Edmond Rostand (na foto) é sobretudo recordado por «Cyrano de Bergerac», uma genial peça de teatro que já foi adaptada ao cinema várias vezes. Agora, mais de um século depois de ter sido escrita, anuncia-se em França o lançamento de uma outra sua peça, escrita aos 20 anos, que permanecia inédita. Intitulada «Le Gant Rouge» («A Luva Vermelha») a obra só foi levada à cena (em 1888) porque o seu autor custeou as despesas. Curiosamente, em 1903, quando já era um autor de sucesso, Rostand voltou a pagar ao mesmo director teatral, mas desta vez para que a peça não fosse reposta, já que ficara traumatizado com a ferocidade de crítica na altura da estreia. «Le Gant Rouge» será publicado, no próximo dia 10, numa edição que inclui uma selecção de cartas que o escritor enviou à sua noiva nessa altura.


NA MORTE DE ALAN SILLITOE

   Morreu Alan Sillitoe. O nome não deve dizer grande coisa às gerações mais novas, mas quem gosta verdadeiramente de literatura, sabe que ele foi uma figura incontornável nos anos 50 e 60.

   A fama deveu-a essencialmente a dois romances escritos numa linguagem crua e dura em ruptura com a cultura dominante da época em que foram escritos: Sábado à Noite, Domingo de Manhã (1958) e A Solidão de um Corredor de Fundo (1959).

   Mesmo se detestava a etiqueta, Sillitoe fez parte dos chamados «angry young men», uma geração de intelectuais britânicos, como John Osborne e Kingsley Amis, cuja rebeldia e espírito crítico marcaram toda uma geração de europeus. A minha dívida para com todos eles é muito grande.


DA CULTURA

   Cada vez mais, a cultura de que falam os jornais não passa de uma feira de vaidades. A verdadeira cultura é clandestina. É uma resistência heroica à vaidade dos outros. É uma luta de todos os instantes, contra nós próprios e a ideia da morte. A verdadeira cultura é aquilo que nos transforma em nós próprios a cada instante. Não há nada menos fútil, nem mais distante da cultura institucional.

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Jorge Lima Alves nasceu no ex-Congo Belga, filho de emigrantes portugueses. Entre 1969 e 1976 viveu em França, onde estudou, trabalhou e publicou o seu primeiro livro (Selles, 1975). Jornalista desde sempre, colaborou com inúmeros jornais e revistas, tanto em Portugal como no estrangeiro, sempre na área da Cultura. É igualmente tradutor e autor de livros de poesia, teatro, ficção e ensaio, tendo também publicado vários livros de viagem onde a fotografia ocupa um lugar destacado.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...