segunda-feira, 8 de maio de 2023

Um poema de José Carlos Breia

 





DOS REIS

 

Dos quatro reis que eram três,

porque um deles se perdeu

e seu nome se apagou,

um viria dos caldeus,

da velha terra de Ur,

era dos três o mais velho,

já na casa dos setenta,

chamava-se Belchior,

trazia ouro consigo.

Outro da Arábia Feliz.

O terceiro destes reis,

que se chamava Gaspar

e só tinha vinte anos,

viria de terra farta

banhada pelo Mar Cáspio.

Trazia mirra na bolsa.

 

Deixei Baltazar para o fim,

o que era feliz da Arábia,

que tinha quarenta anos

era mouro e muito alto.

Com ele trazia incenso,

uma língua mui prudente

com que baralhou Antipas

sobre os motivos que tinham.

 

Mas como é que se encontraram

Estes reis e para quê?

 

Diz a lenda que uma estrela

( era um ovni com certeza )

a cada um encontrou

e os levou de caminho

para verem um menino

que uma luz por cima tinha.

 

Dos ouros, incensos, mirras

nunca mais se ouviu falar.

Dos três reis nunca se soube

se voltaram donde vinham

ou se o ovni os levou

como fizera ao profeta.

 

Se viram deus não se sabe.

Mas que viram um menino,

chorando por entre as palhas,

diz a lenda que é verdade.

 

Ao quarto rei que perdido

perdeu o nome também

que terá acontecido?

Que trazia nos alforges?

Quem sabe donde viria?

Talvez do Reino Amarelo

e chá consigo trazia.

 

O aroma da infusão,

o delicado sabor,

talvez o levasse ao sonho,

talvez à meditação.

 

Assim, ao perder a estrela,

ficou ausente da história.

Mas pode tê-la sonhado

 

Agora, ao beber meu chá,

penso muito nesse rei

que nunca tendo chegado

nunca ao menino deu nada.

 

Dos ouros, incensos, mirras

nunca mais se ouviu falar.

Mas o chá que o rei foi dando

pelo caminho que achou,

rescende na minha taça

e faz-me sonhar também

o sonho que, acaso teve,

o rei que nunca chegou.

 

Do livro “OUTRO LADO”


Nicolau Saião, Sobre um poema de José Régio

 



“Toada de Portalegre” - dois rascunhos prévios

 

A poesia, já se sabe, é a seu modo um processo de acumulação e juntura. Qual o seu secreto encadeamento, qual o percurso que toma a sua ordenação, de que forma o poeta talha e restaura, observa e finalmente conclui? Perguntava Camus, a certo passo dum texto seu: “Quem testemunhará por nós?” e respondia de imediato: “As nossas obras”. Apontava, é claro, para o testemunho da obra acabada no seu ciclo de coisa espiritual, de matéria interior que transporta para os vindouros, com toda a sua carga própria, as perguntas e as respostas que nos é dado formular.

Mas, em simultâneo, é fascinante e importante a mais dum título que tanto quanto o possamos fazer nos debrucemos sobre o suporte em si, seja no caso da poesia ou da pintura, da música ou da filosofia, serve dizer: nos ramos das actividades superiores que, por o serem, não estão dependentes de eventuais manobras ilegítimas de tiranos ou de equívocos mandantes, ainda que a matéria em que se revelem esteja por vezes submetida a ditames exteriores à vontade de quem as utiliza. Porque, nas suas vias interiores, os poetas não têm dono, não são assimiláveis pelos que, frequentemente, tentam à custa deles estabelecer currículos, efectuar brilharetes duvidosos, bolsar jaculatórias de nulo poder encantatório. Não falando, é claro, no caso extremo de quem subtrai à visão e fruição de outrem as produções com que os autores buscam interpelar o seu tempo e o tempo a vir.

Já vários ensaístas e poetas têm analisado proficientemente a questão dos vestígios. Deixa-se adivinhar a seguinte pergunta: o rigor interior duma obra pode ser divisado, digamos, no rigor do suporte? É inevitável lembrarmo-nos de Balzac e das sucessivas emendas a que submetia os seus escritos, cujos gatafunhos desesperavam os tipógrafos, ou das partituras de Schubert frequentemente lançadas num qualquer papelucho que lhe caía nas mãos, ou até sobre o tampo de mesas até que um fortuito papel salvador lhe chegasse…

Como se estrutura pois a matéria criada, de que maneira peculiar voga e navega o processo criador - tal pode entrever-se pela observação desses vestígios que os diversos autores nos legam ou simplesmente vão deixando na sua viagem pelo tempo que lhes coube viver. No caso que a seguir abordaremos isso naturalmente acontece.

Cedidas em fotocópia pelo Dr. Manuel Inácio Pestana - a quem fora oferecida reprodução das mesmas pelo coleccionador António Capucho - temos na nossa frente as duas versões prévias (deverá chamar-se-lhes rascunhos?) do conhecido texto regiano que fez e muito bem momentos inesquecíveis de muitos leitores tanto lusitanos como brasileiros. Dediquemos-lhes atenção, visando deixar algumas pistas consistentes.

A primeira versão, exarada na bela e clara letra de Régio, tem emendas em todas as páginas, sendo de assinalar que a “emenda” da décima é um acrescento no verso da mesma; acrescento significativo, uma vez que é a famosa reflexão que começa: “O amor, a amizade e quantos/ Mais sonhos de ouro eu sonhara,(…)” aliás também emendada na oitava linha. As páginas 2, 5, 7 e 10 são ilustradas por desenhos como que ao correr da pena.

Contudo, apesar de o serem, diria que nos mostram a preocupação plástica do poeta duma forma incisiva: o desenho da página 10, por exemplo, patenteia-nos um rosto arrepanhado, dorido, inclinado sobre a esquerda (tradicionalmente o lado do coração), um rosto que o poeta frequentemente plasmou em desenhos diversos. Na segunda versão, apenas uma palavra foi substituída na primeira linha da oitava página - retomando aliás a palavra escrita na primeira versão: desgraçados em vez de enforcados, que para Régio decerto marcava em demasia a sequência da estrutura do poema. De assinalar, ainda, que nenhuma destas versões manuscritas contém a palavra atónito, que se lê na versão publicada em livro (“Deixado só, nulo, atónito…); nelas, a que consta é a palavra vácuo.

“Esta é a minha mão das palavras”, diz num seu poema Carlos Edmundo de Ory (em excelente tradução de Herberto Hélder). A mão interior dos poetas procura na escuridão e no silencio “le mot juste” para tentar redefinir o mundo, para adequar o seu percurso próprio a uma rota de liberdade, de felicidade e de sabedoria.

É essa a única aposta que vale a pena como referia Mathew Mead, a única tarefa que ao poeta eventualmente caberá e que num universo de inquietações várias faz de facto sentido. O resto, coisas um tanto espúrias que a vida civil pela mão de alguns tenta colar ao perfil dos criadores, é apenas acrescento frequentemente inútil ou dispensável.

Régio, como grande escritor que era, sabia-o na perfeição.


Dire Straits, Sultans of swing

 



segunda-feira, 24 de abril de 2023

Para que a Terra não esqueça

 

EM 25 DE ABRIL CONVIRÁ LEMBRAR





Wokismo: a doença mental que destrói o Ocidente

 

No meio desta loucura medonha, há piadas que já não se podem contar. Há roupas que já não se podem vestir. Há livros que já não se podem ler. Há palavras que já não se podem usar.

(Dos jornais)

 

   O Wokismo é como uma praga que destrói tudo por onde passa. É preciso colocar barreiras ao seu avanço.

Carminda Damião

 

   O wokismo é a revolução perpétua defendida por alguns teóricos críticos para quem de critica em critica se arranca a erva daninha que automaticamente mostra o Jardim. Nada têm para oferecer para além disso. Não têm ideias, não têm planos, apenas critica constante em nome dos historicamente oprimidos. Tudo é racismo, tudo é homofobia, tudo é sexismo, tudo é culpa de alguma estrutura e todas elas foram construídas pelo Ocidente.

Ark Nabul

 

  O wokismo inscreve-se num vasto arsenal ideológico designado por socialismo com que a China vai “dissolvendo” o Ocidente para o conquistar económica, política e militarmente. 

Paulo Morisson


   Confesso que esta moda no meio que frequento provoca o efeito contrário; cada vez mais fazemos questão de dizer e usar as palavras que nos apetecem. Deve ser da idade mas estamo-nos a borrifar. Gordo, feio, medonho, preto, chinoca, mulher, homem, maricas ou mariquinhas(com o signo da minha infância que era medroso), idiota, tacanho, piroso, etc. Quanto à história pátria não estamos também em idade de reaprender. Por tanto, fica como está. As coleções de livros (Christie, Blyton, etc) está aqui guardada para os netos. E, tendo educado os meus filhos com um grande apreço pela liberdade, bom senso e conhecimento, espero que façam o mesmo aos filhos deles. Porque não somos carneiros nem andamos em rebanho. E porque a doença só se apanha se nos pusermos a jeito. Quando votarem, votem em consciência. E escolham quem os represente. Simples, simples.

Maria Clotilde Osório

Um poema de João Garção

 




FOTO DE ABRIL

 

O pai chegava tarde…A mãe e os avós

(que o mano era pequeno) estavam sempre comigo.

Então o pai chegava, perguntava da escola

perguntava das coisas que a mãe lhe sussurrava.

 

A escola era a Escola onde eu agora andava.

E a mãe pela manhã falava devagar

arranjava-me o lanche, chamava-lhe merenda

e eu ia no autocarro (sem o mano que tinha)

 

Eu não sabia de anos    só sabia de meses

- o que a mãe me ensinara e que na escola aprendia –

(o mano era pequeno!) eu jogava sozinho.

O pai que vinha tarde não jogava comigo.

 

E o pai que vinha tarde    mesmo se era Domingo

chegou perto da porta na manhã daquele dia.

Havia gente na rua    e gente que gritava

E na televisão     muitos desconhecidos.

 

E o pai depois daquilo     disse-me: anda jogar

Anda jogar meu filho    pois já não há fascismo.

E o pai que vinha tarde jogou comigo à bola

na rua da Amoreira    a rua pequenina

 

E a mãe chorou ao ver-nos    e eu não a entendia

a mãe que era só minha (e do mano que havia)

Eu sabia de meses    mas não sabia de anos

E jogava com o pai    pois já não há fascismo

 

A avó não gritava    Levava-me p’la mão

até ao autocarro    E para a Escolas eu ia

Sozinho ia p’rá Escola (o mano era pequeno…)

- E eu e o pai jogávamos quando eu de lá vinha

 

Jogávamos jogávamos – eu e o pai jogávamos

E o mano (era pequeno!) olhava sentadinho

E a mãe também por vezes nos olhava a jogar

Pois já não há fascismo    Pois já não há fascismo!

 

in “Os versos do Zé Povão”


Hoje como sempre!

 


ns


   Lembrar o 25 de Abril legítimo e democrático é também recordar e celebrar o 25 de Novembro. Sem ele teríamos mergulhado no sinistro regime que os totalitários daquela altura – e de agora – queriam instaurar com cínicas justificações, que não resistem a uma análise séria e fundamentada.

  Ontem, tal como hoje, a realidade tem desmascarado a formação e formações anti-democráticas com que nos queriam e querem roubar o futuro, utilizando uma verborreia propagandística no intuito de nos levarem à certa. Tal como o fizeram nos países onde assentaram pé e nos quais tripudiaram levianamente sobre os respectivos povos que fingem proteger, mas que em essência sempre tutelam com a repressão.

   Saibamos ser firmes e lúcidos (como o foram Salgueiro Maia ou Jaime Neves) para que a democracia – ainda que imperfeita ou maculada por inanidades de gente que lhes é próxima – permaneça viva e persistente.

   Devemos isso aos nossos descendentes e a todos os concidadãos que partilham connosco esta casa comum!

 

nicolau saião

Joaquim Simões


Diogenes Sidney, Paz e liberdade

 



segunda-feira, 17 de abril de 2023

PÓRTICO

 


ns



   Não me “debruço”, com um sim ou com um não, sobre as marotices, parece que platónicas porque mais não conseguia, do emérito Boaventura Sousa Santos. Isso ficará, se houver coragem ou razão, para as entidades jurídicas ou outras, apropriadas. Apenas quero referir que no capítulo estudos sociais e pseudo científicos já há razoável período de tempo este cavalheiro foi desmascarado, de forma arrasadora e definitiva, pelo Professor António Manuel Baptista, esse sim um verdadeiro cientista, que nos seus livros “O discurso pós-moderno contra a Ciência” e “Crítica da razão ausente” efectuou competentemente um escalpar memorável do personagem que, o que não espanta, com habilidades maneirinhas sempre se esquivou a um frente-a-frente directo com aquele mestre da Física e justo crítico dos seus desarrincanços.

  BS Santos, nessa circunstância, teve o apoio – e o contrário é que seria de espantar – do colectivo ultra-esquerdista ou boa-boca de cavalheiros da corda, entre os quais se destacava o célebre Eduardo Prado Coelho, o mesmo que José Martins Garcia desmascarou sem hesitações durante o famoso caso do jornal República.

  Não é pois de estranhar que, encabuladas/os agora ante o vendaval de acontecimentos grotescos bem típicos desta “sociedade criminal”, certos boys and girls esganiçados ou com fala de galo-capão se calem prudentemente ou, com alguma discrição, venham tentar justificar o velho guru das esquerdas totalitárias e autor de versos medíocres ou decididamente míseros para quem tenha um mínimo de sentido crítico ou de decência intelectual.

  Digamo-lo sem subterfúgios: não é BSS quem sai mais mal-ferido desta torpe arlequinada. São, sim, os que durante anos e anos babujaram esta figura e lhe sublinharam a “filosofia”, o “cientismo”, ou mesmo lhe transcreveram com unção de “velhas beatas” os textos ideológicos propagandísticos em que se transbordava e repoltreava visando instaurar um mundo em que Estaline e demais canalhas políticos se reconheceriam.

   O caso em que BSS está metido vem, à puridade, desvelar perfeitamente uma prática que tem tentado colocar a canga esquerdóide a todos nós, sejamos de esquerda, de centro ou de direita mas com honradez e bom-senso e, o que é mais grave e significativo do mau trabalho dos “governantes” que lhe davam e ainda dão cavalaria, usando de forma (in)conveniente o dinheirinho de todos nós!


nicolau saião

Jorge Gaillard Nogueira

Álvaro de Navarro

Manuel Carreira Viana

Joaquim Simões


Para que a Terra não esqueça

 




Estaline: um "intelectual" manchado de sangue


"A Biblioteca de Estaline" é um livro que mostra outro Estaline que não o indivíduo grosseiro e medíocre, mas que está longe de ser convincente na sua tentativa de o apresentar como sendo intelectual.

Quando o assunto é Josef Estaline, “tirano sanguinário, um político-máquina, uma personalidade paranoica, um burocrata sem piedade e um fanático ideológico” são epítetos que nos ocorrem — e que abrem o livro do historiador Geoffrey Roberts

(Dos jornais)


  Pelos vistos está em curso a reabilitação de Estaline, o mais criminoso dos déspotas comunistas, responsável pela aniquilação de dezenas de milhões de cidadãos comuns que no socialismo usou as gentes como recurso consumível. Esta reabilitação sempre assumida pelo PCP e continuadamente aceite pelo Centro esquerda português, terá agora como pano de fundo a presença do Lula na AR, no dia 25 de Abril na AR, o corrupto e marxista presidente brasileiro que agora está na China, a tentar forçar os países ocidentais livres e democráticos a não mais ajudarem a Ucrânia a defender-se da vil invasão russa. Contra esta escabrosa presença do criminoso Lula - patrocinada pelo Marcelo Rebelo de Sousa - só resta agora confrontar todos os mais altos dignatários da ação política que de uma forma ou de outra aceitem a indignidade de se receber com honrarias o criminoso amigo do invasor Putin.

Jorge Barbosa


Dois poemas de Jean Hautepierre

 

NEVOEIRO, NEVOEIRO, NEVOEIRO SOBRE O CANAL


Canal de Nieuport, 7 de Janeiro de 2017


Nevoeiro, nevoeiro, nevoeiro sobre o canal.

Tudo se dissolve nesta tarde de Outono,

Tudo se dissolve nesta luz cinzenta

As correntes, o céu, o sol e a terra.

 

Tudo parece fugir para longe - e o horizonte,

Último reflexo do sonho nessa bruma,

Parte para longe logo que a noite se ilumina,

E tudo desaparece nessas estações mortas.

 

Nevoeiro, nevoeiro, cidadela das sombras,

O teu surdo véu extingue tudo o que é vivo;

Tudo morre em ti, tudo morre até à noite

- E o horizonte, e os astros sem número.

 


 

TIRÉSIAS


Ele via na noite, ele via através dos sonhos,

Ele via no eco duma sombra que foge,

Mesmo através dos céus por onde o nevoeiro se estende

- E até quando tudo se afogava no fluxo do esquecimento.

 

O mundo era para ele um vento, um sopro, uma onda

Onde tudo se confundia e vibrava; um éter

Percorrendo sem cessar a sua alma vagabunda,

Rainha de todos os tempos e todos os universos.

Tudo lhe falava: o voo duma ave, o fumo

Que subia, serpenteando entre as nuvens…

 

E ele fixava a vida, a luz, e a maneira

Dos seus grandes olhos espantados devorando-lhe o rosto,

Os seus olhos que percebiam os tempos e os espaços,

Os seus olhos, apagados, como sóis que tivessem morrido.

 

Tradução de Cristino Cortes


Nicolau Saião, Mais uma lembrança… - De “Retratos de fantasmas nítidos”

 


ns



A Rosa de Todo o Ano


Não se chamava Rosa, ‘tá de ver, mas eu chamava-lhe assim. Criada de todo o serviço duma família de teres, ia à praça, varria as escadas do prédio de seus patrões, lavava janelas e batia tapetes, lá para dentro certamente se dava a misteriosas tarefas de cosimentos e cozinhados, habituada a alombar, percebia-se, com tudo o que requisitasse suor. Quando eu morava na parte velha da cidade, nos meus tempos de gaiato, encontrava-a frequentemente numa loja de tecidos a mercar carrinhos de linha e a buscar a caixa das amostras de botões, aparelho misterioso e encantado com encaixes sobrepostos como jardins suspensos que também eu transportava para minha tia, que cosia para fora como franco-atiradora de linhas e agulhas.

   Sempre jovial, dava-se bem com vizinhos e lojistas. Quarentona, ainda denotava que fora linda cachopa. Mas, retirada das lides do coração, ficava-se perceptivelmente pela existência de mourejadoura a todo o pano. Constava que tinha um filho lá para os longes de uma mirífica Lisboa, marçano ou manga-de-alpaca de pequeno porte em lugares mais ou menos lendários. Portalegre naquela altura ficava longíssimo da capital, daí o desapego aparente. Um dia, ia eu nos meus catorzes/quinzes, perguntou-me onde comprara uma capelinha de macela que por esses dias de S.João eu levava nas mãos (todos os anos as compro, rendido às flores secas da tradição).”Foi ali na do senhor Xis, senhora Rosa…”, disse-lhe eu deixando escapar a boca para a crisma que lhe dera. “Eu não me chamo Rosa, menino! Sou …” e lá me disse o nome que agora omito a vosselências. E daí em diante, sempre que nos cruzávamos, cumprimentávamo-nos como velhos conhecidos. Sabia lá ela quanto eu apreciava a sua lhaneza natural, a sua inocente bondade de burrinha de trabalho e que eu somente deixava transparecer na minha saudação respeitosa!

   Como outros de outros mesteres, perdi-lhe depois o rasto, ao mudar de casa para lugares mais centrais. Ainda estará viva? Se assim for deve decerto trabalhar para os netos, nessas paragens lisboetas onde talvez se tenha juntado ao filho por reforma bem suada. Deverá, concerteza, continuar anciã de boa catadura: os pequenos lojistas e os vizinhos devem apreciá-la, num relacionamento fácil e contente com este saintéxupery feminino e anónimo cruzando a terra dos homens do quotidiano esvoaçante.


Ray Conniff, Aquarela do Brasil (Ary Barroso)

 



terça-feira, 11 de abril de 2023

Para que a Terra não esqueça


Ministério Público está a investigar

alegadas más práticas médicas cometidas no Hospital de Faro

 

Médica interna acusa cirurgião e diretor do serviço de erros médicos e negligência em pelo menos 11 casos entre janeiro e março. Ministério Público está a investigar os casos.

(Dos jornais)

 

Estes casos têm-se multiplicado. É de bradar aos céus. Que tristeza!

Roberto de Melo 

José do Carmo Francisco, Poema dos sete anos do António

 




Fazer os anos em Paris

Não é qualquer pessoa

Votos de um dia feliz

Longe do sol de Lisboa.

Nasceu em dia molhado

A ternura tem humidade

Vai com ele a todo o lado

No campo ou na cidade.

O tempo passou depressa

E o bebé já é menino

Que tenha voz e cabeça

A escolher o seu destino.

E sempre ao longo da vida

Não saia deste valor

Amar tudo sem medida

Única medida do amor.


José do Carmo Francisco, Postal nº 2 para Ana Isabel


Lisboa, 18 de Março de 2023


O teu primeiro nome tem, dentro do seu som, a força da Terra e a graça de Deus. Sem dúvida ele é o nome feminino mais divulgado em todo o Ocidente. Terá a sua origem nas profundezas da língua hebraica mas não fica apenas na Bíblia nem nos Quatro Evangelhos. Está presente na Eneida de Virgílio, nos romances de Tolstoi, no teatro de Luigi Pirandello, nos contos de Pushkin e nas óperas de Mozart. Ficou junto à Terra e o som das suas sílabas pronunciadas muito devagar resolve todas as hesitações nas encruzilhadas sombrias dos caminhos quotidianos. Digo o teu primeiro nome e tenho de imediato, no momento de o dizer, uma direcção e um sentido. Porque existe no som dessa palavra a força da Terra e a graça de Deus. O teu segundo nome tem a mesma origem (o hebraico) e significa pureza, castidade ou cristalina. Como a água. Talvez por isso, o teu olhar amplia e divide a paisagem povoada da cidade em luz e sombra, frio e calor, beijos e lágrimas, vida e morte. Com esse teu segundo nome uma rainha em Portugal separou em paz as hostes do rei (seu marido) e do príncipe herdeiro (seu filho), transformou depois no seu regaço dinheiro em rosas e levou mais tarde um mendigo a dormir nos aposentos reais. Entretanto, para espanto do rei, descobriu-se que o pobre era afinal o redentor do Mundo. Há no teu segundo nome a força das bandeiras e dos pendões, o rumor dos tambores e dos clarins que convocam os exércitos sentimentais – o mesmo é dizer os batalhões, as companhias e os pelotões com os seus oficiais, sargentos e praças. Neste caso não interessam nem a graduação, nem a antiguidade nem o turno da incorporação. É tudo do contingente geral.      


Banda Arritmia, A medicina

 



segunda-feira, 3 de abril de 2023

Para que a Terra não esqueça

 

Crime dispara em todo o País

 

Portalegre, Évora e Santarém foram os distritos em que o crime mais cresceu no ano passado. Braga, Vila Real e Bragança aqueles em que menos subiu. E só uma região – Açores – teve uma redução no número de crimes registados, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna.

(Dos jornais)

Sem comentários


LEMBRANDO: Dois poemas de Carlos Garcia de Castro

 




CABEÇA DE CÃ

 

A minha idade é já de senador.

Classicamente quer dizer sou velho.

Pouco me falta para o descuido inapto,

assim se diz da hora de morrer.

Tanto me faz pensar como sentir.

Prezo o direito de não ter pudor

da minha liberdade sem pachorra,

sem explicações e outras atenções

para as grandes frases ditas em poemas.

A vida é natural sem literatura,

nem dela mais precisa um ser comum,

que é o que a morte faz de todos nós.

Por isso prezo o meu descuido inapto,

quer tenha feito ou não qualquer poema.

O mesmo se dirá dum canastreiro,

quer tenha feito ou não muitas canastras.

Tanto me faz. Não tenho é mais pachorra

para as grandes frases ditas em poemas.

A minha idade é já de senador,

classicamente quer dizer sou velho,

esclarecido então para o tal descuido

de ser poeta ou ser um canastreiro

 

 

DEDICATÓRIA

 

Quando à noitinha vou ao nosso quarto,

de algumas vezes sou quem abre a cama.

Um dia mais passou, serenos restos

deixados no carácter dado às roupas.

É uma pausa adiantada ao mundo

que ali se fica reduzido em dois,

à nossa espera em vida o ser de sempre.

Aos pés da cama deixo o meu pijama,

tua camisa de dormir ao lado,

e é tudo tão banal, tão repetido,

tão preenchidos já os mesmos cheiros,

que não percebo as erecções surgidas

(há mais de quarenta anos condizentes),

de cada vez que vou abrir a cama,

igual bailado sedutor das aves.

Tua camisa de dormir ao lado

por lá se fica junto ao meu pijama,

há mais de quarenta anos – monogâmicos

(como a ciência diz de certos bichos).

Bem sei que prezas estes rituais,

e eu próprio à diligência tos conduzo,

com perspectivas no armar das roupas

– voltar à pausa adiantada ao mundo.

Para ser sincero, eu nunca mais entendo

que a Natureza venha assim concreta

e há mais de quarenta anos permaneça

sabedoria de animal com espírito

– quando à noitinha calha abrir a cama.

Tua camisa de dormir ao lado

por lá se fica junto ao meu pijama.

Lençol de cama é leve sem pijama,

tua camisa de dormir soltou-se

– o abrir da cama é cuidado eréctil

com habilidade no armar das roupas.

 

Zoologia exacta. É boa a sorte

que em casa aqui passou, serenos restos

das roupas corporais, quando à noitinha

se alastra e se decide uma saudade.

 

Porquê, mulher, abrir a nossa cama?

– se é maldizer por dois com precaução

a competência que às viúvas fica.


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...