segunda-feira, 3 de abril de 2023

LEMBRANDO: Dois poemas de Carlos Garcia de Castro

 




CABEÇA DE CÃ

 

A minha idade é já de senador.

Classicamente quer dizer sou velho.

Pouco me falta para o descuido inapto,

assim se diz da hora de morrer.

Tanto me faz pensar como sentir.

Prezo o direito de não ter pudor

da minha liberdade sem pachorra,

sem explicações e outras atenções

para as grandes frases ditas em poemas.

A vida é natural sem literatura,

nem dela mais precisa um ser comum,

que é o que a morte faz de todos nós.

Por isso prezo o meu descuido inapto,

quer tenha feito ou não qualquer poema.

O mesmo se dirá dum canastreiro,

quer tenha feito ou não muitas canastras.

Tanto me faz. Não tenho é mais pachorra

para as grandes frases ditas em poemas.

A minha idade é já de senador,

classicamente quer dizer sou velho,

esclarecido então para o tal descuido

de ser poeta ou ser um canastreiro

 

 

DEDICATÓRIA

 

Quando à noitinha vou ao nosso quarto,

de algumas vezes sou quem abre a cama.

Um dia mais passou, serenos restos

deixados no carácter dado às roupas.

É uma pausa adiantada ao mundo

que ali se fica reduzido em dois,

à nossa espera em vida o ser de sempre.

Aos pés da cama deixo o meu pijama,

tua camisa de dormir ao lado,

e é tudo tão banal, tão repetido,

tão preenchidos já os mesmos cheiros,

que não percebo as erecções surgidas

(há mais de quarenta anos condizentes),

de cada vez que vou abrir a cama,

igual bailado sedutor das aves.

Tua camisa de dormir ao lado

por lá se fica junto ao meu pijama,

há mais de quarenta anos – monogâmicos

(como a ciência diz de certos bichos).

Bem sei que prezas estes rituais,

e eu próprio à diligência tos conduzo,

com perspectivas no armar das roupas

– voltar à pausa adiantada ao mundo.

Para ser sincero, eu nunca mais entendo

que a Natureza venha assim concreta

e há mais de quarenta anos permaneça

sabedoria de animal com espírito

– quando à noitinha calha abrir a cama.

Tua camisa de dormir ao lado

por lá se fica junto ao meu pijama.

Lençol de cama é leve sem pijama,

tua camisa de dormir soltou-se

– o abrir da cama é cuidado eréctil

com habilidade no armar das roupas.

 

Zoologia exacta. É boa a sorte

que em casa aqui passou, serenos restos

das roupas corporais, quando à noitinha

se alastra e se decide uma saudade.

 

Porquê, mulher, abrir a nossa cama?

– se é maldizer por dois com precaução

a competência que às viúvas fica.


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