quinta-feira, 10 de junho de 2021

Três poemas de José Pascoal

 



UCRATE

 

Em Ucrate,

A sombra duma oliveira

Ilumina as nossas sombras

Vindas de longe,

Da selva dos crustáceos

E dos bois de trabalho,

E um sino chama para a missa

Os mais incautos

Dos mais desesperados,

E uma alvéola brinca

Num pátio de terra batida

Pelo calor do céu,

E duas cabras dão uma corrida

A ver quem ganha a erva,

E os canitos de pedra ladram

Contra a secura que os atormenta,

E eu recordo-me de um mar

Maior do que uma ermida,

E tudo me parece vago e vivo

Como o rosto duma virgem de calcário.

 

À MARGEM DE VERBO ESCURO          

 

Desde que me conheço

Nenhuma graça me acontece:

O silêncio é o meu ruído,

O passado, futuro que anoitece.

 

 

A PAZ E O SOSSEGO

 

Não me tirem

A cafeína dos versos

Nem a alegria

Das primeiras impressões.

 

Houve um tempo

Quente e frio,

A nortada dos desejos,

Revoada de estorninhos.

 

Houve um espaço

Aberto à luz

Da cal

E da palha face à bruma.

 

Não me tirem

O sono leve

Das noites férteis

Em sonhos meridianos.


Um texto cinematográfico de Gaspar Garção

 

(Da “Folha de Sala” do Cine-Clube do Porto)



  “O Castelo Andante”, baseado num romance da conceituada escritora britânica Diana Wynne Jones, é uma das obras mais idiossincráticas, na longa e brilhante carreira de Hayao Miyazaki, por ser o único filme seu baseado num livro da literatura anglo-saxónica, neste caso um livro juvenil de grande sucesso quando foi publicado, em 1986.

  Mas esta transposição de um romance originalmente inspirado na cultura inglesa, para um universo inspirado grandemente no género do Steampunk, e com muitas das caraterísticas da cultura japonesa e Miyazakiana, resulta em pleno, não apenas devido ao talento e génio do seu realizador, mas também ao seu conhecimento do cânone e do código literário ocidental, ou não tivessem sido Miyazaki e o seu co-fundador do estúdio Ghibli, o grande Isao Takahata, os responsáveis por adaptações, todas elas sucessos de público e que fizeram as delícias das crianças portuguesas (e do resto do mundo), nos anos 70, de três dos mais emblemáticos romances juvenis europeus, sobre a infância, a perda da inocência, e a passagem à idade adulta: “Heidi” (1974), “Marco” (1976) e “Ana dos Cabelos Ruivos” (1979).

  Mas o sucesso desta adaptação não é um caso isolado, para o estúdio Ghibli: há mais três filmes imprescindíveis para os fãs de anime, que embora mantendo o traço, o espírito e o enredo geral dos livros em que se baseiam, são também profundamente pessoais, imbuídos da cultura japonesa e oriental: “O Mundo Secreto de Arriety”, de 2010 (com argumento de Miyazaki); “Memórias de Marnie”, de 2014 e “Mary e a Flor da Feiticeira”, de 2017, produzido pelo estúdio Ponoc, o “herdeiro” do estúdio Ghibli.

  Estes três animes incidem sobre temas fundamentais, que perpassam também em muitas das obras de Miyazaki: as saudades da infância e de um passado feliz; a inocência da juventude; a importância dos laços familiares; o sentimento de pertença a casas e locais, como uma forma de construção da identidade pessoal e de auto-estima.

  A alguns destas temáticas, Miyazaki junta n’ “O Castelo Andante” os seus já habituais interesses, como a dualidade do Bem e do Mal; o conflito entre a Natureza e o avanço tecnológico; a impiedosa ditadura do militarismo e do nacionalismo, e ainda questões de identidade: o que vemos (ou pensamos ver), o que sentimos (ou pensamos sentir), questões que aproximam este filme à sua obra-prima, “A Viagem de Chihiro”, animação que antecedeu “O Castelo Andante” e com a qual tem muitas ligações, podendo dizer-se que são um díptico, uma simbiose perfeita entre dois mundos, duas culturas aparentemente tão distintas, mas tão próximas, na sua frágil humanidade.

G.G.

(Estudioso do cinema e crítico

colaborador de diversas entidades ligadas à Sétima Arte)


Howl's Moving Castle

 



segunda-feira, 7 de junho de 2021

PÓRTICO

 

Acho uma moral ruim

trazer o vulgo enganado:

mandarem fazer assim

e eles fazerem assado.


Esta mascarada enorme

com que o mundo nos aldraba,

dura enquanto o povo dorme,

quando ele acordar, acaba.


António Aleixo

Nicolau Saião, Depois do facto...

 

  O Comunicado que recentemente foi subscrito por seis autores, entre os quais me encontro, contestando a já tristemente célebre “Carta para a Era Digital”, foi enviada a milhares de confrades, em diversos pontos do mundo, por acção dos signatários justificadamente inquietos com a censura que ela deixa adivinhar.

  Foi no país onde vicejamos, ou seja este que vai do Algarve e do Norte até às Ilhas, seguido por um silêncio sepulcral. Com excepção de alguns daqueles que o receberam, como dito ali atrás, que nos endereçaram palavras adequadas. E que muito agradecemos.

  Mas de há dias a esta parte, no entanto, a consciência nacional – dos que não desejam censura perpetrada pelo regime aqui e agora, como não a desejaram nos tempos do regime antigo – começa pelos vistos a acordar…

  E até o ilustre Pacheco Pereira – ilustre e notório a vários títulos – arranjou tempo e estrutura escrita para, na “Sábado” onde expande o seu estro, se mostrar contra a peculiar “Carta”, essa forma “hábil” de os donos do reino reintroduzirem as delícias do lápis azul com que gente manhosa congemina estabelecer o sinistro “pensamento único”.

  Nós estaremos como sempre estivemos – contra os totalitarismos, sejam eles com que cor se enroupem.

  E o resto é conversa…de amenos gandulos.


Para um minuto de meditação -99

 


O artista e, por detrás, a sua "obra"


"Io Sono"

A escultura invisível, de Salvatore Garau,

que foi vendida por 15 mil euros


Salvatore Garau sente-se atraído pelo que os olhos não vêem: quer explorar o que todos os sentidos conseguem fazer em conjunto. A obra encontra-se para além da matéria.

Salvatore Garau, artista italiano, faz referência ao Princípio da Incerteza de Heisenberg, um físico que recebeu o Prémio Nobel da física em 1932.

O vazio “não é nada mais do que um espaço cheio de energia“. A explicação é de Salvatore Garau, um artista italiano que vendeu uma escultura imaterial, de nome “Io Sono”, num leilão, por 15.000 euros. A obra suscitou críticas, mas o artista defende a sua criação e o significado: o poder da mente e o vazio.

(Dos jornais)


  Mas então estou rico! Tenho no meu atelier cerca de quinze obras destas, talvez até melhores do que a do italiano. E vendo mais barato, só 10 mil euros cada uma. Aceitam-se compradores tão espertos como o que adquiriu esta que aqui não se vê!

Ismael Jeropiga


   Este é um verdadeiro artista, eu diria mesmo um artistão. De certeza que não se irá dedicar à política? Cá em Portugal teria futuro, tem mais lata do que o Costa e o Medina juntos.

Silvino Natário


   Lembram-se da história de “o rei vai nu?”. Mas há sempre idiotas que vão nesta conversa da treta.

 Jorge Sardinha


Dois poemas de Maria Estela Gedes

 




GAIA POESIA


O bosque


Vem vindo devagar o rolo negro

o odor acre em volutas que o nariz persegue

salpicos de cinza depositam-se no terraço

entram fagulhas pelo quarto dentro

e uma nuvem chamuscada de borboletas.

 

A colcha branca da cama

manchada com um crime alheio

afinal nosso

é de todos o crime

com mata em chamas ou rios pútridos

todos somos criminosos

erguem-se gritos sob a ameaça

o fogo tão próximo das casas

uivam cães              

os lobos já não existem

e as lagartixas correndo loucamente

em busca de um buraco no chão

ocupado já por escaravelhos

uma cobra aflita

e outros animais que tentam a salvação

e voltam para trás

mas acabam

predador e presa

por partilhar a mesma lura subterrânea

enquanto no mundo dos homens

lavrar mais escândalo ainda do que flamas.

 

A mãe Gaia agarra-nos agora pelos pés

sem raivas sem espírito de vingança

não é sequer um julgamento

apenas o resultado da nossa arrogância.

Piores somos que bestas

animais sem raciocínio nem piedade

merecíamos tribunal e essa imagem de Salomão

a espada na mão direita

a ameaçar a criança suspensa

da mão esquerda.

Mas não temos aqui nenhum tribunal

nem juízes cruéis

justos ou santos.

Gaia é um super-organismo

Terra-Mater

ignora sentimentos de vingança.

O eterno riso na boca

dá-nos

sem cobrar o troco do mal que lhe infligimos

lume para nos queimarmos.

Sem árvores não há oxigénio

resta-nos morrer asfixiados.


Tony Camargo


A figueira

 

Há tantas Ficus tantas

Asvattha ou F. religiosa é só um entre mil exemplos

como as da borracha...

Mas agora quero é figos

e para figos basta a bíblica figueira

que devia ser a Ficus carica

ou não...

Dobra-se tocando a finados

retorcida como cordas

de navio a vencer

as misteriosas tempestades

do inverno.

 

A Gravelina costumava sentar-se

debaixo da figueira

com uma broa de milho

e ia comendo figos com pão.

Assim procedia ano após ano

e a figueira até já a conhecia

e chegava-lhe à mão

os figos mais pingados de mel

na ponta dos ramos.

 

Um dia a Gravelina caiu

e bateu com a cabeça

nos degraus de pedra

da escada.

 

Não resistiu

passados dias

a Gravelina morreu.

 

Nesse ano a figueira não deu figos

mirraram-lhe os ramos

as folhas amareleceram

secou da raiz à copa

com saudades da dona

e também ela

a figueira da Gravelina

morreu.

 

E há outras figueiras ainda

de interditos figos

mais que os trinta dinheiros

fáceis da traição

o punhal enterrado nas costas

nem de Cristo nem de Judas

antes pelo contrário.

 

É sempre o mais próximo

o que sem direitos julga

o que sem poderes condena

o que sem piedade executa

o que mais fundo corta

o tronco da árvore

é esse o que nos arranca da terra-mátria

pela raiz

sem as vertigens da compaixão.

 

Pois nesse ano a figueira não deu figos.

Com saudades da Gravelina

também ela

a Ficus carica que lhe dava os figos

para comer com pão

morreu.

                                     in «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo


Lino Mendes, Crónicas na vertical

 


Fernando Aguiar


Folclore e outros Patrimónios


   Por contingências da vida, só agora tive conhecimento de que o Governo anda a planificar um projecto de apoio ao “Património Cultural Imaterial”, tendo em conta, entre outras razões, que o mesmo “representa a identidade e diversidade de todo o território nacional”. Ora, não é verdade que o PCI - Convenção de 2003 da UNESCO, seja IDENTITÁRIO. E esta confusão que continua a verificar-se, não tem qualquer razão de ser, sendo-me penoso a afirmação da senhora Secretária de Estado da Cultura. Que não compreendo. É de facto tradição, mas não é tradicional.

   Aliás, é a Dr.ª Clara Bertrand Cabral responsável pela cultura na Comissão Nacional da UNESCO, que num artigo esclarecedor, nos diz que o PCI não assenta no autêntico, no tradicional e no identitário, mas sim no constantemente transformado e no criativo. E é a mesma senhora que mais recentemente me esclareceu, que para a UNESCO, enquanto o folclore é “tradição do passado,” o PCI é a “tradição do contemporâneo”.

   Quanto à estratégia em curso, não posso estar contra tudo o que seja destinado a garantir tradições, mesmo que não tradicionais, muito embora e segundo Paulo Lima, autor da candidatura do Cante, estas candidaturas servem acima de tudo para a criação de um destino turístico, ou para aumentar as vendas: como se vai ganhar dinheiro, associar produtos, etc., havendo sempre um intuito comercial ou capitalista, se quisermos.

   É de ter em atenção!

  Projecto diferente, mas que me parece de grande envergadura, está a nascer no Baixo Alentejo e ao que nos dizem visa a revitalização do Cante. Não tenho infelizmente mais informações sobre o projecto.         

   Agora, o meu desencanto, situa-se em dois pontos. Ainda hoje não se compreender, mesmo a nível superior, o que é identitário, e ter sido ignorado o que para mim era prioritário, isto é, o estudo correcto e respectiva sustentabilidade do nosso folclore, da nossa cultura tradicional, garantindo o seu futuro com a inclusão na Escola (formando públicos e sensibilizando crianças) a preparação de formadores, e o apoio a espaços, abertos ao futuro do passado.     

   Ainda quanto ao “não ser identitário” basta resultar de uma convenção - neste caso a de 2003 da própria UNESCO - ser convencionada, combinada.

 

   O “identitário” não nasce de decretos ou do parlamento, é o resultado de uma leitura correcta dos caminhos da cultura, até ao momento em que as vivências das gentes de antigamente sofram influência estranhas à sua maneira de ser e de estar.                                                                                                                             

   Cada dia que passa sem um aprofundamento dos saberes tradicionais locais, é um passo que se recua na manutenção da nossa identidade.

   E quem tem interesse que isso aconteça?                                                                                                                                                      

Ennio Morricone, O clã siciliano

 



quinta-feira, 3 de junho de 2021

PÓRTICO

 

Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço.

António Aleixo

Para um minuto de meditação - 98

 




Papa Francisco

beija a tatuagem de uma sobrevivente do Holocausto,

que escapou às experiências do doutor Josef Mengele


No final de uma audiência geral, Lidia Maksymowicz, sobrevivente do campo de Auschwitz-Birkenau, arregaçou as mangas para permitir a Francisco beijar a sua tatuagem, o número 70072.

(Dos jornais)


  Bonito gesto. Só é pena que até agora nunca se tenha disposto a beijar o braço, ou as costas onde eles levavam pancada, de qualquer prisioneiro dos campos de concentração soviéticos.

Marta Nunes


  Nos últimos tempos tem-se falado muito nos crimes nazis. Está certo, mas fica-se com a sensação de que esse discurso sistemático é feito para se esquecerem os crimes das ditaduras de Leste, numa espécie de ocultação. E infelizmente Francisco tem alinhado nisso, o que mostra o seu posicionamento hoje já indisfarçável.

Miguel T. Reboredo


Dois poemas de António Cândido Franco

 




A ILHA DOS AMORES

 

É nas torres solitárias que se guardam

os segredos

as chaves que permitem aceder

aos céus mais raros

 

A noite é uma misteriosa fiandeira

de brumas e de mantos

Os seus dedos têm ágeis rocas e

A sua carne não verte sangue. Redes

 

Prisões, sepulcros, penedos ocupam sempre

as arcas

que o sol procura além-degredo.

 

in “Arte Régia”

 



Leonora Carrington



A MÃO CINÉTICA DO AZAR

[Texto Automático]

 

Lacem o vão da sineta

E que a telha sonhe dar

Pevide na hora da vide

Mastodôntico oracular

 

Já nu vai o dormido

Chá no dedo com que murchar

Chupar solha de malha

Paredão de lã a masturbar

 

Macedónia de Adão doura

Zenão por um tubo tocar

Andaram archotes à sova

A vara hélice o via nadar

 

Louco feito a guiar azeite

O cabeção sexagenário

Ralha a puxar o malho

A cada Maio o seu ralo

 

Chaves coxas despenham

As velhas do Pragal

Na enxerga hóstias de banho

Anilhas de purga sal

 

Fecho pedrês em aço de seio

Os ossos põem a mandar

Breu que gira a subir

Insonsa língua de leão

 

Êxtase em saldos de sangue

Orifícios de progressão

Sapo salta navio alto

Tojeiro de mafarrico

 

Despi-me em mudo aviso

Ó neves para cá do salto

Calças pranto nos peitos

Jaz a eito o dom no bidé

 

Aos portões do tijolal

Hei visto o deus das minas

Tomei um lar em jornal

Eças e penas nas eiras

 

Estucha triste até voar

Homem parede a fugir

André por perto a coçar

Ameixa no vinho de Celas

 

Pura goela de Ksar

Anão careca vasos fala

Que lhos puxaram a gritar

De arte hei bombo e bala

 

Perna guelra sem esfolar

Na cana o céu que abala

Da mão rota de agarrar

Arde bem a ratoeira

 

Na nuca o espaço curar

Correm vozes na eira

Num Agosto de cortar

Nove têm onde é cheio

 

Mar de rei ressaca em asas

Pelo ar o malte a secar

Nevou a cobiça em Malta

Aquela mole a segurar

 

As migas à rés têm claras

Dentífrico demito de aldear

Alcácer cego temeu canteiro

Calvícies te deram o ar

 

Aluguer do Anão perneta

Panela de heras ao mar

Caxemira peixe e vinho

Nauta poço anda a caiar

 

Mete a manhã nos cordões

Derreado na vila do ar

Assobio ao mestre leal

Ícaro à mão em quarta meta

 

Dispara através do ar

A mão cinética do azar

Cai em cheio com desenho

Quatro varas a nevar

 

Meterás o laço pelo meio

Pinhão de bem vedar

Mauro capão esmeraldo

Sumaúma encanada

 

Vozeirão de Deus a fritar

Jejum de bingo doido na asa

Águia calma a jeito de arrombar

Calcei o urubu em catinga

 

Vernáculo chupa a podar

Sabe esperá-lo o mestre Elo

Haver bichas a dar dália

Arreios mete em Penélope


[Obtido por tradução fonética]


Nicolau Saião, América de luzes e sombras

 


                                                          

   Para nós, amantes da Literatura Policial, a América tem sido o país das mil-e-uma-noites: nela brotaram flores de mistério e de maravilhoso, de mágoa e de tragédia através dos dias e dos anos, plantadas por escritores e visionários como Edgar Alan Poe, H.P.Lovecraft, Dashiel Hammett, August Derleth, Raymond Chandler, Charles Williams, William Faulkner, Melville Davison Post e tantos outros.

  A América atravessámo-la nós com os vagabundos de Frank Gruber, com os “road runners” de W.R.Burnett. Contemplámos as vertentes do Ohio e os arranha-céus de Nova Iorque e Chicago até às montanhas do Colorado e aos desertos do Arizona e do Novo México com Bill Ballinger, Hammond Hines, Burt Spicer e Jim Thompson. Excursionámos pelas vilórias e pelas pequenas cidades do Midlle West com Ellery Queen e Ray Bradbury, perdêmo-nos nas alfurjas dos portos e nos “fumoirs” de Chinatown e da Bowery com Craig Rice, Thomas Burke e um certo chinês filósofo de bigode a quem chamavam Charlie Chan e que estava ali de passagem vindo da sua ensolarada Honolulu.

  Numa certa noite de neve, sob a lua da Carolina do Norte, ouvimos tiros na estrada deserta por onde minutos antes haviam passado Bruce Robinson e Jonatham Latimer, que nos esclareceram o enredo.

  Amámos e padecemos em quartos e em caves, de mãos atadas atrás das costas pelos “gangsters” de serviço. E fomos salvos “in extremis”, com o fato rasgado e o nariz deitado abaixo, por um tal Mickey Spillane e pelo seu amigo dilecto Mike Hammer. A iluminação brotou-nos da mente num momento de sagacidade perpetrada por um fulano que atendia pelo nome de Philip Marlowe. E foi homem a homem que derrotámos o mafioso crápula pseudo político que nos envinagrava o quotidiano, devido aos sábios ensinamentos dum tipo chamado Continental Op, em escaramuça devastadora numa viela do Bronx.

  De manhãzinha, com o nosso elegante fato cinzento de discreta risca azulada, entrámos num palacete onde um ancião atormentado pela nostalgia nos pediu auxílio para encontrar o genro e fomos catrapiscados por uma “mulher fatal” que nos lançou na senda da aventura. De outra vez, acompanhando um sofisticado cavalheiro conhecedor de arte assíria e etrusca que nos disse chamar-se Philo Vance, tivemos a dita de nos introduzirmos nos ricos salões de Nova Inglaterra e de Manhattan e, em troca, de juntura com um tal Humphrey Bogart, levámo-lo até aos confins do Colorado, até à High Sierra, e aprendêmos a beber uns valentes “bourbons” sem ficarmos caídos de caixão à cova.

   Com um jurista desembaraçado que nos disse apelidar-se Perry Mason, jornadeámos pelas artérias de Los Angeles e pelos desertos da Califórnia em busca de assassinos nefandos.

  Ouvimos muitas vezes o bramir dos ventos, sentimos na pele o negrume das noites e a chicotada da chuva inclemente, enquanto – dissimulados a uma esquina, com a gola da clássica gabardina levantada – esperávamos a chegada dum companheiro empregado na mesma agência que se chamava Caution, Lemmy Caution e que era pai dum tal James Bond.

  Tudo isto sentímos nessa América onde havia e há problemas e conflitos não resolvidos, mas onde também sempre houve esperança e alegria devido a umas coisinhas simples, mas espantosamente importantes, que dão pelo nome de liberdade de palavra, de reunião, de pensamento e da sua divulgação não obrigada a mote, como sucede hoje em muitos sítios supostamente civilizados.

   E agora que se tornou moda ou característica pôr-se sistematicamente em equação essa América (toda a América?!) como símbolo do mal e da desgraça - principalmente para se sentir melhor a nostalgia dum Leste implodido e de novos bárbaros a quem se santifica como mártires - lembremo-nos de todos os mosaicos intemporais que ela criou através de membros humildes ou repletos de cultura viva que, hoje por hoje e amanhã por amanhã, se calhar só serão epigrafados e em altas vozes se, de novo, tiverem de dar a vida como em 39-45 para continuarmos a desfrutar de um pouco de futuro possível.


Willie Nelson, Yesterday, when I was young (Charles Aznavour)

 



Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...