GAIA POESIA
O bosque
Vem vindo devagar o rolo negro
o odor acre em volutas que o nariz persegue
salpicos de cinza depositam-se no terraço
entram fagulhas pelo quarto dentro
e uma nuvem chamuscada de borboletas.
A colcha branca da cama
manchada com um crime alheio
afinal nosso
é de todos o crime
com mata em chamas ou rios pútridos
todos somos criminosos
erguem-se gritos sob a ameaça
o fogo tão próximo das casas
uivam cães
os lobos já não existem
e as lagartixas correndo loucamente
em busca de um buraco no chão
ocupado já por escaravelhos
uma cobra aflita
e outros animais que tentam a salvação
e voltam para trás
mas acabam
predador e presa
por partilhar a mesma lura subterrânea
enquanto no mundo dos homens
lavrar mais escândalo ainda do que flamas.
A mãe Gaia agarra-nos agora pelos pés
sem raivas sem espírito de vingança
não é sequer um julgamento
apenas o resultado da nossa arrogância.
Piores somos que bestas
animais sem raciocínio nem piedade
merecíamos tribunal e essa imagem de Salomão
a espada na mão direita
a ameaçar a criança suspensa
da mão esquerda.
Mas não temos aqui nenhum tribunal
nem juízes cruéis
justos ou santos.
Gaia é um super-organismo
Terra-Mater
ignora sentimentos de vingança.
O eterno riso na boca
dá-nos
sem cobrar o troco do mal que lhe infligimos
lume para nos queimarmos.
Sem árvores não há oxigénio
resta-nos morrer asfixiados.
Tony Camargo
A figueira
Há tantas Ficus
tantas
Asvattha ou F. religiosa é só um entre mil exemplos
como as da borracha...
Mas agora quero é figos
e para figos basta a bíblica figueira
que devia ser a Ficus carica
ou não...
Dobra-se tocando a finados
retorcida como cordas
de navio a vencer
as misteriosas tempestades
do inverno.
A Gravelina costumava sentar-se
debaixo da figueira
com uma broa de milho
e ia comendo figos com pão.
Assim procedia ano após ano
e a figueira até já a conhecia
e chegava-lhe à mão
os figos mais pingados de mel
na ponta dos ramos.
Um dia a Gravelina caiu
e bateu com a cabeça
nos degraus de pedra
da escada.
Não resistiu
passados dias
a Gravelina morreu.
Nesse ano a figueira não deu figos
mirraram-lhe os ramos
as folhas amareleceram
secou da raiz à copa
com saudades da dona
e também ela
a figueira da Gravelina
morreu.
E há outras figueiras ainda
de interditos figos
mais que os trinta dinheiros
fáceis da traição
o punhal enterrado nas costas
nem de Cristo nem de Judas
antes pelo contrário.
É sempre o mais próximo
o que sem direitos julga
o que sem poderes condena
o que sem piedade executa
o que mais fundo corta
o tronco da árvore
é esse o que nos arranca da terra-mátria
pela raiz
sem as vertigens da compaixão.
Pois nesse ano a figueira não deu figos.
Com saudades da Gravelina
também ela
a Ficus
carica que lhe dava os figos
para comer com pão
morreu.
in
«Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo
Sem comentários:
Enviar um comentário