segunda-feira, 7 de junho de 2021

Dois poemas de Maria Estela Gedes

 




GAIA POESIA


O bosque


Vem vindo devagar o rolo negro

o odor acre em volutas que o nariz persegue

salpicos de cinza depositam-se no terraço

entram fagulhas pelo quarto dentro

e uma nuvem chamuscada de borboletas.

 

A colcha branca da cama

manchada com um crime alheio

afinal nosso

é de todos o crime

com mata em chamas ou rios pútridos

todos somos criminosos

erguem-se gritos sob a ameaça

o fogo tão próximo das casas

uivam cães              

os lobos já não existem

e as lagartixas correndo loucamente

em busca de um buraco no chão

ocupado já por escaravelhos

uma cobra aflita

e outros animais que tentam a salvação

e voltam para trás

mas acabam

predador e presa

por partilhar a mesma lura subterrânea

enquanto no mundo dos homens

lavrar mais escândalo ainda do que flamas.

 

A mãe Gaia agarra-nos agora pelos pés

sem raivas sem espírito de vingança

não é sequer um julgamento

apenas o resultado da nossa arrogância.

Piores somos que bestas

animais sem raciocínio nem piedade

merecíamos tribunal e essa imagem de Salomão

a espada na mão direita

a ameaçar a criança suspensa

da mão esquerda.

Mas não temos aqui nenhum tribunal

nem juízes cruéis

justos ou santos.

Gaia é um super-organismo

Terra-Mater

ignora sentimentos de vingança.

O eterno riso na boca

dá-nos

sem cobrar o troco do mal que lhe infligimos

lume para nos queimarmos.

Sem árvores não há oxigénio

resta-nos morrer asfixiados.


Tony Camargo


A figueira

 

Há tantas Ficus tantas

Asvattha ou F. religiosa é só um entre mil exemplos

como as da borracha...

Mas agora quero é figos

e para figos basta a bíblica figueira

que devia ser a Ficus carica

ou não...

Dobra-se tocando a finados

retorcida como cordas

de navio a vencer

as misteriosas tempestades

do inverno.

 

A Gravelina costumava sentar-se

debaixo da figueira

com uma broa de milho

e ia comendo figos com pão.

Assim procedia ano após ano

e a figueira até já a conhecia

e chegava-lhe à mão

os figos mais pingados de mel

na ponta dos ramos.

 

Um dia a Gravelina caiu

e bateu com a cabeça

nos degraus de pedra

da escada.

 

Não resistiu

passados dias

a Gravelina morreu.

 

Nesse ano a figueira não deu figos

mirraram-lhe os ramos

as folhas amareleceram

secou da raiz à copa

com saudades da dona

e também ela

a figueira da Gravelina

morreu.

 

E há outras figueiras ainda

de interditos figos

mais que os trinta dinheiros

fáceis da traição

o punhal enterrado nas costas

nem de Cristo nem de Judas

antes pelo contrário.

 

É sempre o mais próximo

o que sem direitos julga

o que sem poderes condena

o que sem piedade executa

o que mais fundo corta

o tronco da árvore

é esse o que nos arranca da terra-mátria

pela raiz

sem as vertigens da compaixão.

 

Pois nesse ano a figueira não deu figos.

Com saudades da Gravelina

também ela

a Ficus carica que lhe dava os figos

para comer com pão

morreu.

                                     in «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo


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