terça-feira, 11 de outubro de 2022

Um poema de Dusan Matic

 


ns



O RIO VAI CORRENDO

 

Deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os vestir o que vestem

eu não estou aqui para vender bocejos  para chorar

ilusões perdidas

sobre abismos abertos

Eu não sou uma pessoa que descreve todas

as tarefas de que eu gosto

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar a lama

deixa a rosa da consciência descansar pacificamente sobre a mesa para esse

tempo

em cada cabelo cada estrela aparecerá tarde

enquanto os pés das crianças se derretem em campos tão largos como

a primeira neve

e a centopeia agarra as sombras caindo sobre a parede

e a relva cresce acima da tua testa

a relva do esquecimento ou a relva das memórias não importa

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os lavar o sangue

a relva do esquecimento ou a relva das memórias é tudo isso

que ainda resta

deixa os rios fluírem, deixa-os levar amor

deixa os rios sonharem até eu chegar ao fim

deixa-os fluir ao redor da estátua mais belos do que a carne do lilás

mais belos do que o tempero silencioso da lua podre

mais belos do que o sussurro silencioso de uma lua assustadora

deixa a tesoura da dor vaguear sobre aquelas clareiras

ao luar

luz da lua nua luz da lua estéril

é melhor eles vaguearem aqui onde a lua gelada aquece

do que nos quartos onde os amantes recém-adormecidos dormem

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem cheios

de luar

deixa a tesoura da dor e os arquivos da dor vaguearem

para atenuar as palavras afiadas e ásperas que surgem como

cargas dessas camas de fogo e de cabeça para baixo

no paraíso

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os vestir o que vestem

deixa-os sussurrar para os solitários ao longo das bordas

deixa as cidades andarem de mãos dadas

eles cortam a respiração e colocam o pé debaixo dela

e de tudo o que te importa

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar a lama e a dor

quem és tu para levantar a mão atrás do braço da consciência sobre a mesa

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

quem és tu que gritas melancolicamente e ninguém dá a sua cabeça

que se virou

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar ouro e dor

quem és tu para tecer armadilhas em torno de castelos

onde morrem os pombos

tu gentil e desconhecido

quem és tu para olhar tanto para a estátua

mais mortal do que o cheiro dos jacintos

todas as agulhas arrancadas da carne dolorida que não existe

e encontrou as suas esperanças na encruzilhada onde

de tarde o vento sopra e onde não há sinal

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

entra na primeira casa, vira à esquerda e segue ao longo do corredor

e abre bem ali

a primeira porta

deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem

de uma para a outra para a terceira e assim por diante na última

onde a janela está aberta tu encontrarás um gongo

ignora tudo o que puderes

escuta

nada

bate novamente no gongo com toda a força

ouvirás boas risadas que se te destinam

apenas não brinques na janela não brinques

nos bloqueios

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

e não olhes para trás

na janela, não brinques ao esconde-esconde

olha apenas: algo está sonhando ali

quanto dessa morte está escrita e cuja morte está nos cegos

olhos da estátua

não brinques ao esconde-esconde na beira da janela

uma tontura é tão fácil quanto o são as palavras

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem

o que é uma noite numa sala vazia ao lado de um gongo

em que tu bates incessantemente

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

para quem são todas as noites e ela a NOITE

que os abrange a todos

sem sombra sem maquilhagem na copa da manhã vai cantar

o PÁSSARO

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa-os carregar o amor

e o que é uma noite esperando as medidas

ainda mais uma vez a espera é

mais rápida do que o contar

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

que eles levem os céus com eles, que eles levem os seus próprios

tabuleiros

ou seja, nós

tu simplesmente ouve o pássaro e ri desse vermelho e

ouve de repente

os risos dos lábios da estátua que eles perderam

para olhar antes de eles saírem da praça ao redor

da meia-noite

risadas boas e a ti destinadas

perdeu-se o significado caloroso e simples da palavra que irá

hoje para repetir mecanicamente

um significado caloroso que apenas as crianças terão na frente das vitrines

começando hoje antes de ir para a escola, sim

eles entendem

deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem, deixa os rios fluírem

deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem, deixa as palavras fluírem

em cada cabelo cada estrela tarde aparecerá

 

e uma estrela tardia em cada palavra que aparece.

 

(Tradução de Nicolau Saião)


Nicolau Saião, Relembrando

 


Desenho de José Régio



Relance sobre a pintura de Régio

 

Desenhar era, para Régio, uma naturalidade. Importa logo de início epigrafar esta naturalidade, que cultivara desde muito novo – quando ele e seu irmão Júlio (como Joaquim Pacheco Neves assinala no seu livro Os desenhos de Régio) pintavam lado a lado nesse tempo de Natal colorido pelos prestígios da memória.

Independentemente de ser uma naturalidade era uma faculdade que ia bem para além do gosto inato de qualquer ser votado aos mundos onde o fulgor das coisas espirituais nos faz andar atentos à Arte. O mínimo que se poderá dizer de Régio é que era um bom desenhador – mesmo um excelente desenhador. Pintor de domingo? Bom – só se a maior atenção dada às letras e aos seus duros caminhos de concretização (para encher a célebre página branca é preciso muito esforço, muito suor, para além do talento, o que não está ao alcance dos zoilos) o remete para essa qualificação, aliás inadequada e frequentemente pacóvia. Claro que para um indivíduo como Régio não há hobbies deste cariz – são algo de demasiado fundo e grave, com a gravidade sagrada da vida e da mirada que sobre ela lança um ser de excepção como Régio foi.

 Assentemos portanto que nele o interesse pela pintura e o acto de desenhar/pintar era um dos aspectos da sua rica vida de relação com os mistérios da arte entendida por extenso. Depois, se nos debruçarmos sobre o seu traço, os seus temas (a sua maneira ou, para utilizarmos a expressão do grande crítico português de artes plásticas, o arqtº Mário de Oliveira, a sua intenção) verificaremos que não andava longe do que se fazia naquele tempo: um figurativismo lírico em tons ora mansos ora adustos jogando com as cores complementares.

 A visitação da figura humana é uma das constantes a que recorria, fossem essas figuras de entalhe sagrado ou profano. E, neste caso, haveria também que perguntar: onde fica traçada a linha que absolutamente separa o profano do sagrado? Pergunta que já a propósito de obras de diversos pintores autóctones ou estrangeiros – pense-se em Beckman, por exemplo, ou em Chagall ou, entre nós, em Mário Botas – se tem colocado, visto que uma figura de mulher é frequentemente a figura da Virgem (e vice-versa) e a figura de um mendigo pode ser a figura de Cristo, noutra encarnação, noutro místico enquadramento, noutra dimensão real ou onírica.

Régio revela-se inteiramente nessas silhuetas contorcidas, nesses rostos arrepanhados, nessas expressões de êxtase, de fúria, de inconcreta estupefacção – de interrogação, de medo, de alguma esperança. E, estranhamente, nalguma súbita frescura de um rosto, de um olhar, de um movimento, de uma feição secreta. Como Claude Roy, poder-se-ia perguntar: “Essa frescura será uma ilusão do nosso olhar ou a expressão da unanimidade das origens?”.

Na sua singeleza, há que ver os desenhos de Régio como os irmãos daqueles que Júlio executava. Não é difícil, não é mesmo possível, não se ver nos de Régio a versão como num espelho trágico daquilo que em Júlio é calma e lirismo, mas uma calma e um lirismo bafejados pelo sopro dum surrealismo metafórico, carregado de significados poéticos e de serenidade duramente conquistada. Júlio (Saúl Dias), que tenho como um dos maiores poetas do século vinte português (a minha participação na homenagem que lhe foi feita em livro organizado por Valter Hugo Mãe não foi um act gratuit da minha parte, pois não escrevo textos de circunstância – e sim uma atitude de puro apreço) foi igualmente o protagonista central duma incursão da maravilha pictórica no mundo por vezes contraditório da pintura portuguesa. Régio, votado a outros mesteres mais instantes, que lhe carregavam o quotidiano de tarefas que à escrita iam desaguar, teve o seu percurso de diferente recorte. Mas o que fez brilha e distingue-se, porque pelos seus próprios meios se tinha – mais uma vez parafraseando Roy – humanizado, enriquecido, metamorfoseado.

E isto, repare-se, ante os mundos do alto e os do baixo: os da carne e os da alma, para tudo dizer.


Marillion, Beautiful

 



terça-feira, 4 de outubro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 

Prémio Nobel da Medicina para Svante Pääbo

"pelas suas descobertas sobre os genomas dos hominídeos extintos

e a evolução humana"

 

O primeiro prémio Nobel a ser anunciado todos os anos é da Fisiologia ou Medicina. Este ano foi atribuído ao investigador sueco que identificou a base do que nos torna únicos enquanto humanos.

(Dos jornais)

 

  Uma descoberta muito importante. Que permite conhecer-se, a partir dela, como tratarem-se muitas das doenças que afligem o ser humano atual. Ciência positiva e altamente meritória, saúde-se pois o cientista por este feito magnífico.

Afonso Meireles



Três poemas de Amalia Bautista

 


(Madrid, 1962)



Cantar das espigas

 

Não cantam, isso são histórias

das pessoas que nunca trabalharam no campo.

Mentiras piedosas com verniz lamechas

que os artistas e os pirosos inventam,

se é que são diferentes.

O que as espigas fazem

 são cortes nas mãos,

 mas sobre as feridas que sangram

 nada se ouve.

 

 

 Despertar

 

Desperta-me mais o som da campainha

do que o café que estou a tomar.

 E um homem de entregas, um mensageiro

 que traz numa caixa

 uma pequena porção de alegria.

É a tua prenda de anos. 

Quando ta der, da tua alegria

 retirarei a minha.

 

 

 Ausente

 

 Essa mulher com que sonhas às vezes

 é a mulher que eu fui:

 Desejável e alegre,

 animada, jovem.

 Que lhe terá acontecido?

Quem ou o que a matou?

Há quantos anos choramos a sua ausência?

                     

Tradução de Francisco Craveiro de Carvalho


Nicolau Saião, O Olimpo já está a arder?

 


Eva Smankmajerova



    Suponhamos, não por traquinice mas muito a sério, que numa quinta-feira um artefacto voador alienígena (um dos chamados, na Bíblia, “glória do Senhor” e, nos anais quíchuas, “serpentes voadoras” devido à forma alongada da sua fuselagem), por isto ou por aquilo pousava num arrabalde de Santarém, de  Lamego, ou mesmo na Buraca ou em Linda-a-Pastora e, enquanto os seus tripulantes tratavam dos seus afazeres localizados, eram avistados durante quarenta e oito minutos (horário TMG) por habitantes locais, a saber: um membro da secção portuguesa dos Alcoólicos Anónimos; um sacerdote dominicano; três futebolistas de momento a jogarem nas reservas do respectivo clube; uma escritora doublée de cientista; dois agentes da autoridade acompanhados de um autuado; um jornalista de um órgão de tiragem média; dezasseis ovelhas e o respectivo cão (o pastor dormia beatificamente sob uma árvore ou junto a um muro e não se apercebera de nada); duas crianças e três adolescentes, incluindo um telemóvel e um boneco de pano; oito passeantes diversos sem estatuto definido por não interessar a esta crónica.

   Perplexos, nos sítios e localidades respectivas, todos eles se punham mais ou menos coerentemente a relatar o avistamento, dando pormenores a quem os quisesse ouvir e os não mandasse bugiar logo a partir da quarta estrofe…

   O periodista, que o chefe-de-redacção tinha na conta de pessoa séria e pouco dada a tratos vínicos, ainda colocava por mansuetude companheirona do superior, na terceira página, uma local em 16 linhas na qual, um pouco encabuladamente, falaria num caso curioso, num facto que intrigou observadores e lengalengas que tais, sendo o assunto rapidamente esquecido e mergulhando, como milhares de outros, no vasto cafarnaum do enigmático e do misterioso para pessoal com alguma imaginação e sentido do mundo para além dos quatro olhos e dos sete sentidos.

    Mas suponhamos agora que por fas ou por nefas o assunto era tomado a sério por alguns grupos da intelectualidade dominante que em geral ciranda nas veredas do poder. E que o assunto ganhava, nos círculos certos, certo destaque e certo crédito – tanto mais que nos últimos anos entidades responsáveis vincadamente oficiais ou mais discretas como entre outras a Sodalitium Pianum (serviços secretos da ICAR), a Agência Nacional de Segurança (NSA), o Deuxième Bureau e o Inteligence Service se têm debruçado parece que proficientemente sobre esses curiosos factos em ordem a tentarem perceber o como e o porquê de tais intrigantes casos.

    A não ser dum ponto de vista académico – isso não aqueceria nem arrefeceria absolutamente nada. Quando muito deixaria apenas nos cérebros e nos relatórios dos operacionais uma congeminação, um raciocínio, talvez um leve zumbido de crença ou de descrença intelectual ou filosófica neles e nos superiores, talvez um pedacinho de inquietação na alma dos mais argutos ou temerosos ou perspicazes (ou desconfiados), porque ficariam com a pedra no sapato e a pulga atrás da orelha, como pitorescamente sói dizer-se.

    Na verdade, que poderiam esses beneméritos fazer, resolver? Dizer aos quatro ventos que afinal, pelas conclusões competentíssimas tiradas pelos grupos de trabalho (as task force como usam ser apelidadas) andava gente realmente pelos céus, que poisavam quando queriam e deixavam contactos se lhes apetecia com iluminados (posteriores) e delegados (santões) se lhes dava na bolha modificar ou incrementar localmente certas regiões e comunidades? Quem lhes daria crédito? Quem os levaria a sério? E se levassem, cadê o resultado? Poderiam pedir responsabilidades aos viandantes do cosmo por entrarem sem visto nem passaporte por qualquer fronteira a dentro? Por gerarem filhos numa moçoila aprazível? Por levarem de viagem uns tantos parentes da mãe Terra? Por…

    Mas creio que já todos perceberam, é escusado ser mais redundante ainda.

    Assim, num outro plano, já se sabe que são estorietas de ficção científica escrita ou cinematográfica, ou da legenda dos séculos, os relatos de cães com cabeças de homens ou de homens com cabeças de tigres. Ou de mancebos com asas de andorinha, de águia ou de pterodáctilo, ou de senhorinhas com cauda de pescada ou de espadarte. De acordo com o que nos informa a ciência de ponta, pelo menos até agora, a semente do homem não é susceptível de se misturar com a do animal sendo a inversa também muito verdadeira.

   Esses sucessos, de acordo com os melhores autores, só estão dentro das possibilidades dos deuses – se lhes apetecesse, mas tanto quanto se sabe esses são gente sensata, até mais ver, e não lhes devem interessar, ao que se pensa, manejos em estilo doutor Mengele… Como diria um amigo meu com muitas leituras e reflexões, “Os planos, seja na vida seja na metafísica, ou na transvida ou na existência em geral, não se misturam”. Concordo com ele.

    É possível, Nadja, que o maravilhoso, todo o maravilhoso, resida neste lado da vida?” perguntava o autor de “A chave dos campos” à sua apaixonada poética que a distracção do velho descobridor manteve sempre como platónica com resultados quase trágicos.

   Possivelmente, quase de certeza que sim. Pois o outro mundo que nos escapa, escapa-nos por óbvias razões embora seja um belo projecto de vida tentar devassar-lhe os bosques e as montanhas, os desertos e os mares, a luz e a sombra do segredo que suspeitamos nele se acoite.

    As cidades reais continuam a existir deste lado, assim como os que as habitam. O fogo da imaginação é o nosso seguro penhor de que o melhor da noite é só ser noite, a noite, sem fantasmas nem assombrações, sem presenças etéreas ou substanciais de enganoso recorte, a noite com a luz das estrelas tal como o dia é o continente sob o sol e com tudo o que nos anima e conforta. Os grandes momentos das nossas mais belas horas. Sim, os planos não se misturam, não são susceptíveis de interpenetração.

    Pois o que voga no espaço exterior a seu tempo se conhecerá – quando chegarem os tempos adequados tanto de uns como de outros.


Barclay James Harvest, Play to the world

 






terça-feira, 27 de setembro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 


ns


  No Irão, dezenas de pessoas (homens e mulheres), são baleados nas ruas e praças por se manifestarem em prol da Liberdade que desde há mais de quatro décadas lhes é retirada por uma corte de fanáticos barbudos.

  Por seu turno, na Rússia do quadrilheiro imperialista Putin, rodeado de apparatchikis e sicofantas, quem se manifeste contra uma mobilização guerreira abusiva e cínica é detido de imediato e posto sob a ameaça real de 10 anos de prisão.

   Cabe citar aqui a frase final da antiga Declaração dos surrealistas franceses que escreveram: “Em período de insurreição o juízo moral é pragmático: os fascistas são os que reprimem e atiram sobre o Povo”.

    E são aqueles dois blocos criminosos que, entre nós, têm recebido apoio impresso ou expresso de gente que se pretende isenta, muitos deles e delas reclamando-se do nome de poetas e artistas!

    A esses/essas apenas dirigimos o nosso repúdio e o nosso desprezo.


Nicolau Saião, Joaquim Simões, Jorge Gaillard Nogueira, Álvaro de Navarro, Manuel Caldeira, João Garção, António Garção


Um poema de Jenny Joseph

 


(Birmingham, 1932 - 2018)



AVISO

 

Quando eu for velha irei usar um vestido roxo

e um chapéu vermelho que não combina com ele  e não me favorece.

E irei gastar a minha pensão em conhaque e luvas de verão

e sandálias de cetim e direi que não há dinheiro para manteiga.

E vou sentar-me no chão quando me cansar

e devorar amostras nas lojas e accionar os alarmes

e vou passar a minha bengala sobre as grades públicas.

E compensarei a sobriedade da minha juventude.

Vou andar de chinelos na chuva

e cortar flores nos jardins de pessoas alheias

e vou aprender a cuspir.

 

Uma pessoa pode usar camisas horríveis e engordar

e comer três quilos de salsichas de uma só vez

ou apenas pão e picles durante toda a semana

e guardar canetas e lápis e porta-copos e outras coisas em caixas.

 

Mas agora devemos ter roupas que nos mantenham secos

e pagar a renda e não praguejar na rua

e ser um bom exemplo para as crianças.

Devemos ter amigos para jantar e ler o jornal.

 

Mas talvez eu deva praticar agora um bocadinho?

Para que os meus conhecidos não fiquem chocados

ou demasiadamente surpreendidos

quando de repente notarem que ela está velha

e começa a usar roxo.

 

(Tradução de ns)


José do Carmo Francisco, Livros e autores

 





«Diz-lhe que estás ocupado»: conversas com Alexandre O´Neill, de Joana Meirim


Alexandre O´Neill (1924-1986) deu entre 1944 e 1985 16 entrevistas que este livro reúne. Joana Meirim na Introdução refere: «As entrevistas de O´Neill são paratextos significativos para a configuração da sua personalidade literária e convidam à releitura da sua poesia e das várias crónicas que publicou.» Das diversas entrevistas escolhemos a de 1983 no programa «Ler para Crer» de Adelino Gomes na Rádio Comercial. Sobre que livros lê, cinema, teatro e música, eis a resposta; «Leio sempre muito e com muita variação. Luís Cernuda e Pérez Galdós são neste momento os meus autores de cabeceira. Cinema vejo pouco. Teatro ainda menos. Música oiço a que anda no ar, enquanto faço a barba. Talvez seja um bárbaro!» Em relação a mitos portugueses como Amália, Eusébio, Joaquim Agostinho, Infante D. Henrique, Salazar, Maria da Fonte, irmã Lúcia, D. Sebastião e Nun’ Álvares, a resposta é «Eu acho que chamar mitos a essa gente é exagerar. Alguns serão enigmas, não mais que isso. Nun´Álvares seria o meu biografado.» Sobre a sua Poesia afirma: «Não me importa nada de estar fora de moda.» e «O público tem péssimos hábitos; pede muito à poesia.» Um dado curioso é o que o maravilha: «Maravilha-me assistir a um pobre de um reformado que está numa bicha para receber a reforma.» Outro será a sua preocupação: «Preocupa-me o destino de um país chamado Portugal. Isso preocupa-me embora não tenha nenhum cargo de velar pelo país a que pertenço mas, como sou português, penso nele e efectivamente preocupa-me o destino deste país». Termina esta nota de leitura com o epitáfio possível do Poeta: «Aqui jaz Alexandre O´Neill/ Um dos homens do seu tempo/ Que menos dormiu/ Bem merecia isto.»

(Edição, organização e introdução: Joana Meirim, Editora: Tinta-da-China, Capa: V. Tavares, Composição: P. Serpa, Apoio: Fundação Calouste Gulbenkian e Universidade Católica)


Carlos Paredes, Verdes anos

 



terça-feira, 13 de setembro de 2022

Para que a Terra não esqueça

 





Rei Carlos III

discursa em Westminster e compromete-se a seguir

o "exemplo de dever abnegado”

da Rainha Isabel II

 

Rei Carlos III falou ao Parlamento britânico esta segunda-feira de manhã. Ao longo de 3 minutos e 50 segundos agradeceu condolências e comprometeu-se a seguir o "exemplo de dever abnegado" da mãe.

(Dos jornais)


That´s the spirit, dude! And God save the Queen!

Manuel Severiano


Um poema de José Carlos Costa Marques

 


ns



AS INVASÕES FRANCESAS

 

Nada de novo sob o céu.

A pilhagem dos tesouros do Eufrates teve nobres antecedentes.

A prestimosa Companhia das Índias Orientais tinha já mostrado o exemplo.

Antes dela, uma infindável guirlanda de despojos, coroada de louros

em Roma e de folhas de oliva na Hélade.

É nosso porque o roubámos pelos mais nobres dos motivos.

Proudhon nada inventou.

Roubo, a propriedade? Talvez sim, o dos antepassados.

Mas agora é nosso e bem nosso. Não interfiramos.

Se preciso for o expugnaremos outra vez com sangue,

com o nosso e sobretudo o dos outros.

E se preciso for voltaremos a roubar, com os mísseis teleguiados

pela mais fina cibernética.

É certo que Junot se apoderou de grandes arcas de metal

à sombra da Convenção de Sintra.

Justo retorno? Pois que o Terríbil, o Albuquerque,

o não tinha feito por menos.

Sempre perdem uns, sempre rapinam outros.

Engravatados, solenemente proclamamos o legítimo esbulho do pobre,

o sacrílego roer das posses do afortunado.

E o céu, o gratuito céu, o azul profundo,

que nada custa e nada vale,

nenhum testamento o legitima,

e ele aí está magnificente e indiferente cobrindo

espoliados e espoliadores

a imensa riqueza inútil a desmedida insuportável miséria

e a fraternidade é essa.

 

in “Safra do regresso”






Nicolau Saião, As profissões recusadas

 



  O pormenor está em ouvir ainda que Breton defendesse um dia que o que era preciso, para chegar ao último estádio da Obra – discretamente, falo por símbolos… - era um superior mergulho na grande ausência, aquele estado de distracção fervilhante capaz de levar o poeta, ou o fulano por extenso, pelo mar ou a planície de casas, corpos, intensidades bruscas, sentimentos e esperas. O viandante transformar-se-ia, assim, num telescópio – ou num microscópio, porque o grande e o pequeno incluem-se e o que está em baixo é como o que está em cima – navegando como uma escuna que recebesse no casco o embate dos habitantes dos oceanos, os ventos de longe, o fulgor dos astros ainda inocentes.

   Mas refiro-me a ouvir tudo. Os ritmos secretos da Terra? Sim, mas parece-me que foi chão que deu uvas, a acreditar em anos e anos de má literatura ou, mais grave, de más consciências transbordadas em “gestos cívicos” a dar por um pau, amores próprios e alheios, corridas pedestres. Jogging, como se diz. A verdade, aqui para nós, é que não existe segredo que contemple, por banda dos deuses da escrita, o ligeiramente ingénuo sujeito que se ponha ao trabalho: a corte celeste será então de loucos ou de poetas absolutos e não seria demasiado pensar que Diana ou Artemisa, no intervalo dos seus “affaires” normais, compusessem olhando em volta com certa angústia uma ode, um alongado canto onde se mesclariam porventura os lamentos por um planeta perdido, ou por uma terra distante, ou simplesmente uma interrogação mais ou menos rendida de como se encontra a chave do mistério – que segundo parece não entra todavia em nenhuma fechadura.

   Digo para mim entredentes: passemos por esta rua, hoje o sol abriu contra os muros das velhas casas claridades insuspeitadas. Entreguemo-nos por alguns minutos às nossas selvagens alegrias. Façamos de conta que a literatura não existe e que sentarmo-nos num banco, no antigo Jardim da Corredoura, não traz imediatamente à lembrança uma página de Bulgakov, quando Margarita contempla o despertar de Moscovo e em sua volta se movem estranhas influências que iriam culminar no grande baile de Satã onde os sete palmos da existência e as cinco dimensões teriam uma palavra a dizer. Mas a literatura existe e é escusado querermos afastar as suas reminiscências.

    Afastar é como quem diz, porque não se dispensa a música ao longe seja qual for o sentido que se lhe dê. Resumindo: quem iria dizer (pensar, o que vai dar no mesmo) que o Tio Brandão era farda? Por estranho que pareça, ou não – e nisto os Liceus é que têm a culpa - só por volta dos vinte e muitos soube que o nosso homem era oficial do Exército. O que aliás não tem mal nenhum, acentuo. Pode ser-se militar quase como se é pasteleiro ou director dum clube de críquete. E os futebolistas canadianos que participaram com pundonor no campeonato do mundo no México, ou coisa, não eram empregados-de-balcão, advogados, estudantes e por aí fora?

    Vou então ficcionar por uns momentos. E atribuir profissões desencontradas a este, aquele, aqueloutro. Por exemplo: Tolstoi como jornalista no “Expresso”; Marco Aurélio como escriturário em Queluz ou Campo Maior; Camilo como farmacêutico num estabelecimento em Lisboa; Proust como árbitro de andebol nos momentos livres e, para ganhar a sopinha, primeiro-oficial num município; Abelaira como gerente duma casa de fados e, para espairecer, pintor de domingo nos intervalos das escritas; Eça de Queiroz, odontologista em Montemor-o-Novo; Pessoa, evidentemente, funcionário do FAOJ destacado em Sintra; Marguerite Yourcenar, professora de História em Beja; quanto a Rimbaud seria excitante imaginá-lo por uns segundos aluno da Faculdade de Letras alfacinha, assim como será difícil resistir a congeminar Flaubert como médico de senhoras em Elvas ou Alenquer.

    Se, como alguns excelentes críticos pretendem, os axiomas são desmontáveis mais que não seja dentro das suas cabeças, a suprema festa seria então abandonar os textos ao seu destino. E teríamos: “O vermelho e o preto” por David Mourão-Ferreira; “A morgadinha dos Canaviais” por Witold Gambrowicz; “Por quem os sinos dobram” de José L. Peixoto; “Histórias do fim da rua” por Chateaubriand; o “Só” de Saint-John Perse; finalmente, “A vida em Middlemarch” por Ramalho Ortigão.

    Imaginemos mais um pouco: não haveria maneira de se entretecerem as escritas? Assim, as frases iniciais de “O deserto dos tártaros” poderiam enroscar-se a dado passo num trecho de “A Cartuxa de Parma”; e o “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” não ficaria descabido, convenientemente acomodado, numa página de Jorge Luís Borges. E o conflito moral de “Beau Geste”, antes e depois de ir para a Legião Estrangeira? Pelo andar que as coisas levam não seria de estranhar vê-lo na escrita sugestiva e ágil daquele romancista que ficou tão galhardo em telenovelas.

    Leio, dos “Princípios” de Eyrinée Philalète, o décimo-terceiro e não porque tenha simpatia pelos números ímpares: “Encontrando-se as coisas assim dispostas, colocai o ovo onde estiver a vossa matéria nesse forno e dai-lhe o calor que a Natureza pede, isto é, fraco e não demasiado violento, começando aonde essa Natureza o deixou. Não deveis ignorar que a dita Natureza deixou a vossa matéria no reino mineral e que, embora nós tiremos as nossas comparações dos vegetais e dos animais, é necessário contudo que concebais uma relação apropriada ao reino no qual está colocada a matéria que quereis trabalhar(…)”. Se o romancista é alguém para quem nada está definitivamente perdido, como se disse (com propriedade? sem propriedade?) o truque estaria porventura em efectuar passages à tabac aos sentimentos, às sensações, às alegrias e aos infortúnios. Como nas batalhas em jogos de computador. Mas como os jogos são todos de vida ou de morte, quer sejam no interior do núcleo (a palavra, leia-se) ou no grande exterior (ainda a palavra, previno) deixemos o Norte a norte, o sueste a Sueste e os rios correndo franca e limpidamente para a sua foz.

    Raul Brandão era pois militar? Era militar e ainda bem – e nem sequer lhe foi preciso, como a Mac Orlan, ter ido para os aquartelamentos legionários no deserto. Foi o que no seu teatro próprio melhor lhe quadrou (porque foi dess’arte e não doutra maneira) de resto parece que ao mandar os taratas efectuar “esquerda ou direita volver” acrescentava frequentemente “se me fazem o favor”. Reminiscências, dirão os mais experientes em tratos místicos, dos hortos de uma certa Arcádia, da pureza das areias argelinas ou da serenidade das planícies de Saskatchewan.

    Não sei, não quero opinar e além do mais as partidas é como se as tivéssemos, já, todas ganhas.

     Aqui ou em Sidi-bel-Abbès.

 

NS, do capítulo A Caixa de Pandora

in “As Vozes Ausentes”


Hans Zimmer, Chevaliers de Sangreal

 



terça-feira, 6 de setembro de 2022

 




Zelensky: "Todos podem ver

que os ocupantes já começaram a fugir da Crimeia.

Esta é a escolha certa".

 

No seu discurso habitual, feito em vídeo e publicado todas as noites, o Presidente da Ucrânia adiantou que estão a ser feitos progressos na ofensiva ucraniana na região sul do país, onde estão concentradas as forças russas.

“Todos podem ver que os ocupantes já começaram a fugir da Crimeia. Esta é a escolha certa”, referiu Zelensky. E acrescentou: “Acredito que a bandeira da Ucrânia e a vida livre voltarão à Crimeia novamente. Libertaremos todas as nossas terras”.

(Dos jornais)

 

   Os russos não contaram com a determinação dum povo que persiste em ser livre. Tal como fizeram quando se uniram aos hitlerianos para invadir a Finlândia, onde foram derrotados, calcularam mal a sua estratégia. No final as ditaduras acabam sempre por perder, ainda que durante certo tempo dominem. Foi o que se passou com a URSS, que se desfez e caiu de podre devido aos crimes dos seus dirigentes e à miséria da sua doutrina.

Rodrigo de Carvalho

 

   Viva a democracia, na Ucrânia e EM TODO O MUNDO!

Vasco Trindade


Dois poemas de José do Carmo Francisco

 

Poema periférico do meu operador

 

Um vago primo que nasceu em Salvaterra

Brilhou na baliza nos Jogos de Amsterdão

Sereno com seu coração em pé de guerra

Ele voava no ar com a leveza de um balão.

Chegava sempre aos dois cantos da baliza

Quando olhava para o campo tudo media

Com os seus olhos na medida mais precisa

Separando devagar a amargura e a alegria.

Todas as derrotas e as vitórias acumuladas

São quase calendário privativo do jogador

Que joga parte da sua vida nas bancadas

Na multidão que o aplaude num clamor.

As mãos desse vago primo tinham magia

Que foi depois herdada pelo meu operador

Mãos tão precisas num ritual de cirurgia

Que assim vai separando a morte do amor.

 


Poema periférico para a Farmácia

 

Não é comum este nosso lugar-comum

De espaço no balcão ponto de encontro

Onde se recebe apenas só o que se dá.

Às vezes entram cheiros de roupa lavada

De pedras, sabão e vozes de mulheres

Na ribeira que um dia por aqui passou.

Sabemos o princípio activo das lágrimas

E o excipiente da moderna amargura

Temos literatura explicativa das dores.

Só vendemos tudo com receita médica

E mantemos fora do alcance das crianças

No comércio onde há algo mais que troca.

A transacção foi concluída com angústia

Fica um espaço de tristeza no balcão

Entre o «adeus» e o final «bem-haja!».

 

in “Poemas periféricos”


José do Carmo Francisco: Hospital de Abrantes - Urgência

 

Urgência de cinco estrelas

Num tempo de «bota abaixo» em que é fácil dizer mal de tudo e de todos, vou contra a corrente para dizer bem da Urgência do Hospital de Abrantes. Vitimado por uma síncope no dia 25-7-22 na Praia Fluvial do Penedo Furado, bati com a cabeça nas pedras da zona das merendas. Transportado pelos impecáveis Bombeiros de Vila de Rei, fui sujeito no Hospital de Abrantes a uma Tomografia que felizmente não acusou derrame interno. A maneira competente e simpática como fui tratado durante o «episódio» leva-me a recordar a frase ouvida no ano de 1962 em Vila Franca de Xira sobre um rancho de raparigas da região de Abrantes a caminho da Lezíria: «São sérias, asseadas e danadas para trabalhar!».  


Giovanni Marradi, Lysistrata

 



Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...