Eva
Smankmajerova
Suponhamos, não por traquinice mas muito a sério, que numa quinta-feira
um artefacto voador alienígena (um dos chamados, na Bíblia, “glória do Senhor” e, nos anais quíchuas,
“serpentes voadoras” devido à forma
alongada da sua fuselagem), por isto ou por aquilo pousava num arrabalde de
Santarém, de Lamego, ou mesmo na Buraca
ou em Linda-a-Pastora e, enquanto os seus tripulantes tratavam dos seus
afazeres localizados, eram avistados durante quarenta e oito minutos (horário
TMG) por habitantes locais, a saber: um membro da secção portuguesa dos
Alcoólicos Anónimos; um sacerdote dominicano; três futebolistas de momento a
jogarem nas reservas do respectivo clube; uma escritora doublée de cientista; dois agentes da autoridade acompanhados de um
autuado; um jornalista de um órgão de tiragem média; dezasseis ovelhas e o
respectivo cão (o pastor dormia beatificamente sob uma árvore ou junto a um
muro e não se apercebera de nada); duas crianças e três adolescentes, incluindo
um telemóvel e um boneco de pano; oito passeantes diversos sem estatuto
definido por não interessar a esta crónica.
Perplexos, nos sítios e localidades respectivas, todos eles se punham
mais ou menos coerentemente a relatar o avistamento, dando pormenores a quem os
quisesse ouvir e os não mandasse bugiar logo a partir da quarta estrofe…
O periodista, que o chefe-de-redacção tinha na conta de pessoa séria e
pouco dada a tratos vínicos, ainda colocava por mansuetude companheirona do
superior, na terceira página, uma local
em 16 linhas na qual, um pouco encabuladamente, falaria num caso curioso, num facto que
intrigou observadores e lengalengas que tais, sendo o assunto rapidamente
esquecido e mergulhando, como milhares de outros, no vasto cafarnaum do
enigmático e do misterioso para pessoal com alguma imaginação e sentido do
mundo para além dos quatro olhos e dos sete sentidos.
Mas suponhamos agora que por fas
ou por nefas o assunto era tomado a
sério por alguns grupos da intelectualidade dominante que em geral ciranda nas
veredas do poder. E que o assunto ganhava, nos círculos certos, certo destaque
e certo crédito – tanto mais que nos últimos anos entidades responsáveis
vincadamente oficiais ou mais discretas como entre outras a Sodalitium Pianum
(serviços secretos da ICAR), a Agência Nacional de Segurança (NSA), o Deuxième
Bureau e o Inteligence Service se têm debruçado parece que proficientemente
sobre esses curiosos factos em ordem
a tentarem perceber o como e o porquê de tais intrigantes casos.
A não ser dum ponto de vista académico – isso não aqueceria nem arrefeceria absolutamente nada. Quando muito
deixaria apenas nos cérebros e nos relatórios dos operacionais uma
congeminação, um raciocínio, talvez um leve zumbido de crença ou de descrença
intelectual ou filosófica neles e nos superiores, talvez um pedacinho de
inquietação na alma dos mais argutos ou temerosos ou perspicazes (ou
desconfiados), porque ficariam com a
pedra no sapato e a pulga atrás da
orelha, como pitorescamente sói dizer-se.
Na verdade, que poderiam esses beneméritos fazer, resolver? Dizer aos
quatro ventos que afinal, pelas conclusões competentíssimas tiradas pelos
grupos de trabalho (as task force
como usam ser apelidadas) andava gente realmente pelos céus, que poisavam quando
queriam e deixavam contactos se lhes apetecia com iluminados (posteriores) e
delegados (santões) se lhes dava na bolha modificar ou incrementar localmente
certas regiões e comunidades? Quem lhes daria crédito? Quem os levaria a sério?
E se levassem, cadê o resultado? Poderiam pedir responsabilidades aos
viandantes do cosmo por entrarem sem visto nem passaporte por qualquer
fronteira a dentro? Por gerarem filhos numa moçoila aprazível? Por levarem de
viagem uns tantos parentes da mãe Terra? Por…
Mas creio que já todos perceberam, é escusado ser mais redundante ainda.
Assim, num outro plano, já se sabe que são estorietas de ficção
científica escrita ou cinematográfica, ou da legenda dos séculos, os relatos de
cães com cabeças de homens ou de homens com cabeças de tigres. Ou de mancebos
com asas de andorinha, de águia ou de pterodáctilo, ou de senhorinhas com cauda
de pescada ou de espadarte. De acordo com o que nos informa a ciência de ponta,
pelo menos até agora, a semente do homem não é susceptível de se misturar com a
do animal sendo a inversa também muito verdadeira.
Esses sucessos, de acordo com os melhores autores, só estão dentro das
possibilidades dos deuses – se lhes
apetecesse, mas tanto quanto se sabe esses são gente sensata, até mais ver, e
não lhes devem interessar, ao que se pensa, manejos em estilo doutor Mengele…
Como diria um amigo meu com muitas leituras e reflexões, “Os planos, seja na vida seja na metafísica, ou na transvida ou na
existência em geral, não se misturam”. Concordo com ele.
“É possível, Nadja, que o
maravilhoso, todo o maravilhoso, resida neste lado da vida?” perguntava o
autor de “A chave dos campos” à sua apaixonada poética que a distracção do
velho descobridor manteve sempre como platónica com resultados quase trágicos.
Possivelmente, quase de certeza que sim. Pois o outro mundo que nos
escapa, escapa-nos por óbvias razões embora seja um belo projecto de vida
tentar devassar-lhe os bosques e as montanhas, os desertos e os mares, a luz e
a sombra do segredo que suspeitamos nele se acoite.
As cidades reais continuam a existir deste
lado, assim como os que as habitam. O fogo da imaginação é o nosso seguro
penhor de que o melhor da noite é só ser noite, a noite, sem fantasmas nem assombrações, sem presenças etéreas ou
substanciais de enganoso recorte, a noite com a luz das estrelas tal como o dia
é o continente sob o sol e com tudo o que nos anima e conforta. Os grandes
momentos das nossas mais belas horas. Sim, os planos não se misturam, não são
susceptíveis de interpenetração.
Pois o que voga no espaço exterior a seu tempo se conhecerá – quando
chegarem os tempos adequados tanto de uns como de outros.
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