segunda-feira, 19 de abril de 2021

Para um minuto de meditação - 85

 


ns


Amanda Gorman vai ser traduzida em Portugal pela jornalista de origem angolana Carla Fernandes

Editorial Presença quer publicar nos próximos meses três livros da poetisa que participou na tomada de posse de Joe Biden. Traduções de Amanda Gorman têm sido polémicas por questões identitárias.

    A poetisa norte-americana Amanda Gorman, que se tornou mundialmente conhecida a 20 de janeiro pela leitura do poema A Colina Que Subimos durante a tomada de posse do presidente Joe Biden, vai ser publicada nos próximos meses em Portugal pela Editorial Presença e terá tradução da jornalista e programadora cultural de origem angolana Carla Fernandes.

   A escritora holandesa Marieke Lucas Rijneveld, de cor de pele branca, foi inicialmente apontada pela editora Meulenhoff como tradutora de A Colina Que Subimos, alegadamente a conselho da própria Amanda Gorman. Perante uma torrente de críticas - nomeadamente um artigo de jornal da ativista negra Janice Deul, segundo a qual a tradutora de um poema destes deveria ser jovem, mulher e negra - Marieke Lucas Rijneveld autoexcluiu-se da tarefa. Dias depois, na Catalunha, o tradutor Victor Obiols foi desconvidado pela editora Barcelona Univers, por afinal ter o “perfil errado” para verter para catalão A Colina Que Subimos.

(Dos jornais)


   E portanto colocamos uma tradutora negra a traduzir o poema de uma autora negra. Nós sabemos que a regra é estúpida e racista, eles sabem que a regra é estúpida e racista, e nós sabemos que toda a gente sabe que a regra é estúpida e racista. E no entanto, cumpre-se a regra.  Fantástico como as ideias mais estúpidas subscritas por 10% do eleitorado são impostas a todos nós.

José Santos


   Dou o meu total apoio a Amanda Gorman. Uma poética de tal acreditada qualidade e profundidade só pode ser entendida por autóctones africanos…Acho que só a tentativa ou mesmo o simples desejo de comprar o livro já é ofensivo, xenófobo, racista, machista, fascista, capitalista e colonialista. A única atitude correta para pessoas de outros grupos populacionais é evitar qualquer interação com o livro. Sabendo onde se possa comprar, é passar longe de tal livraria, onde os olhos não o possam aperceber, nem de relance…! 

Américo Silva


Alguém sabe se o livro será impresso em papel branco???

R. Lima


  Eu não compro de certeza. Não pela poetisa, não pela tradutora, mas pela atitude da editora, obscenamente submissa e politicamente correta até à náusea. Não comprar é agora uma luta pela liberdade.

Maria Odete Pereira


Um poema de Pedro Sevylla de Juana

 




Exaltação de Portalegre

 

 

                                                    Aos meus amigos portalegrenses,

                                                    e aos que ainda não o são.

 

 

Arrastando os pesados grilhões incorpóreos

da arbitrária angústia vital,

unidos aos ferros presidiários de múltiplos pesares

e uma debilidade física extrema,

com os sapatos gastos e as roupas descosidas

- Heccehomo, Peergynt -

pela rua de Elvas entrei em Portalegre ao meio-dia.

 

Eu viajava desprezando os ditados do Destino

sem bússola nem rádio, sem quadrante nem mapa

em busca da terra do queijo e do azeite

das maçãs, cortiça, nozes e castanhas;

e a entidade superior dominada pela fúria

dispôs de tão calamitosa chegada.

 

Portalegre é um dos assentamentos cidadãos

que o homem elevou sobre colinas,

subidas e descidas, alguma planura

perfil de fêmea exuberante e mutável.

 

Não sei se foi o sossego de parques e jardins

a serenidade achada na Corredoura

o murmúrio da água surgindo das fontes

o magistério tímido dos museus

a repousada algaravia da Praça da República

ou a beleza serena (beleza comovente?) de igrejas e conventos;

ignoro se influiu na minha decisão

a perfeita simetria da Sé Catedral,

a solidez do Castelo e a Muralha

a sincera amabilidade das pessoas

somadas ao animoso acolhimento da biblioteca;

mas de Portalegre fiz ponto de partida

dando um golpe de timão à existência

 

Se tivesse chegado três mil anos antes

eu  pastor de ovelhas entre sobreiros nus

a minha memória hospedaria a jornada inesquecível

aproveitada pelo desditoso Lysias,

- filho de Dionisio e neto bastardo de Zeus -

abatido e esperançado em partes iguais

para colocar a primeira pedra da Amaia

- Atalaião, Ribeiro de Baco -

iniciando umas obras ainda em marcha:

novos bairros que se afastam do centro antigo

e da sua frágil harmonia

em constante perigo.

 

A formosa Maia fez-se aldeia,

foi crescendo até ser vila e ser cidade

e hoje é a branca e ocre Portalegre

urbe de coração generoso

onde permanecerá meu alento

quando eu morrer de todo.


(traduzido do espanhol pelo autor)

Nicolau Saião, Portalegre

 


     A cidade, com o tamanho que lhe é próprio, cresce na noite até ao alvorecer. Os sonhos dos habitantes das casas imersas na escuridão que pouco a pouco se desvanece, vão apanhar o dia pela sua cabeleira de claridade. As cidades têm nome. Secreto ou simbólico, ele é contudo o nome que as caracteriza, dado pelos séculos ou pela inspiração do Mundo.

   A cidade... Como um pássaro numa árvore da aba da Serra a vejo agora, a podemos ver agora. Cidade de ruas estreitas onde os desejos e os sentimentos, as amarguras e os dias felizes, os antigos passos cadenciados de carruagens desaparecidas, hábitos desaparecidos, rostos e figuras desaparecidas, deixaram uma sombra de nostalgia. Cidade de coisas novas envolta em passado e ruídos novos, cidade de monumentos onde o espírito cruzou o espírito, onde a grandeza se fixou em pedra, em madeira, em arabescos, em cores indistintas. Cidade que roda como um rosto amado num espelho de casas e nuvens rumorosas. Cidade de torres, cidade de vistas largas onde por vezes a paisagem alarga as vistas curtas. Por estas ruas és feita de passos cadenciados, estas ruas que circundam o teu corpo cravejado de portas, de lugares fecundos, de ausências, de desejos e espantos, de naturalidade e fé, de bondade e de maldade, do sereno existir duma cidade. Povoação de telhados confusos, cruzados, de chaminés com seus fumos, com seus lutos, com seu adivinhar de varandas e ninhos de gente. Cidade das ruas velhas e sonolentas, ásperas, doces e pérfidas, ruas quotidianas sempre diferentes, sempre abertas aos ventos, ao sol, ao revoar das lembranças daqueles que te sentiram com eles dando a volta ao mundo em que existes e te perpetuas. A velha rua dos Potes, do Comércio, a Corredoura, a rua dos Canastreiros, os teus largos diversos - numa casa só se podem adivinhar. Perene regra de vida que é esta em que me é definido o teu povo anónimo e mulheril, viril e pobre, rico de semelhanças com o povo de outrora, de outras terras, da terra mãe que é a terra do homem do dia-a-dia, eterno no seu rumorejar cordial e absorto, com bocas abertas para o riso e a maledicência, para os nomes da ironia e da piedade.

    Cidade de árvores citadinas, civilizadas, mas que não perderam ainda o seu ar de mistério natural. Cidade de portas vermelhas, de gaiolas e engaiolados, de roupas e gente pendurada, de frutos e de tostões, de igrejas e misericórdias, de impiedade e destino certo, cidade audaz e nobre, loquaz e linguareira, cidade de nomes de gente que a gente inventou, cidade onde os 



quartéis se entrecruzam com a memória do passado, heroicidade e frustres vivências. Cidade de santos e cruzes para os sete reinos de santidade e perdão, cidade que ao trabalho consagra os dias da sua viagem rotineira, cidade de brazões, de motas, de carroças no mercado, de automóveis e operários, de arte e de artistas, de pessoas que comem e que procuram comer, cidade de contrastes e proibições, cidade melancólica, soturna, alegre, robusta e mercantil, de cabritos e veterinários, de coisas de barro e do barro das coisas que se multiplicam, cidade de brinhol e café, de poeira e polícias, de legumes dentro do desejo incompleto dos nostálgicos do Oceano, pois a fauna do mar das cidades é inconfessável. Se dos teus monumentos me aparto à realidade os concedo: cidade de palácios e azulejos, cidade de pedra e cal onde as fontes iluminadas de figuras e estátuas, de relevos e volutas, de tradição e lenda desenham nas casas senhoriais um segmento de realidade temporal.     

    Cidade das janelas e dos longes do além, a voz que de ti me chega é dolente como o ruído das praças por onde se expande a vida dos que te habitam e te visitam. Cidade de jardins onde o amor se acolhe e surge. Cidade de jardins suspensa no fremir dos cafés, dos cantinhos da má-língua, da gente que toda a gente conhece, da gente que não se sabe se é realidade ou hábito, gente de nomes sonoros, de tradição sabida, nomes que estalam na língua como um pregão, cidade justa e injusta, atenta e desastrada, nobre cidade onde por vezes os homens não se medem aos palmos. Cidade prenhe de velhos, vasos a caminho de outra vida cidadã, plantas que o tempo vai lançar noutra floresta, cidade de árvores e arbustos sob as estrelas e a lua, no suor dos Verões, no pó da velhice que é humana e perdura. Cidade onde à juventude se pode dizer que um lugar será diferente se o olharmos com olhos intactos, generosos. Cidade de lagos domesticados e serenos, cidade que se vê e se apalpa, se passeia e se canta, cidade sentada no jardim e sobre os seus pensamentos. Cidade onde há sempre uma flor à entrada dos sonhos dos poetas de bronze e de carne palpitante, onde as flores podem ser de ferro para as estátuas amarguradas.

    Cidade dos castelos entre entontecidos e maravilhados, cidade que agrada às crianças, cidade da chuva e das vielas, das serras azuladas ao crepúsculo do cantar dos campos, do casario, dos miradouros e das sombras, cidade de linhas trémulas na noite que se expande contra o seu rosto pouco a pouco diluído, pouco a pouco sumindo-se numa outra viagem para o sono dos homens, do mundo, das cidades onde a frescura corre já anoitecida, inocente e imutável, cidade que se conserva desenhada, fantástica, harmoniosa e prudente no coração das casas e dos que a habitam com o seu indistinto e saudoso aceno de despedida.  

ns 

(Texto inicial do livro “A escrita e o seu contrário/ fotos de ns)


Quarteto do Sol, Sinos de São Lourenço

 



quinta-feira, 15 de abril de 2021

UMA FRASE LAPIDAR

 

“Se eles têm razão porque é que mentem?”

D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto


PÓRTICO

 

  UMA CARTA

   (Enviada ao Director da Gazeta de Poesia Inédita)

 

    Caríssimo José Pascoal

    Como faço todos os dias, fui ao Casa do Atalaião (após ver o meu correio) e,   

    adicionalmente, vistoriar os sítios recomendados ali.

    Foi com surpresa magoada que vi a sua mensagem inserta na sua e nossa Gazeta.

    Diga-me, esclareça-me: é mesmo verdade? O José vai mesmo encerrar a Página?

    Se assim é - e ponderosas razões haverá para isso - considero UMA PENA tal facto.

     Independentemente de a Gazeta não transportar sempre poesia de fina água - constituiu   

     um lugar onde as vozes se faziam ouvir, as diversas vozes dos diversos autores.

     Era pois um sítio onde um acto demopédico se fazia existir!

     Nem só os lugares de alta excelência têm o direito de se patentear. Assim sendo, digo  

      - e não me desdigo! - que o País, com o desaparecimento da Gazeta, está hoje mais

      pobre.

      Esperando que esteja bem de saúde, endosso-lhe o abraço de firme estima. O seu,

                                                                          ns

 

                                                            *

 

     (Este foi o último poema que enviei a JP e que já não pôde ser publicado):

 

CHAPÉU

 

Serve para quase tudo: para honrar, desonrar

os planetas, as putas, os homens.

 

Como uma alma disforme, já foi visto

esmagado sob o cu de uma duquesa

sentada num canapé, distante

e distraída. Como a luz, também pode

ser uma figura de retórica.

Levou tiros, rolou

no pó dos pátios, entrou

brutal nas sinagogas; e é sempre um elemento

combinado, composto

de círculos e recordações. Às vezes

tira-se o chapéu se a carteira não presta.

Nunca se concluiu

se verdadeiramente foge às responsabilidades: contudo

é animal capaz para o deserto

de baixo ou de cima

livre na velha terra dos dicionários

ou dos cactos. Raramente é tão-só uma ilusão

ou miragem.

 

Se nos cai da cabeça

por mera distracção

ou golpe de vento

há sempre alguém que o pise ou o apanhe

- o chapéu é que já não é o mesmo

porque entretanto aprendeu muito

sobre como se comportar em sociedade

ou na rua.

 

É muito raro ficar

na cabeça dos mortos

ao contrário da camisa

que é de uso obrigatório. Rola sempre

para o lado da aurora

aos arrancos ou com grande doçura

como uma estrela

pendurada

 

num cabide.

 

 ns

 in “Os objectos inquietantes”


Para um minuto de meditação - 84

 



"Brilhante tático"

Basílio Horta elogia Costa

Basílio Horta garante que só em maio decidirá se é recandidato à câmara de Sintra, para um terceiro mandato na câmara municipal, mas, em entrevista ao Diário de Notícias, diz que só será candidato se for pelo PS – é onde se sente “confortável”. Mas, desde já, deixa rasgados elogios a António Costa – “é um dos mais brilhantes táticos que eu conheci na minha vida política”.

(Dos jornais)

 

   Tem toda a razão, António Costa é um tático, pois ideias estruturantes não tem nem uma. Tudo gira à volta das circunstâncias do momento e é gerido de forma a se eternizar nos cargos, de forma a dar de comer à numerosa família socialista. Quando tiver de deixar o cargo actual já terá passado a tática ao socialista seguinte. E assim sucessivamente. É esta a tática…

Pedro Godinho

 

    Dá ideia que está tudo doido. Ser um brilhante táctico acrescenta alguma coisa à sociedade e ao País? A táctica só serve para a guerra ou para certos desportos. O malabarista é, isso sim, um truquista, especializado em truques e malabarismos para se manter no poleiro. Quanto a este de Sintra, mais valia estar calado!

Maria Oliveira

 

"Brilhante tático"?? Não encontraria forma mais subtil de chamar vigarista a alguém...

Nuno Ribeiro

 

   O percurso político deste indivíduo é o exacto perfil do seu retrato como personagem. De co-fundador do CDS, passando por concorrente presidencial de Mário Soares a quem tentou enxovalhar, até agora, venerador e obrigado do chefe Costa, é um protagonista de novela de costumes deste tempo, em que o oportunismo dita as leis.

Joel Queirós


   Parabéns ao fotógrafo que conseguiu, por fim, captar o verdadeiro aspecto de um exemplar do piolho da roseira! E ao linguista, que lhe gravou e descodificou os sons! Um excelente exemplo do apoio e do impulso que António Costa e o seu governo têm dado ao país no campo da ciência.

Nuno Rato


Um poema de Nicolás Guillén

 




POEMA NÚMERO SEIS (fragmento)

 

Índias Ocidentais! Índias Ocidentais! West Indies!

Este é o povo hirsuto

de cobre, multicéfalo, onde a vida luta

com o lodo seco entranhado na pele.

Este é o presídio

onde cada homem existe de pés atados.

Esta é a grotesca sede das companies and trusts.

Aqui estão o lago de asfalto, as minas de ferro

as plantações de café

os port docks, os ferry boats, os ten cents

 

Este é o povo do all right

onde tudo se encontra mal

Este é o povo do very well

onde nada está bem.

 

Aqui estão os servidores de Mr.Babbit.

Os que educam os filhos em West Point.

Aqui estão os que chilreiam: hello baby

e fumam “Chesterfield” e “Lucky Strike”.

Aqui estão os bailarinos de fox trots

os boys do jazz band

e os veraneantes de Miami e Palm Beach.

Aqui estão os que pedem bread and butter

e coffee and milk.

Aqui estão os absurdos jovens sifilíticos

os fumadores de ópio e marijuana

exibindo as suas espiroquetas

e mandando fazer um fato em cada semana.

Aqui está o melhor de Port-au-Prince

O mais puro de Kingston, o high life de La Habana…

 

Mas aqui estão também os que remam em lágrimas

galeotes dramáticos, galeotes dramáticos.

Aqui estão eles

os que trabalham com uma picareta

a dura pedra onde pouco a pouco se crispa

o punho de um titã. Os que acendem a chispa

vermelha, sobre o campo ressequido.

Os que gritam: “Cá estamos!” e a quem responde o eco

de outras vozes:”Cá estamos!”. Os que em rude tumulto

sentem latir o sangue com sílabas de insulto.

 

               

                                                                   in “West Indies, Ltd”

 

                                                            (Tradução de Nicolau Saião)


É assim que se faz a Estória

 


Fernando Aguiar



“Hors d’oeuvre” número 1:

 

    Quando a dupla Pierre & Schuster deu por encerrada as atividades surrealistas não fez senão confirmar os t(r)emores de Breton, de que o Surrealismo viesse a ser interpretado unicamente como uma escola datada. Os dois deram cabo da crença de Breton de que o Surrealismo estava mais além.

   No entanto, embora parte daqueles que condenaram a dupla, o fizeram de modo a negar a mesma ideia de Breton, ao recusarem o desdobramento evolutivo irrefreável do movimento. Ou seja, aceitavam (aceitam ainda) que o Surrealismo permanecia vivo, desde que não passasse de um reflexo de Breton.

   São duas fórmulas grotescas de engessamento. Como sabes, o pior inimigo do Surrealismo foram alguns surrealistas...

                                                                                          Floriano Martins

“Hors d’oeuvre número 2:

CARTA A ANTÓNIO CÃNDIDO FRANCO

Caríssimo António

 

    Tal como o Amigo & Confrade, ando há anos nesta coisa da escrita e da actuação pública por extenso com um sentido de adesão à seriedade e à claridade, pois esta coisa de darmos presença na vida que nos coube viver é algo que tenho por fundacional. Por outras palavras, é isso que nos credita e certifica como seres humanos e não meros tipinhos que visam sim a notoriedade, o lucro, qualquer lucro, e o poder (de preferência discricionário) sobre os outros (que para alguns a escrita é ou tenta ser).

 

   Tenho-o pago por vezes duramente, mas como não tive o azar de ser um fraquitolas, isso não me magoou a não ser de raspão. Continuo pois a achar que vale a pena - além de se ter a espinha direita - considerar, sem fanatismos ou neuroses, que é fundamental existir-se sem truques. (E, como não sou totalmente parvo, tenho a suficiente dose de malícia para agir de forma a não ficar, ante a Estória que me couber, com figura negativa...).

 

   Nem seria necessário dizer isto assim pronunciadamente, pois o António, inteligente como é, precisaria apenas de uma ou duas palavras explicativas.

 

    Daí que se pode e se calhar deve, conclui-se que estas linhas nem são verdadeiramente para si, mas para eventuais futuros leitores que numa tarde futura achem esta folha de papel no alto de um poeirento armário herdado de um tio amantíssimo e que quinou uns dias antes...

 

    Ora bem: como o António sabe, (e das duas uma: ou a actividade de se escrever é coisa séria ou não é), disse o nosso amigo saudoso, o Mário, que "Falta por aqui uma grande razão", e repeti-o eu ontem, no mail de envio aos confrades e eventuais leitores do "Casa do Atalaião". 

 

    Ou seja: no que diz parte a algo que tem constituído território em que acredito (sem fazer esforço, as coisas viraram-se assim), ou seja, a acção surrealista, a vivência surrealista, que ao contrário do que certos "testemunhas falsas" tentam fazer crer (porque, como burlões que são - e como não têm, por falta de engenho, lugar noutras mesas - julgam a cousa estar a jeito) não é parque para estabelecerem as suas quitandas. 

 

    Dentro em breve, pelo nosso amigo e confrade brasuca, vai ser elaborado um amplo volume abrangendo o Japão, américas, a velha Europa...Irá caber uma extensa troca de ideias, na qual procurarei colocar o certo ponto de como é e porque é ora uma realidade, ora um equívoco, ora uma velhacaria, o olhar e a actuação de certos sujeitos sobre o Surrealismo nesta pátria que continua a ser madrasta.

 

   E isto porque acredito que a acção de se escrever não é uma brincadeira de galifões ou uma fórmula de certa gente se coroar de malmequeres (e não digo rosas porque rosas era de mais para esses celenterados).

 

    Sei bem, digo a finalizar, o esforço que noto tem feito para que a realidade da Poesia e da Escrita não seja apenas um jogo de salão ou uma arlequinada de actores medíocres. E por isso o saúdo com o "velho" abraço e, verdade seja, lhe mando esta carta.

     Fica com estima o seu, n. 

 

“Hors d’oeuvre número 3”

 

    Por ser de mediana ética ou de mínima razão, faço questão de deixar aqui referido que os “surrealistas” que se têm enroupado com as vestes propugnadas por lenines e trotskys são tão de repudiar como os asseclas de Stalin e do ergástulo soviético e derivados.   

    Ainda que disfarçados com um pretenso olhar mais aberto, são gentinha da mesma espécie cínica, “idiota útil” ou confusionista e finalmente criminal, de facto do lado dos novos totalitarismos fingidamente progressistas. Breton sentiu-o na pele e acabou por pagar cara interiormente a sua adesão (ingénua? romântica?) a desideratos do “carniceiro de Kronstadt, mais tarde posta de lado.  ns

 

                                                                 *

 

ENTREVISTA a Nicolau Saião, por Rui Sousa

 

01-   Em seu entender, o que constitui um autor maldito?

 

Nicolau Saião – O desnível existente - da sociedade ou de parte dela para o autor ou deste para aquela - entre os respectivos planos da vida quotidiana ou qualitativa.   

  Concretizando: dum lado a incapacidade de quem rege a sociedade para estar - por incúria ou por disfunção (egoísmo interesseiro, primarismo, prepotência…) - à altura da aventura interior do sujeito, encarado como mero objecto; do outro a impossibilidade deste se conciliar com essa sociedade, tornada relapsa ou criminal quando não despejadamente criminosa. Mas sempre vazada numa cegueira filha do desleixo ético e da menoridade conceptual.

  Em suma, a impossibilidade de os dois coincidirem num plano harmonioso e criativo e, nesta medida, gerador de mais elevadas mútuas formulações vitais.

  

02 - De que forma a marginalidade e a transgressão são traços necessários para uma definição moderna do sujeito artístico?

 

NS – Numa sociedade capturada pela pequena ou grande infâmia a que os seus próceres de topo recorrem para perpetuar o domínio sobre o homem comum ou, melhor dizendo, sobre os cidadãos que muitas vezes se tornam peças infelizes dessa protérvia habilmente mantida ou descaradamente efectuada, o sujeito artístico – se for minimamente consciente ou normalmente honrado – inevitavelmente terá de estar nesse campo que aqueles aliás tentam minar.

   Diria que é uma inevitabilidade. Doutra forma correrá o risco de fazer parte da chamada “légion canaille” que é a que serve (através de ersatz “artísticos”, idos ou não a Versalhes…) os que visam fazer do mundo uma quintarola para os seus caprichos ou festejos galantes.

 

03 - Concorda com a ideia de que o Surrealismo é um prolongamento da tradição romântica?

 

NS – De forma alguma.

    Vejamos: a inflexão surrealista existiu sempre, dos primórdios da vida até aos nossos dias conforme a História nos mostra. Desde o tempo das cavernas até aos dias de hoje (e continuará pelo futuro adiante).

    O que o romantismo fez foi levar até um dado ponto, dando-lhe foros de cidadania, esse sentir pulsante duma parte do inconsciente pessoal ou colectivo que até então estava ausente do imaginário artístico e mesmo existencial quotidiano. Mas ainda se prendia a uma obrigatoriedade de estilo ou de pensamento, posto que pelas melhores razões (mau grado os tropeços nefelibatas). Afastava-se, devido a condições próprias e no intuito de quebrar o pseudo-classicismo e o academismo, do realismo, nomeadamente daquele que legitimamente podia aprofundar uma visão mais adequada do mundo e da sociedade.

  O surrealismo, pelo contrário, exerce-se na totalidade da vida e da concepção real ou metafórica do espírito, efectivando pois uma incursão destemida nesses continentes.  

  Nessa medida, ultrapassa as fórmulas que certa gente ignorante ou maldosa lhe tenta colar, normalmente visando esvaziá-lo do poder transfigurador que lhe é próprio.

   E se o surrealismo reconhece nesse irmão mais velho ou primo próximo o gesto de ter habitado os castelos da imaginação, viaja por seu turno mais além nos mundos muito palpáveis que vão das florestas do conhecimento aos caminhos entre os universos estelares que o romantismo compreensivelmente desconhecia.  

 

 04 - Como definiria as características fundamentais de uma poética de vanguarda?

 

NS – Em primeiro lugar, ela reconhece-se pela capacidade de negar o habitual, o convencional exarado e mantido pelos que vêem na arte uma espécie de luxo para terratenientes mentais e não uma incursão no mistério e no sagrado não fideísta que a Vida é.

   Depois, pela ultrapassagem das fórmulas confortáveis – por pretensamente modernas que elas se considerem.

  Tem sempre uma atitude crítica, mas não pedante nem cínica. Age de boa-fé nessa tentativa de saber fazer. Visa vogar em pleno mistério, não para se encandear por essa luz e deixar de ter um olhar claro mas sim para conquistar um continente mais para o conhecimento, antecâmara eventual da possível sabedoria.

 

 05-   Quais são, a seu ver, os mais relevantes precursores do Surrealismo, em termos internacionais?

 

NS – Creio que é pacífico dar relevo a certos nomes consensuais. Eu não os infirmaria: Gustave Moreau, o Vítor Hugo da “boca de sombra”, Holderlin, Blake, Nerval, Rimbaud, Petrus Borel, Aloysius Bertrand, Achim von Arnim, Lewis Maturin, Carroll, Young, Novalis, Jensen, o douanier Rousseau, Lautréamont…

     Ou seja, todos aqueles em que a presença do fantástico, do humor negro, do maravilhoso e do real transfigurado pela suscitação da aventura de viver permitiu observar para além dos olhos os factos essenciais da escrita e da pintura sem fronteiras.

 

06-   Que nomes salienta como fundamentais para o Surrealismo em Portugal?

 

NS – Refere-se a nomes que em Portugal representem o mais lídimo da prática surrealista escrita e pintada? Se assim é e sem preocupações de ordem: Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, João Rodrigues, Manuel de Castro, Lud, Mário Henrique Leiria, Paula Rego, António Areal, Henrique Risques Pereira, Carlos Eurico da Costa, Isabel Meyreles, António Dacosta, Eurico Gonçalves, Mário Botas, António Quadros…

   E por aqui me fico, sem ir mais longe.

 

07-   A seu ver, qual a importância da tradição literária portuguesa para uma especificidade nacional do Surrealismo?

 

NS – Não quero ser corrosivo, mas com o devido respeito eu falaria de importância negativa…

   A meu ver, essa tradição possui um certo pendor para o lirismo exacerbado, a recusa ou pelo menos uma certa cegueira ante o mundo da Ciência, o repisar de ideias feitas, o provincianismo de escola, a ligação ou o domínio consentido duma mentalidade de sacristia… E, sem acinte o digo, quando se fala em tradição literária portuguesa geralmente o que desta expressão se solta é a tipicidade que pode existir num povo que parece ter ficado exausto após os Descobrimentos… E essa característica de nunca ter sido um povo realmente livre reflectiu-se necessariamente nas letras e nas artes, capturadas por uma certa amargura, um certo ressentimento que com frequência demasiada buscava amparo ora na “religiosidade”, ora no desespero funesto, ora na sobranceria insensata.

 

08-   Quais os autores portugueses que, a seu ver, mais influenciaram os nossos autores surrealistas?

 

 NS – No meu caso pessoal, fui muito pouco tocado por autores portugueses precursores. Só os li mais tarde, geralmente bastante tempo depois de por volta dos 14 anos, numa revista brasileira que achei por acaso, ter dado de chofre com autores estrangeiros nos quais reconheci a inflexão que me suscitava sem saber que tal tinha nome. E que passei a seguir com atenção, estendendo depois a minha leitura a autores contemporâneos.

    Se bem interpreto a sua pergunta e no que respeita a nomes que podem ter dado antecedentes ao surrealismo em Portugal, tenho para mim que, lá de fora, seriam todos aqueles que citei na anterior resposta.

   Quanto aos lusos, não sou capaz de salientar outros que não sejam algum Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes e Raul Brandão, Camilo Pessanha, algum Sá-Carneiro, algum Garrett, certo Antero de Quental, algum Eugénio de Castro…(Pessoa, esse, está do outro lado do espelho).

 

09-   A seu ver, quais as raízes da presença surrealista em Portugal?

 

NS – Como já referi, a inflexão do surrealismo existiu sempre. No que se refere à sua concatenação (para assim me exprimir) ou exposição pública em grupos organizados, após o seu surgimento em 1924 na França difundiu-se pelo mundo (quando não surgia noutros lugares paralelamente…) respondendo a uma necessidade vital de autores e de pessoas por extenso. Em Portugal, devido ao reaccionarismo, atraso e concomitante repressão existencial e mesmo política – o país era forçado a viver isolado do mundo geográfico e espiritual – revelou-se tarde e sempre entravado pelas razões ali atrás ditas.

  A presença surrealista, em grupo ou individualmente, continuará sempre a existir, mau-grado as tentativas de ocultação ou extinção que sobre ela façam pender e que começam sempre pela tirada cínica de que “o surrealismo existiu em tal data e até dada altura e depois acabou”.

   O que visam os que assim falam é verem-se livres duma presença incómoda que lhes relembra, ou mostra mesmo, a sua falta de caracter, a sua desonestidade intelectual e com terrível frequência a sua mediocridade artística. É, portanto, um gesto político de cariz autoritário/totalitário o que essa gente encena e encarna. Tal tem-se visto à saciedade!

 

10-   A seu ver, quando podemos falar da presença do Surrealismo em Portugal, enquanto acção colectiva?

 

 NS – Nos anos consabidos, na época, que a História consagra - quando Cesariny, Oom, A.M.Lisboa e todos os outros que com estes estavam altiva e nobremente, ergueram a luz surreal nos seus escritos e nas suas obras plásticas. Recusando empáfias de cultores empenachados ou equívocos. O tempo que deixou lastro e que segue counting and counting

 

11-   O que pensa dos nomes associados ao Grupo Surrealista de Lisboa, como António Pedro, Alexandre O’Neill e Fernando Lemos?

 

NS – António Pedro foi uma espécie de equívoco, ora dele ora dos outros, no que diz parte ao surrealismo. (Mas Breton não se equivocou: indo AP, em Paris, assinar um manifesto do grupo surrealista, Breton cortou com um firme traço a sua assinatura na folha constante).

  Para ele o surrealismo devia ser uma espécie protegida, tal como todas as outras correntes artísticas o deveriam ser num mundo em que vigorasse uma respeitabilidade que ele julgava dever vestir as artes e os artistas, que a seu tempo e portando-se bem seriam então provavelmente academizados. Nunca percebeu que o surrealismo é uma aventura interior que não se mede por boas-maneiras ou por falta delas, por respeitabilidades sociais/artísticas ou por destrambelhamentos, mas que está fora e para além desses figurinos sociais de pessoas de bem ou de mal - uma vez que o seu cerne é sim a liberdade de criar sem obrigatoriedade de apresentar cartões, diplomas ou quaisquer certificados.

   Fernando Lemos, por seu turno, foi um artista que por natural sensibilidade deu por si durante algum tempo a efectuar coisas com pendor surrealista. No entanto, como é referido por uma ensaísta que sobre ele se debruçou, “desenvolveu na década de 60 e posteriormente, na sua produção pictórica, princípios de composição plástica que conduzem à afirmação de um abstracionismo concreto, definido pela presença e sobreposição de formas negras [...], que muito se distinguiu das referências visuais e das atmosferas surrealizantes que pautaram as suas primeiras obras".

  Quanto a O’Neil, praticou o surrealismo de forma empenhada e realizada durante o tempo em que problemas pessoais e de ordem societária não o feriram, levando-o a orientar-se nos meandros da publicidade e da escrita mais controlada e cerzida por companheirismos pessoais e literários ou necessidades de sobrevivência.

  (Um exemplo mais, que ilustra outra vertente do vector surrealizado desses tempos: Vespeira, que produziu primeiramente obras dentro do chamado neo-realismo (nome que em Portugal recebeu o movimento que exprimia as concepções literárias/plásticas do comunismo soviético), atravessando depois um período em que se vazou no surrealismo pictórico. Mas que tempos depois abandonou, devido à sua formação ideológica tê-lo transportado para outras paragens mais consentâneas com ela).

 

12-   Com que autores surrealistas conviveu, ao longo dos anos?

 

NS – Intensamente com Mário Cesariny, Ludgero Viegas Pinto (Lud), Carlos Martins e João Garção. Frequentemente com Pedro Oom, Ernesto Sampaio e, nos últimos tempos, José Carlos Breia e Joaquim Simões. Algumas vezes só, ainda que com cordialidade marcada, Cruzeiro Seixas, Eurico Gonçalves, António Barahona da Fonseca e outros do surrealismo abrangente pós grupo do Gelo como Mário Botas ou Luiza Neto Jorge. Também frequentemente, embora com flutuações, com autores do surreal-abjeccionismo ou perto dele como Virgílio Martinho, Ricarte-Dácio, Pacheco menos vezes por decisão pessoal minha; também, com figuras próximas como Herberto Helder ou Hermínio Monteiro.

   Actualmente, do Brasil, com dois autores fundamentais deste tempo, Floriano Martins e C.Ronald. Do estrangeiro, variada e intermitentemente, como Emílio Adolpho Westphalen, Gérard Calandre, ultimamente e de forma epistolar Jules Morot e Alfonso Peña…

 

13-   Qual a importância de Pedro Oom no desenvolvimento do movimento surrealista em Portugal?

 

NS – Foi importante não só pela sua obra, não só pelos contactos suscitadores que teve e que estabeleceu com António Maria Lisboa e outros - os primeiros e alguns que lhes sucederam - mas também pela sua postura: exigente mas aberta, corajosa nos embates com os zoilos e fraternal com os companheiros, cumprindo assim a frase muito lúcida dum confrade que disse “Chama-se UM HOMEM àquele que sabe o que está fazendo”. Foi, para tudo dizer, não só o autor actuante de “Um Ontem Cão” ou “O homem bisado” mas também o que soube referir que, numa dada perspectiva de verticalidade, “Pode-se não escrever” e, ainda, o que soube entender que em relação a um agregado societário infame filho duma sociedade desqualificada e torpe é mais importante um olhar de comiseração e até de fino desprezo do que a feitura de coisas picturais e escritas alevantadas…

 

 14-   Em sua opinião, a que se deveu a intrínseca tendência para a dissidência entre os surrealistas portugueses?

 

NS – A informação que do estrangeiro chegava aos primeiros (e se calhar até aos segundos…) surrealistas era muito parcelar e frequentemente confusa devido à situação de ausência de liberdade política em que o país vivia. Acresce que no terreno europeu e local se digladiavam por essa época pelo menos duas tendências de sinal contrário mas ambas – como hoje já não cabe duvidar – igualmente nefastas: o conservadorismo, colorido de catolicismo reaccionário e o fascismo vermelho de cariz estalinista, autoritário mas cobrindo-se com a falsa capa de progressista de esquerda. Os surrealistas tiveram de sofrer as acções imperativas, muito impetuosas e claramente prepotentes, dessas duas formulações ideológicas. E, por razões que hoje bem se conhecem, muitos dos que agiam dentro do reduto surreal foram seduzidos ou sitiados algumas vezes por essas feitiçarias sociais, o que dava azo a que os menos permeáveis tivessem de se afastar ou afastar os que os queriam jungir a obrigatoriedades que eles achavam espúrias.

   Mas o mesmo sucedeu em França, por exemplo, onde o sentir soviético foi bem acolhido por Aragon, Unik, Éluard e outros com os resultados tristes que se sabem. Não devemos esquecer que para os próceres de Leste (e os seus avatares) o que contava e conta é não a liberdade interior com todo o seu acervo fulgurante de criatividade solar ou mesmo lunar – digamos assim com a suficiente dose de ironia – mas o que um determinado hacer pode dar à potência política do partidão.

   Daí a necessidade de, contra essas gentes, dissidir, romper amarras, de não estar na quadra.

 

15-   O que entende por Abjeccionismo?

 

NS - A atitude galharda, deliberada e na verdade muito adequada de responder ponto por ponto e sem delicadezas mais próprias “de damas putas” (sic) à protérvia social, repelente e abjecta ela sim, que tentava enroupar-se de lirismos delicodoces e nos palavrórios burlões filhos da pedantice e da hipocrisia de certos barões assinalados das artes, das letras e, por extensão, da praça que punha e dispunha nos jogos malabares da desgraçada nação.

  Ela tinha consciência do seu pouco poder, mas mesmo assim não desistiu de falar alto e claro tanto quanto podia, despertando embora as mais diversas cóleras e até perfídias.

 

16-   Considera que nomes como Antonin Artaud, Georges Bataille, Henry Miller, Dubuffet, Henri Michaux ou Jean Genet foram importantes para a definição do Abjeccionismo?

 

NS – Que são autores de qualidade, de grandeza específica, não cabe dúvida. E que inquestionavelmente têm neles a inflexão abjeccionista expressa em obras e em vivências é facto assente.

   Agora: não sei é a influência que terão tido no caso português. Não a consigo, confesso, definir com exactidão.

   No que me diz respeito não a tiveram especialmente, li-os, apreciando-os, como li outros autores: Leiris, Camus, Jean Ray, Hans Carossa, Bruno Schulz, Samuel Beckett, Ionesco, Oscar Panizza…

 

17-   Como poderia descrever a acção do grupo ligado ao Café Gelo?

 

NS – Tanto quanto sei e é dos livros, mas também do que aqui e ali pude saber pessoalmente, foi um grupo que, vindo do antigo Café Hermínius a que se juntaram outros confrades, tentou levar a efeito uma actividade surrealista e abjeccionista que, na verdade, não podia existir com foros de eficácia no país cimentado pelo salazarismo e onde havia duas espécies de censuras: a oficial e a do partidão que tentava herdar-lhe, a seu tempo, as quintas e os bragais...

 

18-   Que figuras salienta de entre aquelas que se costumam associar a esse contexto?

 

NS – Além de Cesariny e Pacheco - Manuel de Lima, José Escada, Herberto Helder, José Sebag, Manuel de Castro, António José Forte, Mário-Henrique Leiria, Ernesto Sampaio. Outros ainda, como António Barahona da Fonseca, Gonçalo Duarte, René Bertholo…

 

19-   Existia uma dimensão performativa na actuação de grupo, intrinsecamente marginal, dos abjeccionistas?

 

NS – É de crer que sim, mas sempre entravada pelas circunstâncias que se conhecem historicamente e a que já aludi. Em campos onde existe a obrigatoriedade de agir conforme o Estado determina, ou sujeita a controle, as acções têm muito pequenas possibilidades de se promoverem e de permanecerem no terreno das realidades efectivas.

 

20-   Luiz Pacheco é uma personagem singular no quadro do Surrealismo-Abjeccionismo em Portugal. Qual a sua opinião acerca das diferentes vertentes da sua acção?

 

NS – Singular, sim. Tanto pelo que fez de muito positivo – editando obras de grande qualidade; definindo como burlescas ou simplesmente irrisórias muitas figuras armadas em arco da patusca ou aflautada circunstância nacional e, ainda, escrevendo textos excelentes entre a crónica e a ficção – como pelas encenações em que se verteu, de forma quase clownesca; dando, aos inimigos da liberdade inteira, excelentes armas de arremesso que eles utilizavam com veloz contentamento…  

 

21-   Considera que existem ligações entre o Surrealismo e movimentos marginais contemporâneos como a Geração Beat norte-americana ou os Angry Young Man ingleses?

 

NS – Eu não diria tanto ligações como pontos de contacto. Pontos de contacto, principalmente, de concepção. Não esquecendo que houve actores do movimento beat que se reconheceram como surrealistas, na escrita e na actuação por extenso.

   Os segundos tocariam o mundo surreal pela sua recusa de um conformismo muito british, pela sua negação dum mundo literário que se enquadrara pelo uso de fórmulas que já estavam velhas e relhas ou, pelo menos, desajustadas das realidades sociais que importava certificar.  

 

 22-   Que outros herdeiros o Surrealismo deixou em Portugal, colectiva e individualmente?

 

NS – Assumidamente ou não, todos os grupos de poetas e pintores que souberam efectuar neles e no grupo a que se devotaram, com originalidade, o gesto surreal de recusa do já percorrido ou visto; indidualmente, a independência de espírito e a procura incessante de um universo onde não tenha lugar a prepotência de sectores ou a submissão à retórica de falsos amigos do Homem.

 

23-   Qual a importância do Surrealismo no contexto português?

 

NS – Como já afirmei algures, nas últimas três décadas, pelo menos, os que fazem a chuva e o bom tempo nos lugares expressos da nação intelectual têm-se esforçado por afastar e exterminar a inflexão surrealista. À partida, querendo fazer crer que já não é tempo dela, como se fosse uma fruta ou um legume de específico mercado…

  Por ela ser a prova provada do seu deles falhanço enquanto manajeiros da sociedade nacional? Por o surrealismo conter nele algo que lhes é muito hostil, que eles sentem como muito hostil por ser o contrário luminoso e iluminante das suas pessoínhas abancadas à manjedoura do Poder ou da notoriedade?

  Penso que sim.

  Mas também pelo seu primarismo cultural disfarçado, pela sua clara incultura – encarando-se cultura viva como aquela força que permite que se perceba, simbolicamente falando, que o ser humano está muitos passos além do símio – pelo seu cinismo que encara a arte e a liberdade inteligente como meros resíduos que não concorrem para o bem-estar que eles apenas e incessantemente procuram haver, mesmo que para isso tenham que exterminar a elementar decência.

   Nesta medida, se por um lado o surrealismo lateja claramente no imaginário social (basta falar-se com as pessoas do povo orientadamente para se perceber isso) devido à defenestração que sobre ele tem caído conta muito pouco, muitíssimo pouco porque quase não pode exprimir-se de forma digna ou pelo menos aceitável. Ainda recentemente houve uma acção referente ao surrealismo e, note-se, levada a efeito por gente universitária de bom quilate. Pois a denominada “comunicação social”, tanto quanto soube, irrelevou o mais que pôde tal acontecimento, ela que dá normal relevo a patacoadas ou actividades roçando o pornográfico e/ou a imbecilidade satisfeita.

   E creio que não é preciso dizer mais, nomeadamente o facto de que acções, no país e no estrangeiro, protagonizadas por surrealistas daqui ou vizinhos deles são normalmente abafadas, desprezadas ou postas do lado da sombra.

   Ou seja, dantes eram atacados publicamente. Agora, muito pior, tenta-se fazer crer que nem existem. É, claro, o cripto-fascismo de fachada democrática no seu melhor…!


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...