Fernando Aguiar
“Hors
d’oeuvre” número 1:
Quando
a dupla Pierre & Schuster deu por encerrada as atividades surrealistas não
fez senão confirmar os t(r)emores de Breton, de que o Surrealismo viesse a ser
interpretado unicamente como uma escola datada. Os dois deram cabo da crença de
Breton de que o Surrealismo estava mais além.
No
entanto, embora parte daqueles que condenaram a dupla, o fizeram de modo a
negar a mesma ideia de Breton, ao recusarem o desdobramento evolutivo
irrefreável do movimento. Ou seja, aceitavam (aceitam ainda) que o Surrealismo
permanecia vivo, desde que não passasse de um reflexo de Breton.
São
duas fórmulas grotescas de engessamento. Como sabes,
o pior inimigo do Surrealismo foram alguns surrealistas...
Floriano Martins
“Hors
d’oeuvre número 2:
CARTA A
ANTÓNIO CÃNDIDO FRANCO
Caríssimo António
Tal como
o Amigo & Confrade, ando há anos nesta coisa da escrita e da actuação
pública por extenso com um sentido de adesão à seriedade e à claridade, pois
esta coisa de darmos presença na vida que nos coube viver é algo que tenho por
fundacional. Por outras palavras, é isso que nos credita e certifica como seres
humanos e não meros tipinhos que visam sim a notoriedade, o lucro, qualquer
lucro, e o poder (de preferência discricionário) sobre os outros (que para
alguns a escrita é ou tenta ser).
Tenho-o
pago por vezes duramente, mas como não tive o azar de ser um fraquitolas, isso
não me magoou a não ser de raspão. Continuo pois a achar que vale a pena - além
de se ter a espinha direita - considerar, sem fanatismos ou neuroses, que é
fundamental existir-se sem truques. (E, como não sou totalmente parvo, tenho a
suficiente dose de malícia para agir de forma a não ficar, ante a Estória que
me couber, com figura negativa...).
Nem seria
necessário dizer isto assim pronunciadamente, pois o António, inteligente como
é, precisaria apenas de uma ou duas palavras explicativas.
Daí que
se pode e se calhar deve, conclui-se que estas linhas nem são verdadeiramente
para si, mas para eventuais futuros leitores que numa tarde futura achem esta
folha de papel no alto de um poeirento armário herdado de um tio amantíssimo e
que quinou uns dias antes...
Ora bem:
como o António sabe, (e das duas uma: ou a actividade de se escrever é coisa
séria ou não é), disse o nosso amigo saudoso, o Mário, que "Falta por
aqui uma grande razão", e repeti-o eu ontem, no mail de envio aos
confrades e eventuais leitores do "Casa do Atalaião".
Ou seja:
no que diz parte a algo que tem constituído território em que acredito (sem
fazer esforço, as coisas viraram-se assim), ou seja, a acção surrealista, a
vivência surrealista, que ao contrário do que certos "testemunhas
falsas" tentam fazer crer (porque, como burlões que são - e como não têm,
por falta de engenho, lugar noutras mesas - julgam a cousa estar a jeito) não é
parque para estabelecerem as suas quitandas.
Dentro
em breve, pelo nosso amigo e confrade brasuca, vai ser elaborado um amplo
volume abrangendo o Japão, américas, a velha Europa...Irá caber uma extensa troca
de ideias, na qual procurarei colocar o certo ponto de como é e porque é ora
uma realidade, ora um equívoco, ora uma velhacaria, o olhar e a actuação de
certos sujeitos sobre o Surrealismo nesta pátria que continua a ser madrasta.
E isto
porque acredito que a acção de se escrever não é uma brincadeira de galifões ou
uma fórmula de certa gente se coroar de malmequeres (e não digo rosas porque
rosas era de mais para esses celenterados).
Sei bem,
digo a finalizar, o esforço que noto tem feito para que a realidade da Poesia e
da Escrita não seja apenas um jogo de salão ou uma arlequinada de actores
medíocres. E por isso o saúdo com o "velho" abraço e, verdade
seja, lhe mando esta carta.
Fica com estima o seu, n.
“Hors
d’oeuvre número 3”
Por ser de mediana ética ou de mínima razão,
faço questão de deixar aqui referido que os
“surrealistas” que se têm enroupado com as vestes propugnadas por lenines e
trotskys são tão de repudiar como os asseclas de Stalin e do ergástulo
soviético e derivados.
Ainda que disfarçados com um pretenso olhar mais aberto, são gentinha da mesma espécie cínica, “idiota útil” ou
confusionista e finalmente criminal, de facto do lado dos novos totalitarismos
fingidamente progressistas. Breton sentiu-o na pele e acabou
por pagar cara interiormente a sua adesão (ingénua? romântica?) a desideratos
do “carniceiro de Kronstadt, mais tarde posta de lado. ns
ENTREVISTA a Nicolau Saião, por Rui
Sousa
01- Em seu entender, o que constitui um
autor maldito?
Nicolau Saião – O desnível existente - da sociedade ou de parte dela para
o autor ou deste para aquela - entre os respectivos planos da vida quotidiana
ou qualitativa.
Concretizando: dum lado a incapacidade
de quem rege a sociedade para estar - por incúria ou por disfunção (egoísmo
interesseiro, primarismo, prepotência…) - à altura da aventura interior do
sujeito, encarado como mero objecto; do outro a impossibilidade deste se
conciliar com essa sociedade, tornada relapsa ou criminal quando não despejadamente
criminosa. Mas sempre vazada numa cegueira filha do desleixo ético e da
menoridade conceptual.
Em suma, a impossibilidade de os
dois coincidirem num plano harmonioso e criativo e, nesta medida, gerador de
mais elevadas mútuas formulações vitais.
02 - De que forma a
marginalidade e a transgressão são traços necessários para uma definição
moderna do sujeito artístico?
NS – Numa sociedade capturada pela pequena ou grande infâmia a que os
seus próceres de topo recorrem para perpetuar o domínio sobre o homem comum ou,
melhor dizendo, sobre os cidadãos que muitas vezes se tornam peças infelizes
dessa protérvia habilmente mantida ou descaradamente efectuada, o sujeito
artístico – se for minimamente consciente ou normalmente honrado –
inevitavelmente terá de estar nesse campo que aqueles aliás tentam minar.
Diria que é uma inevitabilidade.
Doutra forma correrá o risco de fazer parte da chamada “légion canaille” que é a que serve (através de ersatz “artísticos”, idos ou não a Versalhes…) os que visam fazer
do mundo uma quintarola para os seus caprichos ou festejos galantes.
03 - Concorda com a ideia de
que o Surrealismo é um prolongamento da tradição romântica?
NS – De forma alguma.
Vejamos: a inflexão surrealista existiu
sempre, dos primórdios da vida até aos nossos dias conforme a História nos
mostra. Desde o tempo das cavernas até aos dias de hoje (e continuará pelo
futuro adiante).
O que o
romantismo fez foi levar até um dado ponto, dando-lhe foros de cidadania, esse
sentir pulsante duma parte do inconsciente pessoal ou colectivo que até então
estava ausente do imaginário artístico e mesmo existencial quotidiano. Mas ainda
se prendia a uma obrigatoriedade de estilo ou de pensamento, posto que pelas
melhores razões (mau grado os tropeços nefelibatas). Afastava-se, devido a
condições próprias e no intuito de quebrar o pseudo-classicismo e o academismo,
do realismo, nomeadamente daquele que legitimamente podia aprofundar uma visão
mais adequada do mundo e da sociedade.
O surrealismo, pelo contrário,
exerce-se na totalidade da vida e da concepção real ou metafórica do espírito,
efectivando pois uma incursão destemida nesses continentes.
Nessa medida, ultrapassa as
fórmulas que certa gente ignorante ou maldosa lhe tenta colar, normalmente
visando esvaziá-lo do poder transfigurador que lhe é próprio.
E se o surrealismo reconhece
nesse irmão mais velho ou primo próximo o gesto de ter habitado os castelos da
imaginação, viaja por seu turno mais além nos mundos muito palpáveis que vão
das florestas do conhecimento aos caminhos entre os universos estelares que o
romantismo compreensivelmente desconhecia.
04 - Como definiria as
características fundamentais de uma poética de vanguarda?
NS – Em primeiro lugar, ela reconhece-se pela capacidade de negar o
habitual, o convencional exarado e mantido pelos que vêem na arte uma espécie
de luxo para terratenientes mentais e
não uma incursão no mistério e no sagrado não fideísta que a Vida é.
Depois, pela ultrapassagem das
fórmulas confortáveis – por pretensamente modernas que elas se considerem.
Tem sempre uma atitude crítica,
mas não pedante nem cínica. Age de boa-fé nessa tentativa de saber fazer. Visa
vogar em pleno mistério, não para se encandear por essa luz e deixar de ter um
olhar claro mas sim para conquistar um continente mais para o conhecimento,
antecâmara eventual da possível sabedoria.
05- Quais são, a seu ver, os mais
relevantes precursores do Surrealismo, em termos internacionais?
NS – Creio que é pacífico dar relevo a certos nomes consensuais. Eu
não os infirmaria: Gustave Moreau, o Vítor Hugo da “boca de sombra”, Holderlin, Blake, Nerval, Rimbaud, Petrus Borel,
Aloysius Bertrand, Achim von Arnim, Lewis Maturin, Carroll, Young, Novalis,
Jensen, o douanier Rousseau, Lautréamont…
Ou seja, todos aqueles em que
a presença do fantástico, do humor negro, do maravilhoso e do real
transfigurado pela suscitação da aventura de viver permitiu observar para além
dos olhos os factos essenciais da escrita e da pintura sem fronteiras.
06- Que nomes salienta como fundamentais
para o Surrealismo em Portugal?
NS – Refere-se a nomes que em Portugal representem o mais lídimo da
prática surrealista escrita e pintada? Se assim é e sem preocupações de ordem:
Cesariny, Pedro Oom, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, João Rodrigues,
Manuel de Castro, Lud, Mário Henrique Leiria, Paula Rego, António Areal,
Henrique Risques Pereira, Carlos Eurico da Costa, Isabel Meyreles, António
Dacosta, Eurico Gonçalves, Mário Botas, António Quadros…
E por aqui me fico, sem ir mais
longe.
07- A seu ver, qual a importância da
tradição literária portuguesa para uma especificidade nacional do Surrealismo?
NS – Não quero ser corrosivo, mas com o devido respeito eu falaria de
importância negativa…
A meu ver, essa tradição possui um
certo pendor para o lirismo exacerbado, a recusa ou pelo menos uma certa
cegueira ante o mundo da Ciência, o repisar de ideias feitas, o provincianismo
de escola, a ligação ou o domínio consentido duma mentalidade de sacristia… E, sem acinte o digo, quando se fala em
tradição literária portuguesa geralmente o que desta expressão se solta é a
tipicidade que pode existir num povo que parece ter ficado exausto após os
Descobrimentos… E essa característica de nunca ter sido um povo realmente livre
reflectiu-se necessariamente nas letras e nas artes, capturadas por uma certa
amargura, um certo ressentimento que com frequência demasiada buscava amparo
ora na “religiosidade”, ora no desespero funesto, ora na sobranceria insensata.
08- Quais os autores portugueses que, a
seu ver, mais influenciaram os nossos autores surrealistas?
NS – No meu caso pessoal, fui muito pouco tocado por autores
portugueses precursores. Só os li
mais tarde, geralmente bastante tempo depois de por volta dos 14 anos, numa
revista brasileira que achei por acaso, ter dado de chofre com autores
estrangeiros nos quais reconheci a inflexão que me suscitava sem saber que tal
tinha nome. E que passei a seguir com atenção, estendendo depois a minha
leitura a autores contemporâneos.
Se bem interpreto a sua pergunta e no que
respeita a nomes que podem ter dado antecedentes ao surrealismo em Portugal,
tenho para mim que, lá de fora, seriam todos aqueles que citei na anterior
resposta.
Quanto aos lusos, não sou capaz
de salientar outros que não sejam algum Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes e Raul
Brandão, Camilo Pessanha, algum Sá-Carneiro, algum Garrett, certo Antero de
Quental, algum Eugénio de Castro…(Pessoa, esse, está do outro lado do espelho).
09- A seu ver, quais as raízes da presença
surrealista em Portugal?
NS – Como já referi, a inflexão do surrealismo existiu sempre. No que se
refere à sua concatenação (para assim me exprimir) ou exposição pública em
grupos organizados, após o seu surgimento em 1924 na França difundiu-se pelo
mundo (quando não surgia noutros lugares paralelamente…) respondendo a uma
necessidade vital de autores e de pessoas por extenso. Em Portugal, devido ao
reaccionarismo, atraso e concomitante repressão existencial e mesmo política –
o país era forçado a viver isolado do mundo geográfico e espiritual –
revelou-se tarde e sempre entravado pelas razões ali atrás ditas.
A presença surrealista, em grupo
ou individualmente, continuará sempre a existir, mau-grado as tentativas de
ocultação ou extinção que sobre ela façam pender e que começam sempre pela
tirada cínica de que “o surrealismo
existiu em tal data e até dada altura e depois acabou”.
O que visam os que assim falam é verem-se
livres duma presença incómoda que lhes relembra, ou mostra mesmo, a sua falta
de caracter, a sua desonestidade intelectual e com terrível frequência a sua
mediocridade artística. É, portanto, um gesto político de cariz
autoritário/totalitário o que essa gente encena e encarna. Tal tem-se visto à
saciedade!
10- A seu ver, quando podemos falar da
presença do Surrealismo em Portugal, enquanto acção colectiva?
NS – Nos anos consabidos, na época, que a História consagra -
quando Cesariny, Oom, A.M.Lisboa e todos os outros que com estes estavam altiva
e nobremente, ergueram a luz surreal nos seus escritos e nas suas obras
plásticas. Recusando empáfias de cultores empenachados ou equívocos. O tempo
que deixou lastro e que segue counting
and counting…
11- O que pensa dos nomes associados ao
Grupo Surrealista de Lisboa, como António Pedro, Alexandre O’Neill e Fernando
Lemos?
NS – António Pedro foi uma espécie de equívoco, ora dele ora dos outros,
no que diz parte ao surrealismo. (Mas Breton não se equivocou: indo AP, em
Paris, assinar um manifesto do grupo surrealista, Breton cortou com um firme
traço a sua assinatura na folha constante).
Para ele o surrealismo devia ser
uma espécie protegida, tal como todas
as outras correntes artísticas o deveriam ser num mundo em que vigorasse uma
respeitabilidade que ele julgava dever vestir as artes e os artistas, que a seu
tempo e portando-se bem seriam então
provavelmente academizados. Nunca percebeu que o surrealismo é uma aventura interior que não se mede por
boas-maneiras ou por falta delas, por respeitabilidades
sociais/artísticas ou por destrambelhamentos, mas que está fora e para além
desses figurinos sociais de pessoas de bem ou de mal - uma vez que o seu cerne
é sim a liberdade de criar sem obrigatoriedade de apresentar cartões, diplomas ou quaisquer
certificados.
Fernando Lemos, por seu turno,
foi um artista que por natural sensibilidade deu por si durante algum tempo a
efectuar coisas com pendor surrealista. No entanto, como é referido por uma
ensaísta que sobre ele se debruçou, “desenvolveu na década de 60 e
posteriormente, na sua produção pictórica, princípios de composição plástica
que conduzem à afirmação de um abstracionismo concreto, definido pela presença
e sobreposição de formas negras [...],
que muito se distinguiu das referências visuais e das atmosferas surrealizantes
que pautaram as suas primeiras obras".
Quanto a
O’Neil, praticou o surrealismo de forma empenhada e realizada durante o tempo
em que problemas pessoais e de ordem societária não o feriram, levando-o a orientar-se
nos meandros da publicidade e da escrita mais controlada e cerzida por
companheirismos pessoais e literários ou necessidades de sobrevivência.
(Um exemplo
mais, que ilustra outra vertente do vector surrealizado desses tempos:
Vespeira, que produziu primeiramente obras dentro do chamado neo-realismo (nome
que em Portugal recebeu o movimento que exprimia as concepções
literárias/plásticas do comunismo soviético), atravessando depois um período em
que se vazou no surrealismo pictórico. Mas que tempos depois abandonou, devido
à sua formação ideológica tê-lo transportado para outras paragens mais
consentâneas com ela).
12- Com que autores surrealistas conviveu,
ao longo dos anos?
NS – Intensamente com Mário Cesariny, Ludgero Viegas Pinto (Lud), Carlos
Martins e João Garção. Frequentemente com Pedro Oom, Ernesto Sampaio e, nos
últimos tempos, José Carlos Breia e Joaquim Simões. Algumas vezes só, ainda que
com cordialidade marcada, Cruzeiro Seixas, Eurico Gonçalves, António Barahona
da Fonseca e outros do surrealismo abrangente pós grupo do Gelo como Mário
Botas ou Luiza Neto Jorge. Também frequentemente, embora com flutuações, com
autores do surreal-abjeccionismo ou perto dele como Virgílio Martinho,
Ricarte-Dácio, Pacheco menos vezes por decisão pessoal minha; também, com
figuras próximas como Herberto Helder ou Hermínio Monteiro.
Actualmente, do Brasil, com dois
autores fundamentais deste tempo, Floriano Martins e C.Ronald. Do estrangeiro,
variada e intermitentemente, como Emílio Adolpho Westphalen, Gérard Calandre,
ultimamente e de forma epistolar Jules Morot e Alfonso Peña…
13- Qual a importância de Pedro Oom no
desenvolvimento do movimento surrealista em Portugal?
NS – Foi importante não só pela sua obra, não só pelos contactos
suscitadores que teve e que estabeleceu com António Maria Lisboa e outros - os
primeiros e alguns que lhes sucederam - mas também pela sua postura: exigente
mas aberta, corajosa nos embates com os zoilos e fraternal com os companheiros,
cumprindo assim a frase muito lúcida dum confrade que disse “Chama-se UM HOMEM àquele que sabe o que está
fazendo”. Foi, para tudo dizer, não só o autor actuante de “Um Ontem Cão”
ou “O homem bisado” mas também o que soube referir que, numa dada perspectiva
de verticalidade, “Pode-se não escrever”
e, ainda, o que soube entender que em relação a um agregado societário infame filho
duma sociedade desqualificada e torpe é mais importante um olhar de comiseração
e até de fino desprezo do que a feitura de coisas picturais e escritas
alevantadas…
14- Em sua opinião, a que se deveu a
intrínseca tendência para a dissidência entre os surrealistas portugueses?
NS – A informação que do estrangeiro chegava aos primeiros (e se calhar
até aos segundos…) surrealistas era muito parcelar e frequentemente confusa
devido à situação de ausência de liberdade política em que o país vivia. Acresce
que no terreno europeu e local se digladiavam por essa época pelo menos duas
tendências de sinal contrário mas ambas – como hoje já não cabe duvidar – igualmente
nefastas: o conservadorismo, colorido de catolicismo reaccionário e o fascismo
vermelho de cariz estalinista, autoritário mas cobrindo-se com a falsa capa de progressista
de esquerda. Os surrealistas tiveram de sofrer as acções imperativas, muito
impetuosas e claramente prepotentes, dessas duas formulações ideológicas. E, por
razões que hoje bem se conhecem, muitos dos que agiam dentro do reduto surreal
foram seduzidos ou sitiados algumas vezes por essas feitiçarias sociais, o que
dava azo a que os menos permeáveis tivessem de se afastar ou afastar os que os
queriam jungir a obrigatoriedades que eles achavam espúrias.
Mas o mesmo sucedeu em França, por exemplo,
onde o sentir soviético foi bem acolhido por Aragon, Unik, Éluard e
outros com os resultados tristes que se sabem. Não devemos esquecer que para os
próceres de Leste (e os seus avatares) o que contava e conta é não a liberdade
interior com todo o seu acervo fulgurante de criatividade solar ou mesmo lunar
– digamos assim com a suficiente dose de ironia – mas o que um determinado hacer pode dar à potência política do partidão.
Daí a necessidade de, contra
essas gentes, dissidir, romper amarras, de não estar na quadra.
15- O que entende por Abjeccionismo?
NS - A atitude galharda, deliberada e na verdade muito adequada de
responder ponto por ponto e sem delicadezas mais próprias “de damas putas” (sic) à
protérvia social, repelente e abjecta ela sim, que tentava enroupar-se de
lirismos delicodoces e nos palavrórios burlões filhos da pedantice e da
hipocrisia de certos barões assinalados das artes, das letras e, por extensão,
da praça que punha e dispunha nos jogos malabares da desgraçada nação.
Ela tinha consciência do seu
pouco poder, mas mesmo assim não desistiu de falar alto e claro tanto quanto
podia, despertando embora as mais diversas cóleras e até perfídias.
16- Considera que nomes como Antonin
Artaud, Georges Bataille, Henry Miller, Dubuffet, Henri Michaux ou Jean Genet
foram importantes para a definição do Abjeccionismo?
NS – Que são autores de qualidade, de grandeza específica, não cabe
dúvida. E que inquestionavelmente têm neles a inflexão abjeccionista expressa
em obras e em vivências é facto assente.
Agora: não sei é a influência
que terão tido no caso português. Não a consigo, confesso, definir com exactidão.
No que me diz respeito não a
tiveram especialmente, li-os, apreciando-os, como li outros autores: Leiris,
Camus, Jean Ray, Hans Carossa, Bruno Schulz, Samuel Beckett, Ionesco, Oscar
Panizza…
17- Como poderia descrever a acção do
grupo ligado ao Café Gelo?
NS – Tanto quanto sei e é dos livros, mas também do que aqui e ali pude
saber pessoalmente, foi um grupo que, vindo do antigo Café Hermínius a que se
juntaram outros confrades, tentou levar a efeito uma actividade surrealista e
abjeccionista que, na verdade, não podia existir com foros de eficácia no país
cimentado pelo salazarismo e onde havia duas espécies de censuras: a oficial e
a do partidão que tentava herdar-lhe, a seu tempo, as quintas e os bragais...
18- Que figuras salienta de entre aquelas
que se costumam associar a esse contexto?
NS – Além de Cesariny e Pacheco - Manuel de Lima, José Escada, Herberto
Helder, José Sebag, Manuel de Castro, António José Forte, Mário-Henrique
Leiria, Ernesto Sampaio. Outros ainda, como António Barahona da Fonseca,
Gonçalo Duarte, René Bertholo…
19- Existia uma dimensão performativa na
actuação de grupo, intrinsecamente marginal, dos abjeccionistas?
NS – É de crer que sim, mas sempre entravada pelas circunstâncias que se
conhecem historicamente e a que já aludi. Em campos onde existe a
obrigatoriedade de agir conforme o Estado determina, ou sujeita a controle, as
acções têm muito pequenas possibilidades de se promoverem e de permanecerem no
terreno das realidades efectivas.
20- Luiz Pacheco é uma personagem singular
no quadro do Surrealismo-Abjeccionismo em Portugal. Qual a sua opinião acerca
das diferentes vertentes da sua acção?
NS – Singular, sim. Tanto pelo que fez de muito positivo – editando obras
de grande qualidade; definindo como burlescas ou simplesmente irrisórias muitas
figuras armadas em arco da patusca ou aflautada circunstância nacional e,
ainda, escrevendo textos excelentes entre a crónica e a ficção – como pelas encenações em que se verteu, de forma quase clownesca;
dando, aos inimigos da liberdade inteira, excelentes armas de arremesso que eles utilizavam com veloz contentamento…
21- Considera que existem ligações entre o
Surrealismo e movimentos marginais contemporâneos como a Geração Beat norte-americana
ou os Angry Young Man ingleses?
NS – Eu não diria tanto ligações como pontos de contacto. Pontos de
contacto, principalmente, de concepção. Não esquecendo que houve actores do
movimento beat que se reconheceram
como surrealistas, na escrita e na actuação por extenso.
Os segundos tocariam o mundo
surreal pela sua recusa de um conformismo muito british, pela sua negação dum mundo literário que se enquadrara
pelo uso de fórmulas que já estavam velhas e relhas ou, pelo menos, desajustadas
das realidades sociais que importava certificar.
22- Que outros herdeiros o Surrealismo
deixou em Portugal, colectiva e individualmente?
NS – Assumidamente ou não, todos os grupos de poetas e pintores que
souberam efectuar neles e no grupo a que se devotaram, com originalidade, o
gesto surreal de recusa do já percorrido ou visto; indidualmente, a
independência de espírito e a procura incessante de um universo onde não tenha
lugar a prepotência de sectores ou a submissão à retórica de falsos amigos do
Homem.
23- Qual a importância do Surrealismo no
contexto português?
NS – Como já afirmei algures, nas últimas três décadas, pelo menos, os
que fazem a chuva e o bom tempo nos lugares expressos da nação intelectual têm-se esforçado
por afastar e exterminar a inflexão surrealista. À partida, querendo fazer crer
que já não é tempo dela, como se fosse uma fruta ou um legume de específico
mercado…
Por ela ser a prova provada do
seu deles falhanço enquanto manajeiros da sociedade nacional? Por o surrealismo
conter nele algo que lhes é muito hostil, que eles sentem como muito hostil por
ser o contrário luminoso e iluminante das suas pessoínhas abancadas à
manjedoura do Poder ou da notoriedade?
Penso que sim.
Mas também pelo seu primarismo cultural
disfarçado, pela sua clara incultura – encarando-se cultura viva como aquela
força que permite que se perceba, simbolicamente falando, que o ser humano está
muitos passos além do símio – pelo seu cinismo que encara a arte e a liberdade
inteligente como meros resíduos que não concorrem para o bem-estar que eles
apenas e incessantemente procuram haver, mesmo que para isso tenham que exterminar
a elementar decência.
Nesta medida, se por um lado o
surrealismo lateja claramente no imaginário social (basta falar-se com as
pessoas do povo orientadamente para se perceber isso) devido à defenestração
que sobre ele tem caído conta muito pouco, muitíssimo pouco porque quase não
pode exprimir-se de forma digna ou pelo menos aceitável. Ainda recentemente
houve uma acção referente ao surrealismo e, note-se, levada a efeito por gente
universitária de bom quilate. Pois a denominada “comunicação social”, tanto
quanto soube, irrelevou o mais que pôde tal acontecimento, ela que dá normal
relevo a patacoadas ou actividades roçando o pornográfico e/ou a imbecilidade
satisfeita.
E creio que não é preciso dizer
mais, nomeadamente o facto de que acções, no país e no estrangeiro,
protagonizadas por surrealistas daqui ou vizinhos deles são normalmente abafadas,
desprezadas ou postas do lado da sombra.
Ou seja, dantes eram atacados
publicamente. Agora, muito pior, tenta-se fazer crer que nem existem. É, claro,
o cripto-fascismo de fachada democrática no seu melhor…!
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