A cidade, com o tamanho que lhe é próprio,
cresce na noite até ao alvorecer. Os sonhos dos habitantes das casas imersas na
escuridão que pouco a pouco se desvanece, vão apanhar o dia pela sua cabeleira
de claridade. As cidades têm nome. Secreto ou simbólico, ele é contudo o nome
que as caracteriza, dado pelos séculos ou pela inspiração do Mundo.
   A cidade... Como um pássaro numa árvore da
aba da Serra a vejo agora, a podemos ver agora. Cidade de ruas estreitas onde
os desejos e os sentimentos, as amarguras e os dias felizes, os antigos passos
cadenciados de carruagens desaparecidas, hábitos desaparecidos, rostos e
figuras desaparecidas, deixaram uma sombra de nostalgia. Cidade de coisas novas
envolta em passado e ruídos novos, cidade de monumentos onde o espírito cruzou
o espírito, onde a grandeza se fixou em pedra, em madeira, em arabescos, em
cores indistintas. Cidade que roda como um rosto amado num espelho de casas e
nuvens rumorosas. Cidade de torres, cidade de vistas largas onde por vezes a
paisagem alarga as vistas curtas. Por estas ruas és feita de passos
cadenciados, estas ruas que circundam o teu corpo cravejado de portas, de
lugares fecundos, de ausências, de desejos e espantos, de naturalidade e fé, de
bondade e de maldade, do sereno existir duma cidade. Povoação de telhados
confusos, cruzados, de chaminés com seus fumos, com seus lutos, com seu
adivinhar de varandas e ninhos de gente. Cidade das ruas velhas e sonolentas,
ásperas, doces e pérfidas, ruas quotidianas sempre diferentes, sempre abertas
aos ventos, ao sol, ao revoar das lembranças daqueles que te sentiram com eles
dando a volta ao mundo em que existes e te perpetuas. A velha rua dos Potes, do
Comércio, a Corredoura, a rua dos Canastreiros, os teus largos diversos - numa
casa só se podem adivinhar. Perene regra de vida que é esta em que me é
definido o teu povo anónimo e mulheril, viril e pobre, rico de semelhanças com
o povo de outrora, de outras terras, da terra mãe que é a terra do homem do
dia-a-dia, eterno no seu rumorejar cordial e absorto, com bocas abertas para o
riso e a maledicência, para os nomes da ironia e da piedade. 
    Cidade de árvores citadinas, civilizadas,
mas que não perderam ainda o seu ar de mistério natural. Cidade de portas
vermelhas, de gaiolas e engaiolados, de roupas e gente pendurada, de frutos e
de tostões, de igrejas e misericórdias, de impiedade e destino certo, cidade
audaz e nobre, loquaz e linguareira, cidade de nomes de gente que a gente
inventou, cidade onde os 
quartéis se entrecruzam com a memória do passado, heroicidade e frustres vivências. Cidade de santos e cruzes para os sete reinos de santidade e perdão,
cidade que ao trabalho consagra os dias da sua viagem rotineira, cidade de
brazões, de motas, de carroças no mercado, de automóveis e operários, de arte e
de artistas, de pessoas que comem e que procuram comer, cidade de contrastes e
proibições, cidade melancólica, soturna, alegre, robusta e mercantil, de
cabritos e veterinários, de coisas de barro e do barro das coisas que se
multiplicam, cidade de brinhol e café, de poeira e polícias, de legumes
dentro do desejo incompleto dos nostálgicos do Oceano, pois a fauna do mar das
cidades é inconfessável. Se dos teus monumentos me aparto à realidade os
concedo: cidade de palácios e azulejos, cidade de pedra e cal onde as fontes
iluminadas de figuras e estátuas, de relevos e volutas, de tradição e lenda
desenham nas casas senhoriais um segmento de realidade temporal.     
    Cidade das janelas e dos longes do além, a
voz que de ti me chega é dolente como o ruído das praças por onde se expande a
vida dos que te habitam e te visitam. Cidade de jardins onde o amor se acolhe e
surge. Cidade de jardins suspensa no fremir dos cafés, dos cantinhos da
má-língua, da gente que toda a gente conhece, da gente que não se sabe se é
realidade ou hábito, gente de nomes sonoros, de tradição sabida, nomes que
estalam na língua como um pregão, cidade justa e injusta, atenta e desastrada,
nobre cidade onde por vezes os homens não se medem aos palmos. Cidade prenhe de
velhos, vasos a caminho de outra vida cidadã, plantas que o tempo vai lançar
noutra floresta, cidade de árvores e arbustos sob as estrelas e a lua, no suor
dos Verões, no pó da velhice que é humana e perdura. Cidade onde à juventude se
pode dizer que um lugar será diferente se o olharmos com olhos intactos,
generosos. Cidade de lagos domesticados e serenos, cidade que se vê e se
apalpa, se passeia e se canta, cidade sentada no jardim e sobre os seus
pensamentos. Cidade onde há sempre uma flor à entrada dos sonhos dos poetas de
bronze e de carne palpitante, onde as flores podem ser de ferro para as
estátuas amarguradas. 
Cidade dos castelos entre entontecidos e maravilhados, cidade que agrada às crianças, cidade da chuva e das vielas, das serras azuladas ao crepúsculo do cantar dos campos, do casario, dos miradouros e das sombras, cidade de linhas trémulas na noite que se expande contra o seu rosto pouco a pouco diluído, pouco a pouco sumindo-se numa outra viagem para o sono dos homens, do mundo, das cidades onde a frescura corre já anoitecida, inocente e imutável, cidade que se conserva desenhada, fantástica, harmoniosa e prudente no coração das casas e dos que a habitam com o seu indistinto e saudoso aceno de despedida.
ns
(Texto inicial do livro “A escrita e o seu contrário/ fotos de ns)


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