segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Para um minuto de meditação - 22

 

ns


“Faz falta a ética, que não é uma moral; pois a moral é episódica e depende de leis sociais frequentemente falsas e enganosas, enquanto a ética é uma atitude que faz parte da dignidade inscrita em cada um e inapagável”.

                                                                                 William Morrison


Gérard Calandre, Antologia

 



    TRÊS POEMAS DE  “V E S T Í G I O S”

 

   O título é a meu ver uma autêntica descrição da poesia a que serve de continente.

   O que na minha opinião a define é uma ironia magoada, entre a vigília e o sonho; a certeza ou a suspeita, pelo menos, de que o quotidiano é feito de rastos, de vestígios, de representações muito reais de fragmentos que não podemos dominar mas que importa tentar se nos ofereçam coerentes e organizando dess’arte um mundo habitável e inteligível. Sente-se nesta poesia, se bem a entendo, uma indisfarçável amargura pelo tempo perdido ou que não é dado alcançar-se mas, ao mesmo tempo, um fio de alegria - diria mesmo de esperança – cifrada na possibilidade de através das palavras se atingir uma reconciliação entre o ser humano e o universo que lhe caiu em sorte.

   É em consequência, nessa medida, uma poesia profundamente religiosa - não de religião revelada e sim de religação.

   No aspecto formal, diria discursivo, revela-se uma assunção de imagens através das frases que a configuram que, mais do que fotografias ou apontamentos visuais, são como que pequenos flashes ou iluminuras retiradas, corajosa e persistentemente, da vida breve a que o autor esteve ligado e que salvou dum desaparecimento inevitável, inscrito no seio da espécie ou, mesmo, perceptível na memória dos deuses simbólicos. - ns

 

NOTÍCIA

Ao declinar da tarde chego à cabana velha

de muitas gerações. O silencio deixa-me respirar.
As paredes ainda são as mesmas. Grandes manchas
de humidade, a luz de astros distantes, a presença
de pássaros desconhecidos. Os meus pensamentos que
iniciam a ronda das sombras. Era um dia era uma hora
propícia de repousos, de vozes como antigamente.
Coisas construídas e eu estou aqui
ladrar de cães entre as árvores. Eu vejo
mais do que a luz, as linhas leves dos montes.
Desce neles o perfil divino da terra molhada.
As estações na ombreira da porta Raramente lembramos
os lugares como um livro que se abre Horizonte já
inacessível.
O primo pequeno o calção sujo de terra Fotografias
pacientemente dispostas sobre a mesa de madeira
Sem detença me abandono Veredas perfumadas flores voando
pulsa lento o sangue junto ao esqueleto

Neste chão vos imagino calados como outrora
vida sem desenlace o fogo que se desenrola
amei em vós o fulgor do coaxar das rãs
o alfabeto sensível do que a escuridão me dizia.

Devagar. Deus dá-se por satisfeito espreguiça-se
no sereno entardecer. Devagar digo de mim para mim
Longa criatura arfando na terra nas horas que passam.

Abro a porta, aguardo a quietude abro a saída
uma chuva mais frágil entre duas águas que se reúnem.

 

A ROTA

 

Um mapa Encontro um mapa sobre a secretária

um mapa escolar dum colega de meu filho

A secretária A velha mesa de meu tio Vicente

Meu tio Vicente escrevendo nela cartas receitas de mercador

Lia o jornal    inclinado para trás arrotava

descobria mistérios   o mistério da aragem nova

as moscas zumbidoras Vagas résteas de sol a pino

Acrescentava frases num murmúrio inaudível

 

Tio Vicente escrevinhava   era um santíssimo chato

Um beijo tio Vicente

 

Um mapa Olho cidades ao longe Vejo rios

que se desdobram ao amanhecer

Vejo florestas   luzes   renques de ruas

Regresso a esta sala E em voz baixa

olho a ombreira da porta Tiro o pigarro Prossigo.

 

 

UMA SOBRE O AVÔ

 

Aos que falam em alemão e repõem conceitos

aos que num bar silencioso recordam outras eras

aos que, num dia de sol, sentem o frio das horas

e tremem tremem mesmo quando o calor aperta

Aos que balbuciam e aos que adormecem quando chove

aos que anunciam a morte a vários graus de distância

Aos que medrosos esperam e sabem para onde partem

e brilham noutro lugar e velam subitamente o silêncio

 

Ele ficava por vezes muito quieto

arfando   confiando nas coisas   interrogativo

comendo   dormindo   recreando-se habilidosamente

Com os dedos pacientes executava tarefas

exíguas e belas, estranhamente impetuosas

Ele olhava para longe e florescia como o calcário

Quando a música começava tinha por vezes sede

 

Aos que nunca souberam aos que nunca gravitaram

em suas atmosferas e seus ritos

 

Ficava com a brancura duma voz que o chamava

O Avô devagarinho ia para outros horizontes.


                                                                           (tradução de ns)

José do Carmo Francisco - Crónicas do Tejo

 

Foto de Nuno Botelho



Os marcos – dissertação para uma foto de Nuno Botelho


    Eram os marcos. Uma pontuação de pedra na terra da Cidade. Lá pelos idos de 1966 na Travessa do Caldeira em Lisboa havia um recanto dito «os marquinhos» que dava para a Rua do Poço dos Negros. Ali perto, no Largo do Conde Barão, havia marcos iguais onde os botes do tempo antigo se prendiam quando não havia Aterro e o Tejo estava logo ali. Basta ver em paralelo as gravuras da Estação de Santa Apolónia. A Avenida 24 de Julho veio depois com o seu arsenal de carros americanos, eléctricos compridos, autocarros verdes e o diabo a quatro. Hoje tem «tuk tuks» iguais aos de Banguecoque mas sem pedais nem meninas de doze anos à porta dos bares. Lá iremos, com estes imaginosos empreendedores tudo será possível. Eram os marcos. Eram os marcos e o sol, o mesmo sol que o Poeta Fernando Assis Pacheco gostaria de prender, de poder parar sobre a cidade de Lisboa. Mas os Poetas não são Deuses e essa tarefa de parar o sol é impossível aos Poetas. A única aproximação é a dos fotógrafos que registam e guardam o esplendor do momento. A foto regista o brilho do sol na pedra do marco, pedra gasta pela usura do tempo e dos rapazes que nela saltavam uns atrás dos outros, na alegria convocada das manhãs da Rua do Sol a Santa Catarina. O Rio Tejo estava ali tão perto. Os marcos lembram um poema de Dinis Machado bem disfarçado de prosa na página 99 do livro «O que diz Molero». Assim: «Apenas água. Água mãe da pureza. (O sangue que te dou é água rubra.) Água de tudo. Mas água viva. E antes que o silêncio da água nos descubra. Água das fontes para os teus ouvidos. Água da minha mão na tua mão. Água para os veleiros adormecidos nos telhados de cada solidão. Apenas água. E por falar em água (água de tudo, límpida e corrente) só eu sei como a água dos teus sonhos canta no coração de toda a gente.»

Beatriz da Conceição, Recado a Lisboa

 

(João Villaret / Martinho D'Assumpção)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Para um minuto de meditação - 21

 


“A partir dos trinta anos cada sujeito é responsável pela cara que tem, pois todo o tipo tem a cara que merece”.

                                                                                           Albert Loomis


Um poema de Cristino Cortes

 

O QUE FICA

 

Fica a poesia, claro, benefício da abertura temporal

De a ela, e com gosto, poder-me entregar. Só aqui

Poderia abalançar-me a um volume de 900 páginas. Li

Assim Homero e Camões, Nemésio, Sophia, agora por sinal.

 

De século mudo com frequência e facilidade extrema.

O canto dos jograis sem lupa no original entendo,

Passo depois à língua mais próxima de Garrett, qual o vento

Dispensando cuidados e temores em terra pequena…

 

E é também escasso o tempo balizando este arco

Onde me vejo e só assim defino a Pátria, minha amada:

Não sendo só o que é mas também o que já foi, projectada

No futuro como projéctil que não pára, certeiro e raro.

 

Qual linhagem, tronco, família, estirpe, que mais direi

Desta pertença a um fluxo que eu quero mas pouco sei?!

 

Até para algum café mais central não tenho pejo de assim levar

O que outros dirão dicionário, grosso calhamaço ou missal.

Tem é o carro de ficar perto, já que destas contas, no final

Não é muito cómodo tanto peso numa só mão passear.

 

Quase sempre em férias, sozinho nesta aldeia e adjacente

Cidade. Venho para descansar. A tão gostosos prélios me entrego.

Se o tempo me não permite outros afazeres a ilusão trasfego

De algumas leituras terminar…Pura ilusão. E sigo em frente.

 

Mas é isso que fica, esse testemunho, esse elo na cadeia

De que me vou sentindo parte, fazendo meus e melhor conhecendo

Parentes em que me honro e continuo. O facto é que, lendo-os

Aos mesmos deuses sacrifico, digamos pois que semelhante ideia

 

Me transcende, incessante direi dessa luta que única me importa.

Nesta casa do ser todo e cada um encontrará a justa porta.


                                                             Cristino Cortes

(Este poema encerra o livro, com o mesmo título, publicado no início de 2019 pela Editora Calçada das Letras, de Lisboa.)

Do Esmagamento como uma das Belas Artes

 

Nicolau Saião, Hoje


    Unamuno, em carta célebre a Manuel Laranjeira, chamou a Portugal “um país de suicidas”. Por seu turno, Robert Demonceaux opinava que, em todo o caso, aos lusitanos de qualidade pouco acomodatícia e não bajuladora estavam sempre abertas três vias: a vida resignada e medíocre, a emigração ou eventualmente a corda numa trave…Talvez de algum desvão, parafraseando Régio.

   Claro que dentre estes nem todos acabam por fora: há também os que, não se entendendo com a louvaminha, arrastam durante anos por dentro o seu destino, como por exemplo Raul Leal. Este homem, um dos espíritos mais interessantes que por cá sorveu o ar, saía um dia da Casa da Misericórdia (teria lá ido comer umas sopas?) quando foi interpelado por Abel Manta. “Como vai, Dr. Leal?”, perguntou-lhe inquieto e relanceando os seus andrajos. “Olhe, vou como vê…um farrapo. Sou um autêntico farrapo”, respondeu o autor de “Sodoma Divinizada” que Fernando Pessoa tanto estimava. Devido ao seu todo diferente, à sua maneira de ser eminentemente não enquadrada, Raul Leal sofreu como muitos outros artistas a estultícia e a falta de abertura de um meio ainda pior que o de agora, onde aliás o cinismo também medra.

    Existem também os que, como alguns surrealistas gostavam de dizer, “julgam certeiramente o sistema e o tratam de maneira adequadamente astuciosa”. Outros há, contudo, que se resignam e, então, tornam-se cumprimentadores vulgares ou se vendem sem rebuços. E temos nessa conformidade os poetas de Estado, os apepinadores de partidão e os rimadores de coisas da moda, peralvilhos à la page que têm para seis anos de imortalidade, os oportunistas por decisão que, sendo arteiros, singram nas suas pequenas barcarolas – por vezes mesmo amargamente se ou quando lhes resta um niquinho de carácter.

Tempos atrás tive o gosto de falar com um amigo de longe, um operador de coisas belas que tem sido sempre um marinheiro de alto curso: o Manuel Caldeira, que mesmo vivendo lá fora procura estar muito a par de coisas cá de dentro. E, no vaivém da conversa, como se falara num amigo de apelido comum a outro, pediu-me esclarecimentos sobre um autor teatral: Miguel Rovisco.

   Lá lhe prestei a informação que tinha, de que dispunha. E quem é, quem era, quem foi Miguel Rovisco?

    Um modesto funcionário da Câmara Municipal de Lisboa mas também, de acordo com os conhecedores ou investigadores do fenómeno teatral português, um dos maiores dramaturgos lusos do século transacto (que se prolonga, nos seus meandros criativos, até aos dias de hoje). Prémio Nacional de Teatro de 1986, autor de centenas de poemas e de vinte peças dramáticas, viveu muito à margem do sistema, com os consequentes custos. Uma sua trilogia, composta pelas peças “O Bicho”, “A infância de Leonor Távora” e “O tempo feminino”, que recebera aquele galardão, não fôra – como teria sido previsto – representada no Teatro Nacional na altura estipulada.

   Disse também ao meu confrade que os jornais haviam noticiado num certo dia que Miguel Rovisco havia posto termo à vida – em Belém, sob o rodado dum comboio, no mesmo sítio que já servira a Cristóvam Pavia – por desespero, ferido com as condições miseráveis que canonicamente continuam a enlear o meio cultural lusitano. O mesmo meio que já sufocou e estorvou tantos criadores e continua a prejudicar arteiramente tantos interessados numa existência de qualidade, menos abjecta e mais profunda e onde não sejam possíveis, como hoje são desvergonhadamente, “génios por via administrativa”, partidária e ideológica ou de compadrio civil.

    Sim, há gente que “não aguenta a pedalada” como sói dizer-se e parte entre choro e ranger de dentes. Enquanto, geralmente, os meios oficiais – as quintas dos que todo lo mandam, enovelados nas suas contradições e narcisismos - tratam a criatividade e os seus protagonistas como potenciais ornamentos, como ilustradores de actividades para prestigiar a gerência, a intendência, essas montanhas que parem ratos e são aparelhagens para a desmiolação do poviléu, que lá bem no fundo desprezam simulando – com papas e bolos…como diz o ditado – que lhe querem com afecto e carinho mui alevantado…

    PSCRIPTUM - De há uns tempos a esta parte tem-se assistido – com algum divertido pasmo, quando não é com o sobrolho franzido por óbvias razões… - ao suceder de homenagens e celebrações a Mário Cesariny. O que seria de muito louvar não se misturassem a esses eventos, como ornamentos ou mesmo semi-protagonistas, elementos do sector estatal, governamental e pelo estilo. Gente que representa aqui e agora o que de mais oposto há em relação à vivência surrealista, à vida sem simulacros e sem próteses oportunistas. O tipo de cavalheiros/as que mais tem impedido que neste país a prática – sublinho, prática – surrealista possa incrementar-se, para que como se pretendeu sempre, nesse sector vital, a verdadeira vida se configure ela mesma.

    Antolha-se-nos, se tivermos um mínimo de sagacidade ou de bom-senso, (que é a mesma coisa, neste caso) que o que se pretende é – mais uma vez, como já assinalámos em escrito anterior – capturar a figura de Cesariny para mais eficazmente se solapar o que é e o que pretende realmente o surrealismo, de que ele foi um cultivador vital até morrer. O que está muito para além das jornadas artísticas com que alguns estrategas buscam encandear a sua verdadeira essência.

                                                                                             ns

Patxi Andion, Los Burmanos Hugueses

 



segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Para um minuto de meditação - 20

 

ns


   “A arte é simplesmente um método acertado de fazer as coisas. A prova do artista não consiste na vontade que põe no seu trabalho, mas na excelência da obra que produz”.

                                                               Tomás de Aquino


Um poema de Robert Desnos

 


VENTO NOCTURNO

No mar marítimo perdem-se os perdidos

Os mortos morrem caçando caçadores
dançam à roda uma dança de roda
Deuses divinos!

Homens humanos!
com os meus dedos digitais despedaço um cérebro
cerebral.
             Que angustiante angústia
Mas as  amantes amestradas têm cabelos cabeludos
              Céus celestes
              terra terrestre
mas onde está a terra celeste?

 

                                                        in “Corps et biens”

                                                                   Tradução de José Pascoal

Oleg Almeida, Ofício de tradutor

 

(Palestra proferida na sede da Associação Nacional de Escritores em 05 de março de 2020)

 

Quem é o tradutor, aquela pessoa afeita à caneta e, nos dias de hoje, ao laptop, cujo trabalho consiste em transpor – frase por frase, ideia por ideia – os mais diversos textos de um idioma para o outro? Brilhante linguista que se empenha em decifrar os mistérios das épocas remotas e dos países longínquos, levando-os ao conhecimento do curioso público, ou escritor frustrado que se contenta em popularizar os livros de outrem por lhe faltarem sorte ou coragem na promoção dos seus? Artesão das palavras que preza pela qualidade formal de suas versões longa e pacientemente lapidadas a ponto de subestimar a profundeza espiritual dos originais vertidos, ou provedor da aproximação cultural entre os povos, que muitas vezes nada têm em comum, além da literatura traduzida e, dessa maneira, compartilhada?

Não sou adepto de nenhuma destas opiniões, sejam corretas ou não... Para mim, o tradutor é, antes de tudo, um bom professor incumbido de ensinar aos autores estrangeiros uma língua bem diferente da que deu asas à criatividade deles. Há professores que, por algum motivo, tomaram conta de uma só turma escolar; assim foi o poeta russo Nikolai Gnêditch que dedicou a vida inteira à tradução da grandiosa Ilíada de Homero. Há mestres que criaram toda uma plêiade de discípulos talentosos; este seria o caso de Tadeusz Boy-Źeleński, cujo labor incansável brindou os leitores poloneses com a chamada “biblioteca de Boy” composta de quase 100 tomos traduzidos do francês. O mesmo se refere aos virtuais alunos: há quem estude aplicado e obediente (tais são as obras de Gustave Flaubert e de seu amigo Ivan Turguênev, facilmente lidas e interpretadas em qualquer parte do mundo) e quem se mostre cheio de rebeldia (os colegas que já tentaram traduzir, digamos, Guimarães Rosa com seus abundantes neologismos, herméticos até para os conterrâneos dele, não me permitiriam mentir acerca das dificuldades técnicas desse tipo de tradução). Aliás, poderia citar as minhas próprias experiências com os autores que traduzo dia após dia. Fiódor Dostoiévski é um aluno problemático. Seu estilo me tira volta e meia do sério: parece que o escritor não atenta absolutamente para o lado estético de seus livros, escrevendo tudo quanto lhe passa pela cabeça sem se importar com o conforto de quem for lê-los. “Será que não daria para trabalhar um pouco mais a forma?” – venho travar uma conversa imaginária com ele –, “desde que o conteúdo é tão exímio assim? Sabe... diminuir o tamanho das frases, evitar essas frequentes repetições e, sobretudo, essas contradições que deixam o leitor, por mais que se habitue à sua escrita, de queixo no chão, abrir mão das palavras que constam nos dicionários, mas nunca se empregam na vida cotidiana?” – “Não daria, não! Escrevo do jeito que quiser” – responde Dostoiévski, cáustico como sempre foi. – “Que o leitor use a cuca; senão, que vá tomar banho!” Leon Tolstói é, pelo contrário, um aluno exemplar. Sua narração não é áspera nem contraditória, seu pensamento se desdobra lenta, mas logicamente, de modo que a maioria dos leitores o capta e assimila sem o menor esforço. Acabo por elogiá-lo: “Está tudo certo, senhor conde! Parabéns pelos seus textos, bem fáceis e agradáveis de traduzir”. – “Vous êtes trop gentil envers moi” – responde Tolstói em francês, como falava em vida com seus próximos. – “Je ne sais si je le mérite... après tout, je ne cherche qu’à me faire comprendre(1)”. Se fosse possível medir o desempenho desses corifeus russos com uma banal escala numérica, ganhariam ambos a nota 10: Dostoiévski pela complexidade linguística, e Tolstói, pela transparência clássica de seus escritos. E por aí vai, sendo inúmeros os obstáculos que todo e qualquer tradutor literário tem de superar em seu trabalho rotineiro, as dúvidas que o cercam, as opções e divergências que o desesperam.

Em resumo, a figura do tradutor é tão humilde e, ao mesmo tempo, sublime quanto a do educador: seu nome vem impresso em letras miúdas, seus honorários nem se comparam aos de uma estrela literária, porém o mérito e a glória de sua profissão revelam-se incontestáveis. Igual ao pedagogo entusiasmado com o sucesso dos antigos pupilos que cresceram e apareceram, eu me sinto todo orgulhoso de ter ensinado Baudelaire e Púchkin a falar português. E este é o maior estímulo para cumprir em rigor o meu ofício modesto e nobilíssimo!

Após esta parte empírica, gostaria de comentar um pouco, de maneira mais concreta, sobre os princípios tradutórios aos quais me atenho, em geral, e sobre algumas das minhas traduções literárias, em particular. Muitas das pessoas aqui presentes sabem que nasci e me formei como personalidade na extinta União Soviética, e que sou, portanto, um produto legítimo do sistema soviético de ensino médio e superior... Havia duas escolas de tradução literária naquele país, ambas constituídas na década de 1920 quando o regime comunista ainda abria um espaço relativamente largo a toda espécie de experiências científicas e manifestações artísticas. Uma dessas escolas, a da tradução “técnica ou tecnologicamente precisa”, era bem rigorosa, digamos, cartesiana em tratar tanto o conteúdo quanto a forma das obras traduzidas de todos os idiomas imagináveis para o russo; a outra, a da tradução “criativa”, lidava com os dois componentes, a forma e o conteúdo, com uma liberdade maior, alegando que não se traduziam as palavras e frases exatas do autor, mas antes as ideias dele e as imagens criadas pela sua inspiração, que se preferia “repensar” e depois “recriar” sua obra num idioma diferente a reproduzi-la de modo fiel e idôneo, maldosamente taxado de “servil”. Mais tarde, pelo fim dos anos 1930, a escola “criativa” ganhou um amplo reconhecimento oficial, foi amparada e promovida pelas autoridades culturais, enquanto sua rival, a escola “tecnicamente precisa”, ficou posta em segundo plano, se não reprimida por elas. Basta dizer que um dos principais expoentes da escola vencida, o filósofo Gustav Schpet que sabia 15 idiomas além do materno, acabou sendo acusado de espionagem e alta traição, sem nenhuma prova séria desses crimes, preso e fuzilado para ver que a luta política, mesmo numa área tão distante do comunismo, do capitalismo e de todos os outros “-ismos” que a gente conhece, era então extremamente acirrada e não raro levava ao desfecho trágico.

Eu mesmo descobri essas duas escolas de tradução bem cedo, quando só começava a estudar Letras e sonhava, daquela maneira ingênua que é inerente a muitos jovens, com uma possível carreira tradutória. Os métodos da predominante escola “criativa” me foram ensinados na faculdade; quanto aos da escola “tecnicamente precisa”, vista como ultrapassada, arcaica, digna de algum museu por ali, tirei-os dos livros antigos que lia na época. Fiquei encantado, sem exagero algum, com essa tradução “tecnicamente precisa” (sobretudo, em prosa, já que em poesia a metodologia “criativa” se impõe e prevalece naturalmente, seja no Brasil, na Rússia ou em qualquer outro ambiente linguístico) e logo passei a utilizar seus preceitos nas primeiras traduções estudantis que fazia, inclusive para exibir minha pretensa erudição e desafiar meus professores. Não falo agora daqueles problemas que arrumei no período de aprendizagem, mas foram bem numerosos... Muitos anos depois, quando me mudei para o Brasil e me dediquei profissionalmente à tradução literária, continuei traduzindo dessa maneira já testada e assim, pouco a pouco, entrei em contato com as obras de Dostoiévski e de Tolstói. Gostaria de frisar outra vez que se trata apenas de obras prosaicas, romances e contos, porquanto a tradução “tecnicamente precisa”, viável e, a meu ver, desejável em prosa, pode resultar numa catástrofe literária em poesia!

Pois então, como seria a tradução “tecnicamente precisa” de cujos princípios lancei mão para enfrentar, por exemplo, Crime e castigo de Dostoiévski ou Anna Karênina de Tolstói? São muito simples: a fidelidade e a autenticidade. Cheguei a pormenorizá-los, aliás, num pequeno artigo intitulado “Catequese tradutória” e disponível, em formato eletrônico, na Internet. Cada vez que me vejo encarregado de um novo trabalho, faço questão de recapitular, aqui com meus botões, alguns desses princípios: “Trate o autor traduzido com todo o respeito: mesmo se discordar cabalmente dele, não modifique nem adapte, de modo algum, o que ele escreveu, permitindo que os leitores o julguem como lhes aprouver... Não interprete: atribuir suas próprias convicções políticas e preferências estéticas ao autor traduzido, seja ele quem for e, máxime, se não viver mais neste mundo, é um pecado dos grandes... Não complique nem descomplique o que estiver traduzindo: siga os passos do autor, um por um, abstendo-se de inventar os floreios verbais que não constarem do seu texto e de clarear as passagens obscuras que dele constarem... Seja exato: caso o autor traduzido ficar gaguejando, imite zelosamente os gaguejos dele; caso se engasgue, tussa de igual maneira; caso diga algum disparate, repita-o fazendo de conta que o acata em gênero, número e grau...”. Tomemos apenas um exemplo simples para ilustrar a diferença entre as duas traduções antagônicas, a “tecnicamente precisa” e a “criativa”, e demonstrar quão complicado pode ser, vez por outra, este meu trabalho. Vejamos apenas uma frase transcrita de um livro famoso: “Provavelmente, a paciente convalescerá de novo, só que depois, novamente, adoecerá de novo e, finalmente, morrerá”. Quem é o autor dessa frase comprida, pleonástica e meio difícil de ler? Dostoiévski em pessoa, cujas obras contêm uma profusão de frases do mesmo feitio. De acordo com sua biografia, era um homem muito infeliz que se viu, durante a vida toda, perseguido pelos credores e agiotas, pressionado pelos editores inescrupulosos, tendo de entregar manuscritos “para ontem” e de resgatar os pertences de sua família, inclusive as roupas de baixo, que penhorava volta e meia a fim de suprir as necessidades básicas dela. Percebe-se a olho nu que seus romances mais aclamados foram compostos às pressas, literalmente “ao correr da pena”, com pouca (ou, às vezes, nenhuma) lapidação estilística, que Dostoiévski não gostava de termos breves, como “depressa” ou “rápido”, trocando-os amiúde por “apressadamente” e até mesmo “apressadinhamente”, e não se limitava a chamar um dos seus personagens de “calvo”, mas insistia em adjetivá-lo de “calvo e careca”. Por que fazia isso? Porque era pago por lauda, e bastante mal pago (chegava a ganhar 4 vezes menos do que seu colega Turguênev), precisando maximizar a extensão física dos textos que redigia no intuito de aumentar seus honorários. Desse modo, se eu fosse um tradutor “criativo”, sentiria, o tempo todo, uma forte tentação de interpretar, ou melhor, de reescrever os livros de Dostoiévski naquele bonito e correto português de Machado de Assis que nós todos apreciamos tanto. Neste caso específico, produziria uma frase mais leve, mais fluida: “É provável que a paciente venha a convalescer, porém, mais tarde, adoecerá de novo e acabará morrendo” ou algo do mesmo gênero. O sentido literal do original russo seria preservado na íntegra, sim... Contudo, não seria mais Dostoiévski: a aspereza inimitável de seu estilo truncado, caótico, enervado e enervante haveria de desaparecer na versão portuguesa, e os leitores lusófonos dessa versão “criativa” ficariam ludibriados. Mas, afinal de contas, quem sou eu para substituir a escrita de Dostoiévski pela minha própria escrita e, ainda por cima, abusar da confiança de seus leitores?

Uma porção de dificuldades técnicas surge também quando se trata de traduzir as obras de Tolstói. Lá o problema decorre daquela constante influência da língua francesa, usada pelo escritor russo com plena desenvoltura em sua vida cotidiana, que transparece nos romances Guerra e paz e Anna Karênina, além de vários textos menores. Ao analisar o original de Anna Karênina, compreendi que traduzir esse livro significaria estabelecer algum tipo de equilíbrio razoável entre os três idiomas patentes ou subentendidos nele: o russo convencional do século XIX, o francês culto, falado pela elite do Império Russo, e o português castiço, por um lado mais ou menos próximo do contexto histórico em que o romance de Tolstói foi concebido, mas, por outro lado, nem tão próximo assim, para não espantar o futuro leitor brasileiro. Se não levasse tais fatores em consideração, como traduziria, digamos, esta frase: “Calada, enternecida, Kitty olhava para Várenka com seus grandes olhos abertos”, já que ninguém olha, nem sequer poderia olhar, de olhos fechados? Estranha para qualquer leitor russófono ou lusófono, ela pode ser explicada com a hipótese (um tanto temerária, mas plausível) de que, antes de escrevê-la em russo, o autor tenha pensado: “Silencieuse, attendrie, Kitty regardait Varenka, les yeux grands ouverts...”, o que não apenas seria normal em francês, mas obviamente traria consigo uma imagem bela e persuasiva. O conhecimento acadêmico da língua francesa, com que tenho lidado, embora em menor grau, aqui no Brasil, é muito importante para decifrar as charadas desse tipo!

Resumindo enfim o que acabei de dizer, posso declarar que meu trabalho não presume nenhuma prática iconoclasta nem tende a colocar a visão brasileira da literatura clássica russa, consolidada há muito tempo, de cabeça para baixo. É tão somente uma tentativa de aproximá-la do público brasileiro de nossos dias, sem adaptar, entretanto, os respectivos textos às noções estéticas dele. Quando alguém se põe a estudar uma língua qualquer depois de adulto, pode conseguir uma fluência impressionante em usar essa língua, mas quase seguramente vai usá-la, pelo resto da vida, “com aquele acento chato e falso” que, segundo Eça de Queirós, “denuncia logo o estrangeiro”. É claro que meus Tolstói e Dostoiévski falam português com certo sotaque russo, mas faço de tudo para que esse jeito de falar não interfira nem um pouco na adequada compreensão de suas obras. Minha tarefa consiste, pois, em encontrar a aurea mediocritas à qual se refere o poeta romano Horácio, em fazer, conforme um velho provérbio russo, com que “os lobos sejam saciados, e as ovelhas, poupadas”, em harmonizar dois mundos tão dessemelhantes no sentido cultural quanto o são, no sentido físico, um coqueiro e uma bétula. E se, pelo menos, alguns leitores das minhas traduções conseguirem transitar, com naturalidade, entre esses dois mundos e entender que, apesar das suas inúmeras diferenças, são ambos igualmente humanos, a minha tarefa profissional será cumprida!

 

(1)   É muita gentileza sua. Não sei se mereço isso... no fim das contas, só procuro fazer que me entendam.

                                                                                           Oleg Almeida

Jona Lewie, Stop the Cavalry

 


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Para um minuto de meditação - 19

 

Principalmente dos mandantes do actual regime

“Amiúde, o ódio disfarça-se com um semblante sorridente e a língua expressa-se num tom amistoso, enquanto o coração está repleto de fel” – Sólon

                                                      Jorge Gaillard Nogueira


Um poema de Luís Serrano

 

ALGUMAS PALAVRAS 1

Algumas palavras
entram pelo outono
anoitecidas
rasas

são palavras
que se esgotaram
por entre o que sobra
das lides domésticas

nada mais esperam
do que a água
as mós do silêncio
a pedra


Relembrando Dinis Machado

 


Palavras prévias

  Uma das consequências – e não pequena – que o 25 de Abril permitiu foi o aparecimento das rádios regionais.

   Passados os meses, ora estranhos ora vacilantes do denominado PREC, com todos os seus ressaibos que se certificaram, frequentemente, em exaltações partidárias e angústias cidadãs, os tempos pós-abrilinos entraram em velocidade de cruzeiro, que o mesmo é dizer estabilizando uma democracia e um regime que, passadas décadas, entrou definitivamente, agora, num circuito partidocrático pouco acolhedor dos mais belos sonhos duma Nação de Direito que se tem visto coroada, ad contrarii, por desvigamentos e caquexias as mais diversas.

   As rádios regionais, a princípio de maneira incipiente – muitas vezes de forma ingénua e seguramente apaixonada – surgiram tendo a si estreitamente colada a novidade de um meio que até então parecia estar reservada a elites na órbita da governação, mas também, e a breve trecho isso foi notório, o cariz de servir muito bem a propagandas e a inflexões onde não assentava a melhor ética democrática.

    Mas, a pouco e pouco, a poeira foi assentando, os percursos cimentaram-se e a aceitação popular foi crescendo.

    Em Portalegre, uma das duas rádios pioneiras (Rádio Portalegre) resistiu à erosão dos tempos e segue emitindo regularmente com razoável audiência, posto que o seu impacto qualitativo – e o contrário é que seria de estranhar – tenha perdido em boa parte o fulgor dos iniciais tempos heróicos.

    Naquele tempo – falamos nos anos que vão de 80 a 95 – vários programas ganharam estatuto significativo. Um deles chamou-se “Mapa de viagens” e teve 36 emissões, divididas em duas séries de dezoito com 4 meses de intervalo.

    Multifacetado, seguindo um modelo apelativo e apoiado em confrades que o ladeavam (o delegado para contactos em Lisboa, José do Carmo Francisco, foi uma peça muito importante na sua feitura) ele atingiu números fortes no ranking nacional das rádios regionais (o terceiro mais ouvido no país). Participaram nele nomes significativos da cultura lusa por extenso, nos ramos da literatura, da pintura, da canção, da ciência, do cinema e do teatro, do mundo jurídico e desportivo, etc. De Rui Mário Gonçalves a Francisco Fanhais, de José Manuel Anes a Armando Leandro, de Fernando Vandrell a Matilde Rosa Araújo, de Carlos Pinhão a José Moura Semedo, de Takis Panayotis a Joana Ruas, António Luís Moita, José Bento, Adel Sidarus, António Ventura, Amorim Afonso, Juan Pedro Moro, Fernando Grade, etc – trinta e seis convidados ali estiveram, comunicando com os ouvintes, nos seus ramos de acção.

    Dinis Machado foi um deles. O material que a seguir se dá a lume recolhe dos prolegómenos até ao escopro do programa, que teve a sua efectivação numa bela noite de Junho que muitos não esqueceram durante tempos.

                                                              *

Carta de DM a NS (manuscrita)

Lx.boa, 16/4/90

         Meu caro Nicolau:

         Muito obrigado pela sua carta e o seu interesse. Também o José do Carmo Francisco me telefonou por causa do seu trabalho. Em princípio estarei sempre à sua disposição, mas estou com vários assuntos em mãos, a minha mulher bastante doente (e eu queria levá-la comigo a Portalegre) e uma ida ao Norte, já com certo compromisso, próximo dessa data. Pequenos problemas, é certo – mas poderemos fazer o nosso “O olho e a lupa” lá mais para a frente? Talvez Junho? É uma hipótese, embora eu esteja a leste dos seus compromissos. Diga qualquer coisa – e encontraremos uma solução.

      Um abraço chandleriano do

                                                                          Dinis Machado

Nota – A mulher de DM era a cantora lírica Dulce Cabrita, na altura sofrendo de uma constrangedora afecção psicológica.

                                            *

Resposta de NS a DM (dactiloscrita)

             Portalegre, 23 de Abril de 1990

Caríssimo Amigo:

Grato pela sua carta e, naturalmente, pela sua disponibilidade, que espero se traduza, lá para diante – como sugere, mas já iremos a isso – numa viagem e num contacto em que terei muito gosto.

Antes de continuar, espero que sua Mulher esteja melhor. Será com muito gosto que a receberemos, também a ela (o José do Carmo Francisco disse-me, a talho de foice, de quem se tratava – e eu recordo, recordei imediatamente, que uma vez li no “Diário de Lisboa – Juvenil”, onde comecei a publicar os meus poemas, a notícia de que a rapaziada de lá poderia ir ouvi-la cantar numa sessão dedicada aos jovens desse “Juvenil” que foi uma coisa tão curiosa).

Ora bem: passando à data da deslocação (e digo que compreendo os factos que impedem a sua vinda agora): que tal 26 de Maio ou 9 de Junho? Essas alturas estão livres; seria possível? E, desde já, um obrigado forte pela maçada!

(Já agora, um aparte – mas importante para o meu filho Tó: ele, que além de ser guarda-redes do Estrela – e já nos séniores com 17 anos, desculpe este pai babado – é um leitor impetuoso (de há uns meses para cá lê com ganas e com discernimento, o que muito me agrada) quando soube que eu o contactara, que me havia escrito e que lhe iria escrever, disse-me: “Ó pai, diz ao senhor que gostei muito do “Molero”; diz-lhe pai, está bem?”. Prometi que sim, àquele adolescente natural e puro. E aqui lho digo.).

Por ora é tudo. No próximo sábado, cá estará Carlos Pinhão para “O desporto de viver”. Anteontem foi o José do Carmo Francisco e o António Ventura com “O homem na cidade” (que correu bastante bem).

A propósito, no dia 4, na “Barata”, será o lançamento nacional da “Cidade”, revista dirigida pelo António (Ventura) e da qual sou colaborador. Se eventualmente lá puder aparecer, para além do gosto de trocar consigo alguns minutos de conversa, poderemos concretizar melhor a data e a vinda. Se não lhe calhar, pois fico aguardando o que entender dizer-me.

Retribuo o chandleriano abraço. E mando outro, hammetiano, com apreço e estima.

       Fica o

                                            NSaião (manuscrito)

                                                              *

“MAPA DE VIAGENS – um programa sem fronteiras onde o ouvinte tem figura de corpo inteiro


Emissão de 9 de Junho de 1990 (sábado) das 22 às 24 horas


 O Olho e a Lupa”, com Dinis Machado

Palavras introdutórias a seguir ao Indicativo musical:

    Falar de literatura policial é falar de segredo e de mistério. E é também, ao mesmo tempo, falar dos dramas insondáveis da alma humana e dos desvigamentos da sociedade. Com efeito, assente no enigma que provém do crime escondido e propiciado por condições muito próprias, o livro policial traça o perfil do homem e do meio social em que este evolui. Mas há sempre, como na fábula, “o gato escondido com o rabo de fora”. Nesta conformidade, tinha de aparecer alguém que servisse de rectificador de destinos e de acontecimentos: e aí está o detective da ficção, uma das mais típicas personagens da literatura do nosso tempo.

(música)

    O detective, seja ele amador esclarecido ou profissional encartado, funciona sempre como um verdadeiro Édipo – é aquele que desvenda o segredo da Esfinge repondo o equilíbrio e a realidade dos factos. Proporciona, no plano psicológico que a escrita permite, uma verdadeira catarse. O leitor de novelas policiais, no fundo propõe a si mesmo uma viagem pelos lugares ensombrados, cuja iluminação simbólica é dada no fim pelo investigador de ficção. E isto porque existe em toda a gente uma apetência de mistério e, simultaneamente, uma apetência de verdade nua e crua. Como muito bem sublinhou o grande cineasta Woody Allen numa das suas obras primas, “Os dias da rádio”, não era por acaso que por essa altura milhões de ouvidos se colavam ao receptor, quando eram emitidas as célebres novelas-radiofónicas baseadas em textos de Maxwell Grant, Conan Doyle e outros. Assim como não o era quando em Paris, nos anos a seguir à Segunda Guerra Mundial, os jovens artistas da Rive Gauche escreviam nas paredes “Viva Fantômas!”, aludindo ao célebre personagem de Pierre Souvestre e Marcel Allain. E quem não gosta das histórias de Sherlock Holmes, Philip Marlowe ou Poirot – sejam elas dadas nos livros, no cinema ou na televisão?

(música)

    Na verdade, o segredo e o mistério são componentes universais. E até entre os dogons do Sudão o grande antropologista Marcel Griaule foi encontrar relatos orais aparentados com aquilo que no Ocidente tomou o nome de literatura policial. Que, ressalte-se, não é um relatório policiesco – mas sim ficção enigmática.

(música)

    Hoje, para falar deste tema aliciante, temos entre nós um homem que além de ter escrito diversos textos de que um se pode destacar pela sua brilhante feitura, generosidade e força – refiro-me ao justamente célebre “O que diz Molero”, que é igualmente uma vibrante homenagem à literatura viva – também escreveu textos policiários e que é, além do mais, um apaixonado por este género literário. É pois com muito gosto que aqui recebemos, para dialogar com todos nós – e desde já lhe dou as cordiais boas-vindas – Dinis Machado.

(música)

    Seguiu-se um diálogo com o convidado - entremeado por música a carácter, leitura de poemas adequados e pequenos trechos - havendo um período de 15 minutos em que os ouvintes interagiram com aquele e com o realizador do programa. Foi lido, na ocasião, o poema seguinte de NS, dedicado a Dinis Machado e que teria a sua publicação posterior em livro na colectânea “Os olhares perdidos”:


MARLOWE

Aos deuses, que o sereno céu sustenta

entre Amarillo Road ou Canyon Drive

ou em esquinas de ruas indiscretas

como luzes num bosque além dos montes

ofereço as minhas horas de amargura

e muitas meias-noites em meu rumo.

 

Acresce que

fui sempre muito pouco metafísico

mau grado a nostalgia que me punge

ao longo de não poucos boulevards.

 

Morenas tive algumas, mas não foram

mais que pistas abertas p'lo destino

como louras que rápido olvidamos

- fios de música correndo pelo tempo

e uns sopapos ao norte da figura.

 

Fiz de conta que os anos eram flores

numa campa de amigos ou de amores

sonhos que o vento leva quando calha

como folhas das árvores de Los Angeles.

 

Saber de mais é obra que não chega

p'ra ti, p'ra mim, p'ra todos os que sofrem

em vernáculo ou calão.

 

Dizer da vida o pouco que nos dá?

 

Prefiro um highball bem fornecido

um disco de hot jazz a meio da tarde

(solarenga ou chuvosa)

- até as convenções nos são propícias

se a carne é fraca, posto que perspicaz.

 

Nos meus arquivos guardo alguma 'sperança

mesmo que o tempo venha   e me devore.”.

 

 

Nota final

 

O “Mapa de Viagens” aconteceu durante a gerência do Dr. Nuno Oliveira, que era na altura, e o foi em anos seguintes, director do Instituto Politécnico de Portalegre. Tinha o patrocínio da Empresa “Delta” de Rui Nabeiro, de Campo Maior.

 

Durante vários anos participei em outras realizações: rubricas noticiosas e informativas, entrevistas e programas de índole cultural, onde era solicitado, nomeadamente, a dar conta das minhas actividades, que eram razoavelmente menos intensas que posteriormente ou mesmo agora, no país e no estrangeiro.

 

Entrada outra gerência – e decerto por simples coincidência – os contactos pontuais que me eram solicitados ou propostos cessaram. Não mais me foi dirigida qualquer suscitação/pergunta ou dada qualquer notícia sobre as minhas actividades, com excepção de parabéns aquando dos meus aniversários e pequenas nótulas aliás feitas com apreço, ambos pelo Prof. João Ribeirinho Leal, colaborador da emissora com um espaço de uma hora, aos sábados de manhã - e a quem nesta oportunidade agradeço furar dest’arte uma “barreira de silêncio” que, ao autor portalegrense activo/interventivo que continuo sendo, não deixa de espantar um pouco… bem como a diversas pessoas que se me têm dirigido.

 

                                                                                               ns   


ns

Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...