Palavras
prévias
Uma das consequências – e não pequena – que o
25 de Abril permitiu foi o aparecimento das rádios regionais.
Passados os meses, ora estranhos ora
vacilantes do denominado PREC, com todos os seus ressaibos que se certificaram,
frequentemente, em exaltações partidárias e angústias cidadãs, os tempos
pós-abrilinos entraram em velocidade de cruzeiro, que o mesmo é dizer
estabilizando uma democracia e um regime que, passadas décadas, entrou
definitivamente, agora, num circuito partidocrático pouco acolhedor dos mais
belos sonhos duma Nação de Direito que se tem visto coroada, ad contrarii, por desvigamentos e caquexias
as mais diversas.
As rádios regionais, a princípio de maneira
incipiente – muitas vezes de forma ingénua e seguramente apaixonada – surgiram
tendo a si estreitamente colada a novidade de um meio que até então parecia
estar reservada a elites na órbita da governação, mas também, e a breve trecho
isso foi notório, o cariz de servir muito bem a propagandas e a inflexões onde
não assentava a melhor ética democrática.
Mas, a pouco e pouco, a poeira foi
assentando, os percursos cimentaram-se e a aceitação popular foi crescendo.
Em Portalegre, uma das duas rádios
pioneiras (Rádio Portalegre) resistiu à erosão dos tempos e segue emitindo
regularmente com razoável audiência, posto que o seu impacto qualitativo – e o
contrário é que seria de estranhar – tenha perdido em boa parte o fulgor dos
iniciais tempos heróicos.
Naquele tempo – falamos nos anos que vão de
80 a 95 – vários programas ganharam estatuto significativo. Um deles chamou-se
“Mapa de viagens” e teve 36 emissões, divididas em duas séries de dezoito com 4
meses de intervalo.
Multifacetado, seguindo um modelo apelativo
e apoiado em confrades que o ladeavam (o delegado para contactos em Lisboa,
José do Carmo Francisco, foi uma peça muito importante na sua feitura) ele
atingiu números fortes no ranking nacional
das rádios regionais (o terceiro mais ouvido no país). Participaram nele nomes
significativos da cultura lusa por extenso, nos ramos da literatura, da
pintura, da canção, da ciência, do cinema e do teatro, do mundo jurídico e
desportivo, etc. De Rui Mário Gonçalves a Francisco Fanhais, de José Manuel
Anes a Armando Leandro, de Fernando Vandrell a Matilde Rosa Araújo, de Carlos
Pinhão a José Moura Semedo, de Takis Panayotis a Joana Ruas, António Luís
Moita, José Bento, Adel Sidarus, António Ventura, Amorim Afonso, Juan Pedro
Moro, Fernando Grade, etc – trinta e seis convidados ali estiveram, comunicando
com os ouvintes, nos seus ramos de acção.
Dinis Machado foi um deles. O material que
a seguir se dá a lume recolhe dos prolegómenos até ao escopro do programa, que
teve a sua efectivação numa bela noite de Junho que muitos não esqueceram
durante tempos.
*
Carta
de DM a NS (manuscrita)
Lx.boa,
16/4/90
Meu caro Nicolau:
Muito obrigado pela sua carta e o seu
interesse. Também o José do Carmo Francisco me telefonou por causa do seu
trabalho. Em princípio estarei sempre à sua disposição, mas estou com vários
assuntos em mãos, a minha mulher bastante doente (e eu queria levá-la comigo a
Portalegre) e uma ida ao Norte, já com certo compromisso, próximo dessa data.
Pequenos problemas, é certo – mas poderemos fazer o nosso “O olho e a lupa” lá
mais para a frente? Talvez Junho? É uma hipótese, embora eu esteja a leste dos
seus compromissos. Diga qualquer coisa – e encontraremos uma solução.
Um abraço chandleriano do
Dinis Machado
Nota – A mulher de DM era a cantora
lírica Dulce Cabrita, na altura sofrendo de uma constrangedora afecção
psicológica.
*
Resposta
de NS a DM (dactiloscrita)
Portalegre, 23 de Abril de 1990
Caríssimo
Amigo:
Grato
pela sua carta e, naturalmente, pela sua disponibilidade, que espero se
traduza, lá para diante – como sugere, mas já iremos a isso – numa viagem e num
contacto em que terei muito gosto.
Antes
de continuar, espero que sua Mulher esteja melhor. Será com muito gosto que a
receberemos, também a ela (o José do Carmo Francisco disse-me, a talho de
foice, de quem se tratava – e eu recordo, recordei imediatamente, que uma vez
li no “Diário de Lisboa – Juvenil”, onde comecei a publicar os meus poemas, a
notícia de que a rapaziada de lá poderia ir ouvi-la cantar numa sessão dedicada
aos jovens desse “Juvenil” que foi uma coisa tão curiosa).
Ora
bem: passando à data da deslocação (e digo que compreendo os factos que impedem
a sua vinda agora): que tal 26 de Maio ou 9 de Junho? Essas alturas estão
livres; seria possível? E, desde já, um obrigado forte pela maçada!
(Já
agora, um aparte – mas importante para o meu filho Tó: ele, que além de ser
guarda-redes do Estrela – e já nos séniores com 17 anos, desculpe este pai
babado – é um leitor impetuoso (de há uns meses para cá lê com ganas e com
discernimento, o que muito me agrada) quando soube que eu o contactara, que me
havia escrito e que lhe iria escrever, disse-me: “Ó pai, diz ao senhor que gostei muito do “Molero”; diz-lhe pai, está
bem?”. Prometi que sim, àquele adolescente natural e puro. E aqui lho
digo.).
Por
ora é tudo. No próximo sábado, cá estará Carlos Pinhão para “O desporto de
viver”. Anteontem foi o José do Carmo Francisco e o António Ventura com “O
homem na cidade” (que correu bastante bem).
A
propósito, no dia 4, na “Barata”, será o lançamento nacional da “Cidade”,
revista dirigida pelo António (Ventura) e da qual sou colaborador. Se
eventualmente lá puder aparecer, para além do gosto de trocar consigo alguns
minutos de conversa, poderemos concretizar melhor a data e a vinda. Se não lhe
calhar, pois fico aguardando o que entender dizer-me.
Retribuo
o chandleriano abraço. E mando outro, hammetiano, com apreço e estima.
Fica o
NSaião (manuscrito)
*
“MAPA
DE VIAGENS – um programa sem fronteiras onde o ouvinte tem figura de corpo
inteiro
Emissão de 9 de Junho de 1990
(sábado) das 22 às 24 horas
“O Olho
e a Lupa”, com Dinis Machado
Palavras introdutórias a seguir ao
Indicativo musical:
Falar de literatura policial é falar de
segredo e de mistério. E é também, ao mesmo tempo, falar dos dramas insondáveis
da alma humana e dos desvigamentos da sociedade. Com efeito, assente no enigma
que provém do crime escondido e propiciado por condições muito próprias, o
livro policial traça o perfil do homem e do meio social em que este evolui. Mas
há sempre, como na fábula, “o gato
escondido com o rabo de fora”. Nesta conformidade, tinha de aparecer alguém
que servisse de rectificador de destinos e de acontecimentos: e aí está o
detective da ficção, uma das mais típicas personagens da literatura do nosso
tempo.
(música)
O detective, seja ele amador esclarecido ou
profissional encartado, funciona sempre como um verdadeiro Édipo – é aquele que
desvenda o segredo da Esfinge repondo o equilíbrio e a realidade dos factos.
Proporciona, no plano psicológico que a escrita permite, uma verdadeira
catarse. O leitor de novelas policiais, no fundo propõe a si mesmo uma viagem
pelos lugares ensombrados, cuja iluminação simbólica é dada no fim pelo
investigador de ficção. E isto porque existe em toda a gente uma apetência de
mistério e, simultaneamente, uma apetência de verdade nua e crua. Como muito
bem sublinhou o grande cineasta Woody Allen numa das suas obras primas, “Os dias da rádio”, não era por acaso que
por essa altura milhões de ouvidos se colavam ao receptor, quando eram emitidas
as célebres novelas-radiofónicas baseadas em textos de Maxwell Grant, Conan
Doyle e outros. Assim como não o era quando em Paris, nos anos a seguir à
Segunda Guerra Mundial, os jovens artistas da Rive Gauche escreviam nas paredes
“Viva Fantômas!”, aludindo ao célebre
personagem de Pierre Souvestre e Marcel Allain. E quem não gosta das histórias
de Sherlock Holmes, Philip Marlowe ou Poirot – sejam elas dadas nos livros, no
cinema ou na televisão?
(música)
Na verdade, o segredo e o mistério são
componentes universais. E até entre os dogons do Sudão o grande antropologista
Marcel Griaule foi encontrar relatos orais aparentados com aquilo que no
Ocidente tomou o nome de literatura policial. Que, ressalte-se, não é um
relatório policiesco – mas sim ficção enigmática.
(música)
Hoje, para falar deste tema aliciante,
temos entre nós um homem que além de ter escrito diversos textos de que um se
pode destacar pela sua brilhante feitura, generosidade e força – refiro-me ao
justamente célebre “O que diz Molero”, que é igualmente uma vibrante homenagem
à literatura viva – também escreveu textos policiários e que é, além do mais,
um apaixonado por este género literário. É pois com muito gosto que aqui
recebemos, para dialogar com todos nós – e desde já lhe dou as cordiais
boas-vindas – Dinis Machado.
(música)
Seguiu-se um diálogo com o convidado - entremeado por música a carácter,
leitura de poemas adequados e pequenos trechos - havendo um período de 15
minutos em que os ouvintes interagiram com aquele e com o realizador do
programa. Foi lido, na ocasião, o poema seguinte de NS, dedicado a Dinis
Machado e que teria a sua publicação posterior em livro na colectânea “Os
olhares perdidos”:
MARLOWE
Aos
deuses, que o sereno céu sustenta
entre Amarillo Road ou Canyon
Drive
ou
em esquinas de ruas indiscretas
como
luzes num bosque além dos montes
ofereço
as minhas horas de amargura
e
muitas meias-noites em meu rumo.
Acresce
que
fui
sempre muito pouco metafísico
mau
grado a nostalgia que me punge
ao
longo de não poucos boulevards.
Morenas
tive algumas, mas não foram
mais
que pistas abertas p'lo destino
como
louras que rápido olvidamos
-
fios de música correndo pelo tempo
e
uns sopapos ao norte da figura.
Fiz
de conta que os anos eram flores
numa
campa de amigos ou de amores
sonhos
que o vento leva quando calha
como
folhas das árvores de Los Angeles.
Saber
de mais é obra que não chega
p'ra
ti, p'ra mim, p'ra todos os que sofrem
em
vernáculo ou calão.
Dizer
da vida o pouco que nos dá?
Prefiro
um highball bem fornecido
um
disco de hot jazz a meio da tarde
(solarenga
ou chuvosa)
-
até as convenções nos são propícias
se
a carne é fraca, posto que perspicaz.
Nos
meus arquivos guardo alguma 'sperança
mesmo
que o tempo venha e me devore.”.
Nota final
O
“Mapa de Viagens” aconteceu durante a gerência do Dr. Nuno Oliveira, que era na
altura, e o foi em anos seguintes, director do Instituto Politécnico de
Portalegre. Tinha o patrocínio da Empresa “Delta” de Rui Nabeiro, de Campo
Maior.
Durante
vários anos participei em outras realizações: rubricas noticiosas e
informativas, entrevistas e programas de índole cultural, onde era solicitado,
nomeadamente, a dar conta das minhas actividades, que eram razoavelmente menos
intensas que posteriormente ou mesmo agora, no país e no estrangeiro.
Entrada
outra gerência – e decerto por simples coincidência – os contactos pontuais que
me eram solicitados ou propostos cessaram. Não mais me foi dirigida qualquer
suscitação/pergunta ou dada qualquer notícia sobre as minhas actividades, com
excepção de parabéns aquando dos meus aniversários e pequenas nótulas aliás
feitas com apreço, ambos pelo Prof. João Ribeirinho Leal, colaborador da
emissora com um espaço de uma hora, aos sábados de manhã - e a quem nesta
oportunidade agradeço furar dest’arte uma “barreira de silêncio” que, ao autor
portalegrense activo/interventivo que continuo sendo, não deixa de espantar um
pouco… bem como a diversas pessoas que se me têm dirigido.
ns
ns