quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Relembrando Dinis Machado

 


Palavras prévias

  Uma das consequências – e não pequena – que o 25 de Abril permitiu foi o aparecimento das rádios regionais.

   Passados os meses, ora estranhos ora vacilantes do denominado PREC, com todos os seus ressaibos que se certificaram, frequentemente, em exaltações partidárias e angústias cidadãs, os tempos pós-abrilinos entraram em velocidade de cruzeiro, que o mesmo é dizer estabilizando uma democracia e um regime que, passadas décadas, entrou definitivamente, agora, num circuito partidocrático pouco acolhedor dos mais belos sonhos duma Nação de Direito que se tem visto coroada, ad contrarii, por desvigamentos e caquexias as mais diversas.

   As rádios regionais, a princípio de maneira incipiente – muitas vezes de forma ingénua e seguramente apaixonada – surgiram tendo a si estreitamente colada a novidade de um meio que até então parecia estar reservada a elites na órbita da governação, mas também, e a breve trecho isso foi notório, o cariz de servir muito bem a propagandas e a inflexões onde não assentava a melhor ética democrática.

    Mas, a pouco e pouco, a poeira foi assentando, os percursos cimentaram-se e a aceitação popular foi crescendo.

    Em Portalegre, uma das duas rádios pioneiras (Rádio Portalegre) resistiu à erosão dos tempos e segue emitindo regularmente com razoável audiência, posto que o seu impacto qualitativo – e o contrário é que seria de estranhar – tenha perdido em boa parte o fulgor dos iniciais tempos heróicos.

    Naquele tempo – falamos nos anos que vão de 80 a 95 – vários programas ganharam estatuto significativo. Um deles chamou-se “Mapa de viagens” e teve 36 emissões, divididas em duas séries de dezoito com 4 meses de intervalo.

    Multifacetado, seguindo um modelo apelativo e apoiado em confrades que o ladeavam (o delegado para contactos em Lisboa, José do Carmo Francisco, foi uma peça muito importante na sua feitura) ele atingiu números fortes no ranking nacional das rádios regionais (o terceiro mais ouvido no país). Participaram nele nomes significativos da cultura lusa por extenso, nos ramos da literatura, da pintura, da canção, da ciência, do cinema e do teatro, do mundo jurídico e desportivo, etc. De Rui Mário Gonçalves a Francisco Fanhais, de José Manuel Anes a Armando Leandro, de Fernando Vandrell a Matilde Rosa Araújo, de Carlos Pinhão a José Moura Semedo, de Takis Panayotis a Joana Ruas, António Luís Moita, José Bento, Adel Sidarus, António Ventura, Amorim Afonso, Juan Pedro Moro, Fernando Grade, etc – trinta e seis convidados ali estiveram, comunicando com os ouvintes, nos seus ramos de acção.

    Dinis Machado foi um deles. O material que a seguir se dá a lume recolhe dos prolegómenos até ao escopro do programa, que teve a sua efectivação numa bela noite de Junho que muitos não esqueceram durante tempos.

                                                              *

Carta de DM a NS (manuscrita)

Lx.boa, 16/4/90

         Meu caro Nicolau:

         Muito obrigado pela sua carta e o seu interesse. Também o José do Carmo Francisco me telefonou por causa do seu trabalho. Em princípio estarei sempre à sua disposição, mas estou com vários assuntos em mãos, a minha mulher bastante doente (e eu queria levá-la comigo a Portalegre) e uma ida ao Norte, já com certo compromisso, próximo dessa data. Pequenos problemas, é certo – mas poderemos fazer o nosso “O olho e a lupa” lá mais para a frente? Talvez Junho? É uma hipótese, embora eu esteja a leste dos seus compromissos. Diga qualquer coisa – e encontraremos uma solução.

      Um abraço chandleriano do

                                                                          Dinis Machado

Nota – A mulher de DM era a cantora lírica Dulce Cabrita, na altura sofrendo de uma constrangedora afecção psicológica.

                                            *

Resposta de NS a DM (dactiloscrita)

             Portalegre, 23 de Abril de 1990

Caríssimo Amigo:

Grato pela sua carta e, naturalmente, pela sua disponibilidade, que espero se traduza, lá para diante – como sugere, mas já iremos a isso – numa viagem e num contacto em que terei muito gosto.

Antes de continuar, espero que sua Mulher esteja melhor. Será com muito gosto que a receberemos, também a ela (o José do Carmo Francisco disse-me, a talho de foice, de quem se tratava – e eu recordo, recordei imediatamente, que uma vez li no “Diário de Lisboa – Juvenil”, onde comecei a publicar os meus poemas, a notícia de que a rapaziada de lá poderia ir ouvi-la cantar numa sessão dedicada aos jovens desse “Juvenil” que foi uma coisa tão curiosa).

Ora bem: passando à data da deslocação (e digo que compreendo os factos que impedem a sua vinda agora): que tal 26 de Maio ou 9 de Junho? Essas alturas estão livres; seria possível? E, desde já, um obrigado forte pela maçada!

(Já agora, um aparte – mas importante para o meu filho Tó: ele, que além de ser guarda-redes do Estrela – e já nos séniores com 17 anos, desculpe este pai babado – é um leitor impetuoso (de há uns meses para cá lê com ganas e com discernimento, o que muito me agrada) quando soube que eu o contactara, que me havia escrito e que lhe iria escrever, disse-me: “Ó pai, diz ao senhor que gostei muito do “Molero”; diz-lhe pai, está bem?”. Prometi que sim, àquele adolescente natural e puro. E aqui lho digo.).

Por ora é tudo. No próximo sábado, cá estará Carlos Pinhão para “O desporto de viver”. Anteontem foi o José do Carmo Francisco e o António Ventura com “O homem na cidade” (que correu bastante bem).

A propósito, no dia 4, na “Barata”, será o lançamento nacional da “Cidade”, revista dirigida pelo António (Ventura) e da qual sou colaborador. Se eventualmente lá puder aparecer, para além do gosto de trocar consigo alguns minutos de conversa, poderemos concretizar melhor a data e a vinda. Se não lhe calhar, pois fico aguardando o que entender dizer-me.

Retribuo o chandleriano abraço. E mando outro, hammetiano, com apreço e estima.

       Fica o

                                            NSaião (manuscrito)

                                                              *

“MAPA DE VIAGENS – um programa sem fronteiras onde o ouvinte tem figura de corpo inteiro


Emissão de 9 de Junho de 1990 (sábado) das 22 às 24 horas


 O Olho e a Lupa”, com Dinis Machado

Palavras introdutórias a seguir ao Indicativo musical:

    Falar de literatura policial é falar de segredo e de mistério. E é também, ao mesmo tempo, falar dos dramas insondáveis da alma humana e dos desvigamentos da sociedade. Com efeito, assente no enigma que provém do crime escondido e propiciado por condições muito próprias, o livro policial traça o perfil do homem e do meio social em que este evolui. Mas há sempre, como na fábula, “o gato escondido com o rabo de fora”. Nesta conformidade, tinha de aparecer alguém que servisse de rectificador de destinos e de acontecimentos: e aí está o detective da ficção, uma das mais típicas personagens da literatura do nosso tempo.

(música)

    O detective, seja ele amador esclarecido ou profissional encartado, funciona sempre como um verdadeiro Édipo – é aquele que desvenda o segredo da Esfinge repondo o equilíbrio e a realidade dos factos. Proporciona, no plano psicológico que a escrita permite, uma verdadeira catarse. O leitor de novelas policiais, no fundo propõe a si mesmo uma viagem pelos lugares ensombrados, cuja iluminação simbólica é dada no fim pelo investigador de ficção. E isto porque existe em toda a gente uma apetência de mistério e, simultaneamente, uma apetência de verdade nua e crua. Como muito bem sublinhou o grande cineasta Woody Allen numa das suas obras primas, “Os dias da rádio”, não era por acaso que por essa altura milhões de ouvidos se colavam ao receptor, quando eram emitidas as célebres novelas-radiofónicas baseadas em textos de Maxwell Grant, Conan Doyle e outros. Assim como não o era quando em Paris, nos anos a seguir à Segunda Guerra Mundial, os jovens artistas da Rive Gauche escreviam nas paredes “Viva Fantômas!”, aludindo ao célebre personagem de Pierre Souvestre e Marcel Allain. E quem não gosta das histórias de Sherlock Holmes, Philip Marlowe ou Poirot – sejam elas dadas nos livros, no cinema ou na televisão?

(música)

    Na verdade, o segredo e o mistério são componentes universais. E até entre os dogons do Sudão o grande antropologista Marcel Griaule foi encontrar relatos orais aparentados com aquilo que no Ocidente tomou o nome de literatura policial. Que, ressalte-se, não é um relatório policiesco – mas sim ficção enigmática.

(música)

    Hoje, para falar deste tema aliciante, temos entre nós um homem que além de ter escrito diversos textos de que um se pode destacar pela sua brilhante feitura, generosidade e força – refiro-me ao justamente célebre “O que diz Molero”, que é igualmente uma vibrante homenagem à literatura viva – também escreveu textos policiários e que é, além do mais, um apaixonado por este género literário. É pois com muito gosto que aqui recebemos, para dialogar com todos nós – e desde já lhe dou as cordiais boas-vindas – Dinis Machado.

(música)

    Seguiu-se um diálogo com o convidado - entremeado por música a carácter, leitura de poemas adequados e pequenos trechos - havendo um período de 15 minutos em que os ouvintes interagiram com aquele e com o realizador do programa. Foi lido, na ocasião, o poema seguinte de NS, dedicado a Dinis Machado e que teria a sua publicação posterior em livro na colectânea “Os olhares perdidos”:


MARLOWE

Aos deuses, que o sereno céu sustenta

entre Amarillo Road ou Canyon Drive

ou em esquinas de ruas indiscretas

como luzes num bosque além dos montes

ofereço as minhas horas de amargura

e muitas meias-noites em meu rumo.

 

Acresce que

fui sempre muito pouco metafísico

mau grado a nostalgia que me punge

ao longo de não poucos boulevards.

 

Morenas tive algumas, mas não foram

mais que pistas abertas p'lo destino

como louras que rápido olvidamos

- fios de música correndo pelo tempo

e uns sopapos ao norte da figura.

 

Fiz de conta que os anos eram flores

numa campa de amigos ou de amores

sonhos que o vento leva quando calha

como folhas das árvores de Los Angeles.

 

Saber de mais é obra que não chega

p'ra ti, p'ra mim, p'ra todos os que sofrem

em vernáculo ou calão.

 

Dizer da vida o pouco que nos dá?

 

Prefiro um highball bem fornecido

um disco de hot jazz a meio da tarde

(solarenga ou chuvosa)

- até as convenções nos são propícias

se a carne é fraca, posto que perspicaz.

 

Nos meus arquivos guardo alguma 'sperança

mesmo que o tempo venha   e me devore.”.

 

 

Nota final

 

O “Mapa de Viagens” aconteceu durante a gerência do Dr. Nuno Oliveira, que era na altura, e o foi em anos seguintes, director do Instituto Politécnico de Portalegre. Tinha o patrocínio da Empresa “Delta” de Rui Nabeiro, de Campo Maior.

 

Durante vários anos participei em outras realizações: rubricas noticiosas e informativas, entrevistas e programas de índole cultural, onde era solicitado, nomeadamente, a dar conta das minhas actividades, que eram razoavelmente menos intensas que posteriormente ou mesmo agora, no país e no estrangeiro.

 

Entrada outra gerência – e decerto por simples coincidência – os contactos pontuais que me eram solicitados ou propostos cessaram. Não mais me foi dirigida qualquer suscitação/pergunta ou dada qualquer notícia sobre as minhas actividades, com excepção de parabéns aquando dos meus aniversários e pequenas nótulas aliás feitas com apreço, ambos pelo Prof. João Ribeirinho Leal, colaborador da emissora com um espaço de uma hora, aos sábados de manhã - e a quem nesta oportunidade agradeço furar dest’arte uma “barreira de silêncio” que, ao autor portalegrense activo/interventivo que continuo sendo, não deixa de espantar um pouco… bem como a diversas pessoas que se me têm dirigido.

 

                                                                                               ns   


ns

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