(Palestra proferida na sede da
Associação Nacional de Escritores em 05 de março de 2020)
Quem é o
tradutor, aquela pessoa afeita à caneta e, nos dias de hoje, ao laptop, cujo
trabalho consiste em transpor – frase por frase, ideia por ideia – os mais
diversos textos de um idioma para o outro? Brilhante linguista que se empenha
em decifrar os mistérios das épocas remotas e dos países longínquos, levando-os
ao conhecimento do curioso público, ou escritor frustrado que se contenta em
popularizar os livros de outrem por lhe faltarem sorte ou coragem na promoção
dos seus? Artesão das palavras que preza pela qualidade formal de suas versões
longa e pacientemente lapidadas a ponto de subestimar a profundeza espiritual
dos originais vertidos, ou provedor da aproximação cultural entre os povos, que
muitas vezes nada têm em comum, além da literatura traduzida e, dessa maneira,
compartilhada?
Não sou
adepto de nenhuma destas opiniões, sejam corretas ou não... Para mim, o
tradutor é, antes de tudo, um bom professor incumbido de ensinar aos autores
estrangeiros uma língua bem diferente da que deu asas à criatividade deles. Há
professores que, por algum motivo, tomaram conta de uma só turma escolar; assim
foi o poeta russo Nikolai Gnêditch que dedicou a vida inteira à tradução da
grandiosa Ilíada de Homero. Há mestres que criaram toda uma
plêiade de discípulos talentosos; este seria o caso de Tadeusz Boy-Źeleński,
cujo labor incansável brindou os leitores poloneses com a chamada “biblioteca
de Boy” composta de quase 100 tomos traduzidos do francês. O mesmo se refere
aos virtuais alunos: há quem estude aplicado e obediente (tais são as obras de
Gustave Flaubert e de seu amigo Ivan Turguênev, facilmente lidas e
interpretadas em qualquer parte do mundo) e quem se mostre cheio de rebeldia
(os colegas que já tentaram traduzir, digamos, Guimarães Rosa com seus
abundantes neologismos, herméticos até para os conterrâneos dele, não me
permitiriam mentir acerca das dificuldades técnicas desse tipo de tradução). Aliás,
poderia citar as minhas próprias experiências com os autores que traduzo dia
após dia. Fiódor Dostoiévski é um aluno problemático. Seu estilo me tira volta
e meia do sério: parece que o escritor não atenta absolutamente para o lado
estético de seus livros, escrevendo tudo quanto lhe passa pela cabeça sem se
importar com o conforto de quem for lê-los. “Será que não daria para trabalhar
um pouco mais a forma?” – venho travar uma conversa imaginária com ele –,
“desde que o conteúdo é tão exímio assim? Sabe... diminuir o tamanho das
frases, evitar essas frequentes repetições e, sobretudo, essas contradições que
deixam o leitor, por mais que se habitue à sua escrita, de queixo no chão,
abrir mão das palavras que constam nos dicionários, mas nunca se empregam na
vida cotidiana?” – “Não daria, não! Escrevo do jeito que quiser” – responde
Dostoiévski, cáustico como sempre foi. – “Que o leitor use a cuca; senão, que
vá tomar banho!” Leon Tolstói é, pelo contrário, um aluno exemplar. Sua
narração não é áspera nem contraditória, seu pensamento se desdobra lenta, mas
logicamente, de modo que a maioria dos leitores o capta e assimila sem o menor
esforço. Acabo por elogiá-lo: “Está tudo certo, senhor conde! Parabéns pelos
seus textos, bem fáceis e agradáveis de traduzir”. – “Vous êtes trop
gentil envers moi” – responde Tolstói em francês, como falava em vida
com seus próximos. – “Je ne sais si je le mérite... après tout, je ne
cherche qu’à me faire comprendre(1)”. Se fosse possível medir o
desempenho desses corifeus russos com uma banal escala numérica, ganhariam
ambos a nota 10: Dostoiévski pela complexidade linguística, e Tolstói, pela
transparência clássica de seus escritos. E por aí vai, sendo inúmeros os
obstáculos que todo e qualquer tradutor literário tem de superar em seu
trabalho rotineiro, as dúvidas que o cercam, as opções e divergências que o
desesperam.
Em resumo, a
figura do tradutor é tão humilde e, ao mesmo tempo, sublime quanto a do
educador: seu nome vem impresso em letras miúdas, seus honorários nem se comparam
aos de uma estrela literária, porém o mérito e a glória de sua profissão
revelam-se incontestáveis. Igual ao pedagogo entusiasmado com o sucesso dos
antigos pupilos que cresceram e apareceram, eu me sinto todo orgulhoso de ter
ensinado Baudelaire e Púchkin a falar português. E este é o maior estímulo para
cumprir em rigor o meu ofício modesto e nobilíssimo!
Após esta
parte empírica, gostaria de comentar um pouco, de maneira mais concreta, sobre
os princípios tradutórios aos quais me atenho, em geral, e sobre algumas das
minhas traduções literárias, em particular. Muitas das pessoas aqui presentes
sabem que nasci e me formei como personalidade na extinta União Soviética, e
que sou, portanto, um produto legítimo do sistema soviético de ensino médio e superior...
Havia duas escolas de tradução literária naquele país, ambas constituídas na
década de 1920 quando o regime comunista ainda abria um espaço relativamente
largo a toda espécie de experiências científicas e manifestações artísticas.
Uma dessas escolas, a da tradução “técnica ou tecnologicamente precisa”, era
bem rigorosa, digamos, cartesiana em tratar tanto o conteúdo quanto a forma das
obras traduzidas de todos os idiomas imagináveis para o russo; a outra, a da
tradução “criativa”, lidava com os dois componentes, a forma e o conteúdo, com
uma liberdade maior, alegando que não se traduziam as palavras e frases exatas
do autor, mas antes as ideias dele e as imagens criadas pela sua inspiração,
que se preferia “repensar” e depois “recriar” sua obra num idioma diferente a
reproduzi-la de modo fiel e idôneo, maldosamente taxado de “servil”. Mais
tarde, pelo fim dos anos 1930, a escola “criativa” ganhou um amplo
reconhecimento oficial, foi amparada e promovida pelas autoridades culturais,
enquanto sua rival, a escola “tecnicamente precisa”, ficou posta em segundo
plano, se não reprimida por elas. Basta dizer que um dos principais expoentes
da escola vencida, o filósofo Gustav Schpet que sabia 15 idiomas além do
materno, acabou sendo acusado de espionagem e alta traição, sem nenhuma prova
séria desses crimes, preso e fuzilado para ver que a luta política, mesmo numa
área tão distante do comunismo, do capitalismo e de todos os outros “-ismos”
que a gente conhece, era então extremamente acirrada e não raro levava ao
desfecho trágico.
Eu mesmo
descobri essas duas escolas de tradução bem cedo, quando só começava a estudar
Letras e sonhava, daquela maneira ingênua que é inerente a muitos jovens, com
uma possível carreira tradutória. Os métodos da predominante escola “criativa”
me foram ensinados na faculdade; quanto aos da escola “tecnicamente precisa”,
vista como ultrapassada, arcaica, digna de algum museu por ali, tirei-os dos
livros antigos que lia na época. Fiquei encantado, sem exagero algum, com essa
tradução “tecnicamente precisa” (sobretudo, em prosa, já que em poesia a
metodologia “criativa” se impõe e prevalece naturalmente, seja no Brasil, na
Rússia ou em qualquer outro ambiente linguístico) e logo passei a utilizar seus
preceitos nas primeiras traduções estudantis que fazia, inclusive para exibir
minha pretensa erudição e desafiar meus professores. Não falo agora daqueles
problemas que arrumei no período de aprendizagem, mas foram bem numerosos...
Muitos anos depois, quando me mudei para o Brasil e me dediquei
profissionalmente à tradução literária, continuei traduzindo dessa maneira já
testada e assim, pouco a pouco, entrei em contato com as obras de Dostoiévski e
de Tolstói. Gostaria de frisar outra vez que se trata apenas de obras
prosaicas, romances e contos, porquanto a tradução “tecnicamente precisa”,
viável e, a meu ver, desejável em prosa, pode resultar numa catástrofe
literária em poesia!
Pois então,
como seria a tradução “tecnicamente precisa” de cujos princípios lancei mão
para enfrentar, por exemplo, Crime e castigo de Dostoiévski
ou Anna Karênina de Tolstói? São muito simples: a fidelidade e
a autenticidade. Cheguei a pormenorizá-los, aliás, num pequeno artigo
intitulado “Catequese tradutória” e disponível, em formato eletrônico, na
Internet. Cada vez que me vejo encarregado de um novo trabalho, faço questão de
recapitular, aqui com meus botões, alguns desses princípios: “Trate o autor
traduzido com todo o respeito: mesmo se discordar cabalmente dele, não
modifique nem adapte, de modo algum, o que ele escreveu, permitindo que os
leitores o julguem como lhes aprouver... Não interprete: atribuir suas próprias
convicções políticas e preferências estéticas ao autor traduzido, seja ele quem
for e, máxime, se não viver mais neste mundo, é um pecado dos grandes... Não
complique nem descomplique o que estiver traduzindo: siga os passos do autor,
um por um, abstendo-se de inventar os floreios verbais que não constarem do seu
texto e de clarear as passagens obscuras que dele constarem... Seja exato: caso
o autor traduzido ficar gaguejando, imite zelosamente os gaguejos dele; caso se
engasgue, tussa de igual maneira; caso diga algum disparate, repita-o fazendo
de conta que o acata em gênero, número e grau...”. Tomemos apenas um exemplo
simples para ilustrar a diferença entre as duas traduções antagônicas, a
“tecnicamente precisa” e a “criativa”, e demonstrar quão complicado pode ser,
vez por outra, este meu trabalho. Vejamos apenas uma frase transcrita de um
livro famoso: “Provavelmente, a paciente convalescerá de novo, só que depois,
novamente, adoecerá de novo e, finalmente, morrerá”. Quem é o autor dessa frase
comprida, pleonástica e meio difícil de ler? Dostoiévski em pessoa, cujas obras
contêm uma profusão de frases do mesmo feitio. De acordo com sua biografia, era
um homem muito infeliz que se viu, durante a vida toda, perseguido pelos
credores e agiotas, pressionado pelos editores inescrupulosos, tendo de
entregar manuscritos “para ontem” e de resgatar os pertences de sua família,
inclusive as roupas de baixo, que penhorava volta e meia a fim de suprir as
necessidades básicas dela. Percebe-se a olho nu que seus romances mais
aclamados foram compostos às pressas, literalmente “ao correr da pena”, com
pouca (ou, às vezes, nenhuma) lapidação estilística, que Dostoiévski não
gostava de termos breves, como “depressa” ou “rápido”, trocando-os amiúde por
“apressadamente” e até mesmo “apressadinhamente”, e não se limitava a chamar um
dos seus personagens de “calvo”, mas insistia em adjetivá-lo de “calvo e
careca”. Por que fazia isso? Porque era pago por lauda, e bastante mal pago
(chegava a ganhar 4 vezes menos do que seu colega Turguênev), precisando
maximizar a extensão física dos textos que redigia no intuito de aumentar seus
honorários. Desse modo, se eu fosse um tradutor “criativo”, sentiria, o tempo
todo, uma forte tentação de interpretar, ou melhor, de reescrever os livros de
Dostoiévski naquele bonito e correto português de Machado de Assis que nós
todos apreciamos tanto. Neste caso específico, produziria uma frase mais leve,
mais fluida: “É provável que a paciente venha a convalescer, porém, mais tarde,
adoecerá de novo e acabará morrendo” ou algo do mesmo gênero. O sentido literal
do original russo seria preservado na íntegra, sim... Contudo, não seria mais Dostoiévski:
a aspereza inimitável de seu estilo truncado, caótico, enervado e enervante
haveria de desaparecer na versão portuguesa, e os leitores lusófonos dessa
versão “criativa” ficariam ludibriados. Mas, afinal de contas, quem sou eu para
substituir a escrita de Dostoiévski pela minha própria escrita e, ainda por
cima, abusar da confiança de seus leitores?
Uma porção
de dificuldades técnicas surge também quando se trata de traduzir as obras de
Tolstói. Lá o problema decorre daquela constante influência da língua francesa,
usada pelo escritor russo com plena desenvoltura em sua vida cotidiana, que
transparece nos romances Guerra e paz e Anna Karênina,
além de vários textos menores. Ao analisar o original de Anna Karênina,
compreendi que traduzir esse livro significaria estabelecer algum tipo de
equilíbrio razoável entre os três idiomas patentes ou subentendidos nele: o
russo convencional do século XIX, o francês culto, falado pela elite do Império
Russo, e o português castiço, por um lado mais ou menos próximo do contexto
histórico em que o romance de Tolstói foi concebido, mas, por outro lado, nem
tão próximo assim, para não espantar o futuro leitor brasileiro. Se não levasse
tais fatores em consideração, como traduziria, digamos, esta frase: “Calada,
enternecida, Kitty olhava para Várenka com seus grandes olhos abertos”, já que
ninguém olha, nem sequer poderia olhar, de olhos fechados? Estranha para
qualquer leitor russófono ou lusófono, ela pode ser explicada com a hipótese
(um tanto temerária, mas plausível) de que, antes de escrevê-la em russo, o
autor tenha pensado: “Silencieuse, attendrie, Kitty regardait Varenka,
les yeux grands ouverts...”, o que não apenas seria normal em francês, mas
obviamente traria consigo uma imagem bela e persuasiva. O conhecimento
acadêmico da língua francesa, com que tenho lidado, embora em menor grau, aqui
no Brasil, é muito importante para decifrar as charadas desse tipo!
Resumindo
enfim o que acabei de dizer, posso declarar que meu trabalho não presume
nenhuma prática iconoclasta nem tende a colocar a visão brasileira da
literatura clássica russa, consolidada há muito tempo, de cabeça para baixo. É
tão somente uma tentativa de aproximá-la do público brasileiro de nossos dias,
sem adaptar, entretanto, os respectivos textos às noções estéticas dele. Quando
alguém se põe a estudar uma língua qualquer depois de adulto, pode conseguir
uma fluência impressionante em usar essa língua, mas quase seguramente vai
usá-la, pelo resto da vida, “com aquele acento chato e falso” que, segundo Eça
de Queirós, “denuncia logo o estrangeiro”. É claro que meus Tolstói e
Dostoiévski falam português com certo sotaque russo, mas faço de tudo para que
esse jeito de falar não interfira nem um pouco na adequada compreensão de suas
obras. Minha tarefa consiste, pois, em encontrar a aurea mediocritas à
qual se refere o poeta romano Horácio, em fazer, conforme um velho provérbio
russo, com que “os lobos sejam saciados, e as ovelhas, poupadas”, em harmonizar
dois mundos tão dessemelhantes no sentido cultural quanto o são, no sentido
físico, um coqueiro e uma bétula. E se, pelo menos, alguns leitores das minhas
traduções conseguirem transitar, com naturalidade, entre esses dois mundos e
entender que, apesar das suas inúmeras diferenças, são ambos igualmente humanos,
a minha tarefa profissional será cumprida!
(1) É muita gentileza sua. Não sei se
mereço isso... no fim das contas, só procuro fazer que me entendam.
Oleg Almeida
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