Unamuno, em carta célebre a Manuel
Laranjeira, chamou a Portugal “um país de
suicidas”. Por seu turno, Robert Demonceaux opinava que, em todo o caso,
aos lusitanos de qualidade pouco acomodatícia e não bajuladora estavam sempre
abertas três vias: a vida resignada e medíocre, a emigração ou eventualmente a
corda numa trave…Talvez de algum desvão, parafraseando Régio.
Claro que dentre estes nem todos acabam por
fora: há também os que, não se entendendo com a louvaminha, arrastam durante
anos por dentro o seu destino, como por exemplo Raul Leal. Este homem, um dos
espíritos mais interessantes que por cá sorveu o ar, saía um dia da Casa da
Misericórdia (teria lá ido comer umas sopas?) quando foi interpelado por Abel
Manta. “Como vai, Dr. Leal?”,
perguntou-lhe inquieto e relanceando os seus andrajos. “Olhe, vou como vê…um farrapo. Sou um autêntico farrapo”, respondeu
o autor de “Sodoma Divinizada” que Fernando Pessoa tanto estimava. Devido ao
seu todo diferente, à sua maneira de
ser eminentemente não enquadrada, Raul Leal sofreu como muitos outros artistas
a estultícia e a falta de abertura de um meio ainda pior que o de agora, onde aliás
o cinismo também medra.
Existem também os que, como alguns
surrealistas gostavam de dizer, “julgam
certeiramente o sistema e o tratam de maneira adequadamente astuciosa”.
Outros há, contudo, que se resignam e, então, tornam-se cumprimentadores
vulgares ou se vendem sem rebuços. E temos nessa conformidade os poetas de Estado, os apepinadores de
partidão e os rimadores de coisas da moda,
peralvilhos à la page que têm para
seis anos de imortalidade, os oportunistas por decisão que, sendo arteiros,
singram nas suas pequenas barcarolas – por vezes mesmo amargamente se ou quando
lhes resta um niquinho de carácter.
Tempos
atrás tive o gosto de falar com um amigo de longe, um operador de coisas belas
que tem sido sempre um marinheiro de alto curso: o Manuel Caldeira, que mesmo
vivendo lá fora procura estar muito a par de coisas cá de dentro. E, no vaivém
da conversa, como se falara num amigo de apelido comum a outro, pediu-me
esclarecimentos sobre um autor teatral: Miguel Rovisco.
Lá lhe prestei a informação que tinha, de
que dispunha. E quem é, quem era, quem foi Miguel Rovisco?
Um modesto funcionário da Câmara Municipal
de Lisboa mas também, de acordo com os conhecedores ou investigadores do
fenómeno teatral português, um dos maiores dramaturgos lusos do século
transacto (que se prolonga, nos seus meandros criativos, até aos dias de hoje).
Prémio Nacional de Teatro de 1986, autor de centenas de poemas e de vinte peças
dramáticas, viveu muito à margem do sistema, com os consequentes custos. Uma
sua trilogia, composta pelas peças “O Bicho”, “A infância de Leonor Távora” e
“O tempo feminino”, que recebera aquele galardão, não fôra – como teria sido
previsto – representada no Teatro Nacional na altura estipulada.
Disse também ao meu confrade que os jornais
haviam noticiado num certo dia que Miguel Rovisco havia posto termo à vida – em
Belém, sob o rodado dum comboio, no mesmo sítio que já servira a Cristóvam
Pavia – por desespero, ferido com as condições miseráveis que canonicamente
continuam a enlear o meio cultural
lusitano. O mesmo meio que já sufocou e estorvou tantos criadores e continua a
prejudicar arteiramente tantos interessados numa existência de qualidade, menos
abjecta e mais profunda e onde não sejam possíveis, como hoje são
desvergonhadamente, “génios por via
administrativa”, partidária e ideológica ou de compadrio civil.
Sim, há gente que “não aguenta a pedalada” como sói dizer-se e parte entre choro e
ranger de dentes. Enquanto, geralmente, os meios oficiais – as quintas dos que todo lo mandam, enovelados nas suas
contradições e narcisismos - tratam a criatividade e os seus protagonistas como
potenciais ornamentos, como ilustradores de actividades para prestigiar a gerência, a intendência, essas montanhas que parem ratos e são aparelhagens
para a desmiolação do poviléu, que lá bem no fundo desprezam simulando – com papas e bolos…como diz o ditado –
que lhe querem com afecto e carinho mui alevantado…
PSCRIPTUM - De há uns tempos a esta parte tem-se assistido – com algum
divertido pasmo, quando não é com o sobrolho franzido por óbvias razões… - ao
suceder de homenagens e celebrações a Mário Cesariny. O que seria de muito
louvar não se misturassem a esses eventos,
como ornamentos ou mesmo semi-protagonistas, elementos do sector estatal,
governamental e pelo estilo. Gente que representa aqui e agora o que de mais oposto há em relação à vivência surrealista, à vida sem simulacros
e sem próteses oportunistas. O tipo de cavalheiros/as que mais tem impedido que
neste país a prática – sublinho, prática
– surrealista possa incrementar-se, para que como se pretendeu sempre,
nesse sector vital, a verdadeira vida
se configure ela mesma.
Antolha-se-nos, se tivermos um
mínimo de sagacidade ou de bom-senso, (que é a mesma coisa, neste caso) que
o que se pretende é – mais uma vez, como já assinalámos em escrito anterior – capturar a figura de Cesariny para mais
eficazmente se solapar o que é e o que
pretende realmente o surrealismo, de que ele foi um cultivador vital até morrer. O que está muito para além das
jornadas artísticas com que alguns
estrategas buscam encandear a sua verdadeira essência.
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