TRÊS POEMAS DE “V E S T Í G I O S”
O título é a meu ver uma autêntica descrição da poesia a que serve de
continente.
O que na minha opinião a define é uma ironia magoada, entre a vigília e
o sonho; a certeza ou a suspeita, pelo menos, de que o quotidiano é feito de
rastos, de vestígios, de representações muito reais de fragmentos que não
podemos dominar mas que importa tentar se nos ofereçam coerentes e organizando
dess’arte um mundo habitável e inteligível. Sente-se nesta poesia, se bem a
entendo, uma indisfarçável amargura pelo tempo perdido ou que não é dado
alcançar-se mas, ao mesmo tempo, um fio de alegria - diria mesmo de esperança –
cifrada na possibilidade de através das palavras se atingir uma reconciliação
entre o ser humano e o universo que lhe caiu em sorte.
É em consequência, nessa medida, uma poesia profundamente religiosa -
não de religião revelada e sim de religação.
No aspecto formal, diria discursivo, revela-se uma assunção de imagens
através das frases que a configuram que, mais do que fotografias ou
apontamentos visuais, são como que pequenos flashes ou iluminuras retiradas,
corajosa e persistentemente, da vida breve a que o autor esteve ligado e que
salvou dum desaparecimento inevitável, inscrito no seio da espécie ou, mesmo,
perceptível na memória dos deuses simbólicos. - ns
NOTÍCIA
Ao declinar da
tarde chego à cabana velha
de muitas gerações. O silencio deixa-me respirar.
As paredes ainda são as mesmas. Grandes manchas
de humidade, a luz de astros distantes, a presença
de pássaros desconhecidos. Os meus pensamentos que
iniciam a ronda das sombras. Era um dia era uma hora
propícia de repousos, de vozes como antigamente.
Coisas construídas e eu estou aqui
ladrar de cães entre as árvores. Eu vejo
mais do que a luz, as linhas leves dos montes.
Desce neles o perfil divino da terra molhada.
As estações na ombreira da porta Raramente lembramos
os lugares como um livro que se abre Horizonte já
inacessível.
O primo pequeno o calção sujo de terra Fotografias
pacientemente dispostas sobre a mesa de madeira
Sem detença me abandono Veredas perfumadas flores voando
pulsa lento o sangue junto ao esqueleto
Neste chão vos imagino calados como outrora
vida sem desenlace o fogo que se desenrola
amei em vós o fulgor do coaxar das rãs
o alfabeto sensível do que a escuridão me dizia.
Devagar. Deus dá-se por satisfeito espreguiça-se
no sereno entardecer. Devagar digo de mim para mim
Longa criatura arfando na terra nas horas que passam.
Abro a porta, aguardo a quietude abro a saída
uma chuva mais frágil entre duas águas que se reúnem.
A ROTA
Um mapa Encontro um mapa sobre
a secretária
um mapa escolar dum colega de
meu filho
A secretária A velha mesa de
meu tio Vicente
Meu tio Vicente escrevendo
nela cartas receitas de mercador
Lia o jornal inclinado para trás arrotava
descobria mistérios o mistério da aragem nova
as moscas zumbidoras Vagas
résteas de sol a pino
Acrescentava frases num
murmúrio inaudível
Tio Vicente escrevinhava era um santíssimo chato
Um beijo tio Vicente
Um mapa Olho cidades ao longe
Vejo rios
que se desdobram ao amanhecer
Vejo florestas luzes
renques de ruas
Regresso a esta sala E em voz
baixa
olho a ombreira da porta Tiro
o pigarro Prossigo.
UMA SOBRE O AVÔ
Aos que falam em alemão e repõem conceitos
aos que num bar silencioso recordam outras eras
aos que, num dia de sol, sentem o frio das horas
e tremem tremem mesmo quando o calor aperta
Aos que balbuciam e aos que adormecem quando chove
aos que anunciam a morte a vários graus de distância
Aos que medrosos esperam e sabem para onde partem
e brilham noutro lugar e velam subitamente o silêncio
Ele ficava por vezes muito quieto
arfando confiando nas coisas interrogativo
comendo dormindo recreando-se habilidosamente
Com os dedos pacientes executava tarefas
exíguas e belas, estranhamente impetuosas
Ele olhava para longe e florescia como o calcário
Quando a música começava tinha por vezes sede
Aos que nunca souberam aos que nunca gravitaram
em suas atmosferas e seus ritos
Ficava com a brancura duma voz que o chamava
O Avô devagarinho ia para outros horizontes.
(tradução de ns)
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