segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Gérard Calandre, Antologia

 



    TRÊS POEMAS DE  “V E S T Í G I O S”

 

   O título é a meu ver uma autêntica descrição da poesia a que serve de continente.

   O que na minha opinião a define é uma ironia magoada, entre a vigília e o sonho; a certeza ou a suspeita, pelo menos, de que o quotidiano é feito de rastos, de vestígios, de representações muito reais de fragmentos que não podemos dominar mas que importa tentar se nos ofereçam coerentes e organizando dess’arte um mundo habitável e inteligível. Sente-se nesta poesia, se bem a entendo, uma indisfarçável amargura pelo tempo perdido ou que não é dado alcançar-se mas, ao mesmo tempo, um fio de alegria - diria mesmo de esperança – cifrada na possibilidade de através das palavras se atingir uma reconciliação entre o ser humano e o universo que lhe caiu em sorte.

   É em consequência, nessa medida, uma poesia profundamente religiosa - não de religião revelada e sim de religação.

   No aspecto formal, diria discursivo, revela-se uma assunção de imagens através das frases que a configuram que, mais do que fotografias ou apontamentos visuais, são como que pequenos flashes ou iluminuras retiradas, corajosa e persistentemente, da vida breve a que o autor esteve ligado e que salvou dum desaparecimento inevitável, inscrito no seio da espécie ou, mesmo, perceptível na memória dos deuses simbólicos. - ns

 

NOTÍCIA

Ao declinar da tarde chego à cabana velha

de muitas gerações. O silencio deixa-me respirar.
As paredes ainda são as mesmas. Grandes manchas
de humidade, a luz de astros distantes, a presença
de pássaros desconhecidos. Os meus pensamentos que
iniciam a ronda das sombras. Era um dia era uma hora
propícia de repousos, de vozes como antigamente.
Coisas construídas e eu estou aqui
ladrar de cães entre as árvores. Eu vejo
mais do que a luz, as linhas leves dos montes.
Desce neles o perfil divino da terra molhada.
As estações na ombreira da porta Raramente lembramos
os lugares como um livro que se abre Horizonte já
inacessível.
O primo pequeno o calção sujo de terra Fotografias
pacientemente dispostas sobre a mesa de madeira
Sem detença me abandono Veredas perfumadas flores voando
pulsa lento o sangue junto ao esqueleto

Neste chão vos imagino calados como outrora
vida sem desenlace o fogo que se desenrola
amei em vós o fulgor do coaxar das rãs
o alfabeto sensível do que a escuridão me dizia.

Devagar. Deus dá-se por satisfeito espreguiça-se
no sereno entardecer. Devagar digo de mim para mim
Longa criatura arfando na terra nas horas que passam.

Abro a porta, aguardo a quietude abro a saída
uma chuva mais frágil entre duas águas que se reúnem.

 

A ROTA

 

Um mapa Encontro um mapa sobre a secretária

um mapa escolar dum colega de meu filho

A secretária A velha mesa de meu tio Vicente

Meu tio Vicente escrevendo nela cartas receitas de mercador

Lia o jornal    inclinado para trás arrotava

descobria mistérios   o mistério da aragem nova

as moscas zumbidoras Vagas résteas de sol a pino

Acrescentava frases num murmúrio inaudível

 

Tio Vicente escrevinhava   era um santíssimo chato

Um beijo tio Vicente

 

Um mapa Olho cidades ao longe Vejo rios

que se desdobram ao amanhecer

Vejo florestas   luzes   renques de ruas

Regresso a esta sala E em voz baixa

olho a ombreira da porta Tiro o pigarro Prossigo.

 

 

UMA SOBRE O AVÔ

 

Aos que falam em alemão e repõem conceitos

aos que num bar silencioso recordam outras eras

aos que, num dia de sol, sentem o frio das horas

e tremem tremem mesmo quando o calor aperta

Aos que balbuciam e aos que adormecem quando chove

aos que anunciam a morte a vários graus de distância

Aos que medrosos esperam e sabem para onde partem

e brilham noutro lugar e velam subitamente o silêncio

 

Ele ficava por vezes muito quieto

arfando   confiando nas coisas   interrogativo

comendo   dormindo   recreando-se habilidosamente

Com os dedos pacientes executava tarefas

exíguas e belas, estranhamente impetuosas

Ele olhava para longe e florescia como o calcário

Quando a música começava tinha por vezes sede

 

Aos que nunca souberam aos que nunca gravitaram

em suas atmosferas e seus ritos

 

Ficava com a brancura duma voz que o chamava

O Avô devagarinho ia para outros horizontes.


                                                                           (tradução de ns)

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