quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Brasil & Portugal - respostas de ns a Floriano Martins

 

ns



 1. Diante da escassez das relações culturais entre Brasil e Portugal, o que tem falhado sistematicamente na efetivação de um diálogo entre as nossas culturas?

 

  Creio que o problema depende dos que controlam e orientam os ritmos – e que velam ou desvelam, conforme os seus interesses específicos, o denominado facto cultural ou, por outras palavras se assim se quiser, o relacionamento cultural.

  Ou seja: os Estados – não sejamos tolos ou, no mínimo, ingénuos – vêem o facto cultural, a Cultura, como um assunto precisamente de Estado. E dessa óptica, ou opção, ou posicionamento, decorre muito dum todo: a fabricação de ensejos e de protagonistas que servem fundamentalmente para essa mesma entidade (o Estado) tirar dividendos que, a seu ver, são muito legítimos e naturais. Como, em geral, ele vê nessa área apenas a oportunidade de ir existindo conforme à sua própria estrutura - tanto lhe faz, digamos lucidamente, que os protagonistas sejam de alto gabarito como não, o que é preciso é que façam parte da classe que põe e dispõe “culturalmente” e que sejam operosos e mexidos - à medida que o tempo corre, o pelotão e os sucessos vão-se desvanecendo e transformando naquilo que de facto corresponde ao seu real rosto enquanto “verbo de encher” o panorama: sombras voláteis que já animaram a festa, que já desempenharam o seu papel...e podem pois desaparecer no horizonte...

  Enquanto o Estado não fizer o que deve, isto é: dar o dinheiro e ir-se embora, pois que a sua presença só estraga as ocasiões nobres e dignas – tudo continuará mal.

   Por outro lado, pode dizer-se que é suficiente deixar-se o facto e o relacionamento cultural entregue a particulares? Não me parece, por esta razão: geralmente imersos num ambiente duvidoso, os ditos “operadores culturais” são em grande parte não mais que utilizadores sem grandeza, muitas vezes pequenos jogadores intelectuais (mesmo que medalhados em corridas de fundo ou estafetas pelos consabidos intelectuais orgânicos) sôfregos apenas de prebendas, notoriedades ou ocasiões dum protagonismo…cavalar – o qual seria muito legítimo se decorrente da verticalidade e da dignificação cultural, por outras palavras: da sageza, da alta qualidade e não dos companheirismos pessoais ou políticos.

   Creio que o ambiente é um pouco como se a civilização dos dois lados do mar concebesse que está prestes a desaparecer e agisse desta forma: para quê estarmos a chatear-nos com isso da cultura real e aprofundada se, afinal, isto está de resto? Vamos mas é gozar o ar do dia e quem vier atrás que feche a porta...

  Só assim se entende que sejam tão desajeitados, tão inábeis (ou serão apenas cínicos?) no estabelecimento dum são relacionamento inter-margens!

 

2. De que modo esta fenda que separa dois países que habitam a mesma língua se repercute, direta ou indiretamente, na área da poesia?

 

    Acho que cria mundos virtuais, digamos, nessa área específica: repetem-se insaciavelmente os mesmos nomes, como locutores doudos que não soubessem esquadrinhar a realidade. Por ignorância, oportunismo, preguiça, falta de senso...?

  E isso não tem desculpa...nem perdão. Lembremos a frase famosa e justíssima de Lautréamont: “Nem toda a água do mar será suficiente para lavar a mais pequena nódoa de sangue intelectual!”. Em relação a esses verdadeiros malandrins intelectuais, votemos-lhes, pelo menos, um trejeito de profundo desagrado!

 

3.  Na sua perspectiva, o que poderia ser feito para mudar esse panorama?

 

   Deveria entregar-se a frequentação e a incursão no relacionamento intelectual, em primeiro lugar, a pessoas sérias e de alto talento – e não a meros cortesãos bem colocados nos níveis da árvore do poder ou do prestígio estruturado mediante o oportunismo ou o bem-jogar. Editarem-se, nesta área própria, autores pela sua qualidade e não pelas suas ligações interiores ou exteriores às personalidades ou aos areópagos que fazem a chuva e o bom tempo intelectual e cultural, quantas vezes com fraquíssima capacidade meteorológica... Ter-se da cultura uma opinião desenvolta e arejada e não ver-se nela um ensejo para fazer fins de meses...

  Isto sou eu a sonhar...não acredito sinceramente que os que dispõem do poder estejam pelos ajustes.

   Daí que nos reste apenas a possibilidade que inda que minúscula é a mais nobre, de irmos singrando como parentes pobres, desvalidos sim mas que são afinal donos do maior tesouro – que é o que parte do caracter íntegro e cabal de que só os velhacos podem blasonar.

 

                                                                                       Atalaião, 12 de Julho


Paula Fernandes, Leonardo - Índia

 



segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Para um minuto de meditação - 43

 

“Portugal é um dos países que poderão ter maior destruição económica"

                                                                            (Dos jornais)

“A esquerda andou 5 anos a encher a boca com as reversões e a trocar o nome da austeridade (maior carga fiscal de sempre) e estavam à espera de quê?!!!! A fatura iria chegar um dia, veio mais cedo pela mão do vírus. A esquerda nunca preparou o país, apenas destrói a riqueza gerada, quer seja com corrupção, compadrio ou idiotices de subsídio-dependência”.

                                                                            Sandro Nunes


Dois poemas de Luís Serrano

 


ilustração de Fernando Aguiar




As Montanhas


As montanhas crescem
partem às vezes
na água do peito

só o frio
as trespassa
lentamente

se a neve
e o silêncio
as envolvem
de uma casta
e súbita
serenidade

Às vezes regressam
carregadas
de estrelas
às vezes partem
às vezes ficam

e é a memória
que vai tecendo
um registo
de contornos
mais lúcidos
e vivos

como arestas
ou asas perdidas
de luminosas
aves



As Casas Morrem


As casas morrem
lentamente
sobre a água

ou escondem-se
sob a luz mítica
da madrugada

vejo-as desaparecer
transformarem-se
na sua memória

serem a dor adormecida
de outras casas

de outras águas


Nicolau Saião, A propósito de teatro

 


ns



Introdução

 

   Dizia Claude Roy num dos seus ensaios, depois de ter excursionado pela obra de Boileau e Jean Rostand, que “um romance não é uma fatia de vida servida crua, mas sempre a arte que possui um determinado homem de talhar a vida para a tornar mais viva e mais inteligível”.

  Dizê-lo do romance, obviamente, é o mesmo que dizê-lo do teatro ou de qualquer outra disciplina artística. Toda a arte é uma indicação cénica, humana ou desumana, que não imita a vida nem tampouco lhe é paralela. Simbolicamente, poderia até falar-se numa inflexão à guisa do princípio de incerteza de Heisenberg que consiste na possibilidade oficiante do sujeito agir como catalizador e intercessor numa determinada experiência científica. Ou seja: no plano das ciências, químicas ou físicas, o sujeito influencia sempre o objecto, passando a ser parte integrante dum dado fenómeno. Na arte é precisamente a mesma coisa. Por isso é que as teorias que abordavam, de forma imperativa e até intempestiva, a questão da objectividade e da subjectividade colheram tão maus resultados. Era uma abordagem inadequada – e o que é mais grave é que muitos dos seus próceres sabiam que o era. Na verdade, eles faziam uma escrita orientada, praticavam raciocínios orientados, visando ajudar os outros a chegarem a conclusões que interessavam a uma determinada filosofia pré-ditada.

   Por estranho que pareça, nos dias de hoje (em que já se descobriu a marosca toda) ainda há quem tenha por vezes o descaramento de vir falar em arte que todos percebam com um impudor que, no fundo, nos toma por mentecaptos ou iletrados. Básicos, como se dizia na tropa…

   O que vou dizer creio que se sabe mas provavelmente fará sentido, ainda, sublinhá-lo nestes tempos dramáticos: a criação artística, enquanto matéria em crescimento, convoca as presenças totais não só do passado pessoal e do presente social do seu autor como igualmente daqueles a quem ela é dirigida. E quem diz passado e presente diz também futuro, uma vez que o específico de qualquer verdadeira obra de arte é a sua permanência no Tempo. Assim, é fácil concluir que o artista se dirige fundamentalmente aos seus próprios ritmos, o que não significa que eles não tenham repercussão nos ritmos dos outros. Pensar-se que o artista escreve para o público (artistas, não sucedâneos mediáticos) é desconhecer os mecanismos da criação, no caso limite buscar intrujar os outros. O que pode suceder é que ao fazer uma determinada obra o artista acalente o sonho de que o que executa tenha profunda repercussão na comunidade, dando-lhe em troca eventualmente fama, proveitos… Mas isso são como que lucubrações laterais que nada têm a ver com o fulcro da questão. E, em geral, a História esclarece-nos que o triunfo popular (para além de ser frequentemente uma carta viciada) é algo que não obedece a leis seguras. Veja-se Balzac, nos tempos de novel operador, a escrever livralhada deliberadamente popular e que hoje já ninguém lê nem recorda. Só depois, tocado pelo aguilhão da febre interior da escrita, se esteve salutarmente nas tintas para o que o público iria pensar – o que deu diversas obras-primas para todas as estações e vários públicos e até lhe permitiu liquidar algumas contas… As máscaras, como os homens da comedia del’arte muito bem sabiam, ora choram ora riem, atravessando os espelhos da existência - e nunca se sabe exactamente quando afixam uma ou outra condição.

   São, em suma, tão mutáveis como o Destino.

 

O Teatro e o seu corpo duplo

 

    Parece que faz ainda sentido, também, acreditar-se que o teatro desempenha um papel qualquer. Pelo menos poderia pensar-se em tal ao verificar-se, pela leitura dos periódicos, que há companhias – maiores ou menores, de bolso, de laboratório, o diabo a quatro – que dão ao público material para muitos gostos. É verdade que também se fala, acredito que com seriedade, na crise que o teatro atravessa, ou seja: nas dificuldades que essas companhias vão tendo para, sem subsídios, tratarem da sua vida pessoal e artisticamente falando. O panorama está pois algo encarquilhado…

   Isto no plano do teatro representado. No que diz parte ao teatro enquanto escrita, porque em geral as peças são publicadas antes de alguma companhia lhes pegar, o panorama é diferente, embora isso não signifique que seja mais favorável. Antes pelo contrário, diria.

   Praticamente não há colecções estáveis de teatro (criações e não reproduções) cá no país. Os próprios escritores, a não ser que sintam um irreprimível impulso, em geral canalizam a sua criatividade noutras direcções. Ou escrevem uma peça assim como incursão do seu estro por continentes afastados. E isto porque, digamo-lo sem máscaras nem paninhos quentes, o chamado grande público não gosta (não tem pachorra) de livros de teatro, como aliás já o constatavam os exemplares “Cadernos de Teatro” dirigidos por Orlando Vitorino. Se for representado, ainda vá… Mas lido?! Falemos de outras coisas…

   Como tudo tem uma explicação, procuremos a que se adequa a este facto.

   Tal deve-se a meu ver, em primeiro lugar, à deflação cultural que existe e que é evidente. Tempos atrás, na coluna que mantinha no “Le monde diplomatique”, Jean-François Revel constatava que o analfabetismo funcional mais do que ser estável está a crescer – sendo aliás alto – nas sociedades tradicionalmente alfabetizadas. Além disso, o papel da cultura nas sociedades modernas já não é o que era no século dezanove, digamos. Por essa época, que era um período fáustico, as melhores consciências acreditavam na cultura enquanto instrumento de penetração no conhecimento. Viam nela uma possibilidade para o Homem se adestrar no relacionamento com os outros, até que verificaram esta coisa muito simples: a cultura é sempre um motor de divisão, de diferença, diria mesmo de provocação principalmente dos poderes constituídos. A cultura, ao humanizar, cria exigências, faz crescer as interrogações. O indivíduo culto torna-se frequentemente incómodo, questiona a sociedade e, em última análise, questiona-se mesmo a si próprio, tentando perceber qual a sua posição ante a Vida. Por isso é que, passado um certo tempo de inocência, os dirigentes da sociedade resolveram por bem apoderar-se das suas rédeas, nomeadamente controlando as diversas variáveis do facto cultural. Mas como este é inevitável e, ainda por cima - tal como o espírito -  sopra nos lugares onde menos se espera, buscou-se torná-lo matéria moldável ao bel-prazer dos académicos, dos eruditos ou, então, através duma operação arguta de camuflagem, coisa de tempos livres (como divertimento ainda que algo elevado) para as massas ou de luxo para os casos de aparente maior exigência.

   O teatro, sendo na altura extremamente apelativo (tendo mesmo um vector de distinção social ou mundana), era controlado de forma perspicaz: teatros de Estado, algumas vezes; doutras, teatro de boulevard onde se iam ver reproduzidos comportamentos considerados exemplares, por um lado, ou as curiosidades cómicas, dramáticas e trágicas que davam o sal e a pimenta ao ramerrão da vida burguesa.

   Ainda hoje isso sucede. Veja-se o êxito, surpreendente para alguns mais distraídos, que tiveram peças que tranquilamente passam por nós no Rossio e que consolam as almas mais ou menos aflitas por um dia-a-dia anquilosante. O facto não tem nada de estranho: há no nosso tempo, como sempre houve, um desejo de divertimento e de evasão perfeitamente compreensível uma vez que, como Jean-Marie Domenach assinalou com pertinência, vivemos hoje de novo o retorno do trágico duma forma impetuosa. Salvo as excepções que sempre existem, as populações sentem a necessidade imperiosa de mudar o sentido que o imaginário social tomou: os talk-shaws e as telenovelas são uma das fórmulas que se arranjaram para fixar as sensações mais profundas e que pululam sob o consciente. E ambas são, em última análise, não mais que um ersatz do teatro, tanto mais que, de acordo com informações que sempre transpiram, tem havido talk-shaws em que actores profissionais, discretamente camuflados, fazem o papel de pessoas do quotidiano com os seus problemas específicos para a função.

  Aliás, geralmente os propiciadores de telenovelas nem tentam fazer passar por arte aquilo que sabem muito bem não o ser. Digamos, com a suficiente carga irónica, que até são corporativamente honestos: nunca se viu nem talvez se verá virem defender o seu produto como facto artístico em si. O máximo que dizem é que se trata dum divertimento bem feito de que as pessoas gostam e que exigem lhes seja servido num bom invólucro. Eis a explicação para as reservas bizantinas que se faziam ao comparar-se telenovelas brasileiras e portuguesas: as primeiras, no dizer de críticos ou emissores de opinião específica, seriam superiores às segundas, na medida em que teriam melhores interpretações e argumentos mais consistentes. Trocado por miúdos e falando com lucidez: porque eram/são uma treta feita de maneira muito mais habilidosa.

   Não vamos acentuar a fotografia, uma vez que nos parece estar já tudo dito. O teatro, seja nas salas onde ainda se faz ou nos mass-media áudio-visuais, é de facto outra coisa muito diferente.

   Em primeiro lugar, no teatro enquanto obra de arte existe uma parte de segredo no sentido que lhe dava a Sabedoria Tradicional, que consiste em possuir uma estrutura que não é linear. Possui uma segunda leitura, caldeada na poesia que lhe é própria e que se sublinha na possibilidade de ter diversas encenações consoante a opção de quem o coloca em palco e o interpreta. Posso até dar como exemplo limite – e não estou a pôr em epígrafe a maior ou menor qualidade do resultado, a transformação numa comédia dramática com fortes laivos de irrisão do drama de António Patrício “O Fim” efectuada pelo grupo de teatro existente em Portalegre.

   Este é um dos aspectos. Outro, é a carga interior que os diálogos, as cenas, os actos, devido a uma articulação específica, têm. Por exemplo: parecendo na altura que estava a dizer coisas sem sentido, ao dar à existência a sua “A anunciação feita a Maria”, que na época apareceu a alguns sectores como blasfema (não fora Claudel um católico reconhecido e teria decerto pago o seu desaforo!), fez o dramaturgo francês a crítica mais justa a uma existência esclerosada e às dificuldades que nela pode ter um ser sedento de autenticidade e pureza.

   Além disso o teatro verdadeiro, não o de trazer-por-casa, implica como tudo o que tem qualidade um esforço de reconhecimento. Num mundo que tenta expandir a banalidade, a frivolidade e a dependência de espírito, naturalmente que o teatro tem de ser pouco popular. É que não pode, de facto, conciliar-se qualidade com preguiça mental ainda que se corram certos riscos. O verdadeiro artista, aliás, tem de assumir a parte maldita que o mundo actual lhe reserva e que, em mundos antigos, também lhe cabia: com efeito, sabe-se que muitos autores antigos, hoje dados como clássicos, se viram em palpos-de-aranha por obra e graça dos poderes de então. São, digamos, os ossos do ofício…

 Finalmente e embora eu vá repetir algo que já está esclarecido, creio, diga-se que a popularidade de certos mistérios religiosos postos em cena na Idade Média lhes advinha não do entendimento que o espectador tinha deles mas, sim, de falarem em algo que encontrava forte repercussão nos sentimentos e concepções de então. Noutro plano, para exemplificar, o apreço que as obras de Miguel Ângelo colhiam não lhes advinha da sua qualidade própria enquanto pintura mas sim da figuração que ia ao encontro da religiosidade geral. Aliás, muitos outros pintores menores e até alguns pinta-monos gozavam de similar apreço. E, como detalhe irónico mas verdadeiro, veja-se que só recentemente alguns dos seus frescos foram apresentados como ele de facto os concebera, pois tinham sido decorosamente vestidos pelo pudor eclesial.

   As relações entre o artista e a sociedade têm passado sempre – pelo menos até à segunda metade do século vinte – por um curioso jogo-de-escondidas bordejando a atracção e a repugnância de aquele para esta e vice-versa. Com a chegada dos universos mediáticos a paisagem clarificou-se: o artista é hoje uma excelente caça para exibir em locais mais ou menos tributáveis. Contudo, seja em momentos da sua vida seja porque a lógica do seu discurso específico se impõe, o espécime venatório em apreço às vezes refila e abre frentes de conflito onde menos se espera. Já  lá dizia Mestre Ubu que num estado bem organizado os artistas deveriam ser obrigados a marchar, de manhãzinha, pelo menos quarenta quilómetros antes do pequeno almoço…

   O teatro, esse cadinho de imagens multiplicadas e algo contraditórias, fala – até nos seus silêncios muito próprios. Como a vida, evidentemente.

 

O Teatro e o seu corpo múltiplo

 

      Defendem alguns pensadores argutos, contrariados ou corrigidos por outros tão argutos como eles, que hoje por hoje o nosso mundo se transformou num vasto palco onde se representam sem cessar muitas e variadas peças – mas descontinuamente como é apanágio do quotidiano; e aos fragmentos, como parece que deverá ser típico duma sociedade repartida por grupos, interesses e sectores degladiando-se sem cessar. Houve até um tal Herman Hesse que, certa vez, em carta a um confrade, sustentou mesmo a teoria de que o que temos socialmente é uma contínua encenação, na medida em que os sentimentos, as relações e os contactos societários estão sujeitos a preconceitos incoerentes ,a juízos morais perfeitamente burlescos e a normas desvairadas, desajustadas e mais ou menos falidas.

    Permitam-me que não opine. Aliás de pouco me serviria, porque nunca se sabe em definitivo se não estamos (filosoficamente) a ser personagens nessa peça que eventualmente anda a fazer a sua tournée pelo globo. Como dizia Thomas Mann, “de facto, muito bem se sabe que o artista não é em si mesmo um ente moral mas um ente estético, que o que o inspira e move não é a virtude mas o jogo, inclinado espontaneamente a jogar, ainda que mais não seja do que dialecticamente, com os problemas e as antinomias da moral…”. Mas também isso acontece duma certa forma velada, diria teatral: no fundo, excepto para tornar os dias um pouco mais coloridos nos seus intervalos de lazer, um artista não serve para nada como os rouxinóis ou os gatos. Se tiver um pouco de juízo, procurará transformar as suas quimeras (“os seus sonhos particulares”, como dizia Vigny em algo aproveitável para a comunidade. Ou seja – e veja-se que estou a tomar a óptica do Poder – em algo que morigere as almas e as ponha escaroladas e prontas para as tarefas do dia a dia…

   (Em todos os tempos e principalmente na época moderna, onde a questão artística assumiu foros de “personagem” e os seus protagonistas vulto de profissionais com direitos cívicos reconhecíveis, alguns operadores económicos deram-se conta de que era possível aproveitar certas virtualidades espectaculares desses cidadãos, nomeadamente se os conseguissem travestir de “enfants terribles” e de “jolies dames”, a um tempo brilhantes e inócuos para não lhes empatarem e até beneficiarem alguns fins-de-meses. O negócio é compensador, tanto mais que são eles que controlam o mercado e as reputações).

   O hábito da simulação – melhor, a sua necessidade -  difundiu-se na vida pública e privada, forjando aquilo a que poderei chamar a teatralização dos imaginários, o que provoca uma ausência de gosto pela profundidade das coisas e pela realidade do quotidiano. O apodrecimento das sociedades, para empregar a expressão cunhada por Georges Pérec, é um facto indesmentível; em certa medida vivemos mergulhados numa esquizofrenia social evidente, tendo os próprios ritos religiosos mergulhado numa teatralidade profunda para suscitar com mais ímpeto o interesse dos fiéis que cada vez mais se alheiam da religação, aderindo antes ao espectáculo mediático proposto. Em certos países, nomeadamente no Brasil, onde o palco é partilhado por diversas confissões e seitas de forma muito intensa e até gratificante, existe mesmo uma emulação de gurus e figuras de proa onde a encenação da mística é profundamente marcada.

   Contra isto, o que pode o teatro – o teatro de qualidade, complexo e exigente? Necessariamente não pode muito: enquanto brinquedo é pouco sugestivo, enquanto reflexão é solitário e “pobre”. Enquanto espectáculo lá se vai aguentando, manquejando, como aqueles heróis velhos das batalhas, de bigode farfalhudo. E no entanto…

   E no entanto continua a fazer sentido. Eu diria – mais do que nunca. Porque o teatro verdadeiro, o que sem partis-pris aguenta nobremente a sua própria incomodidade e a sua própria desgraça, é um jogo legítimo com a alegria e a inquietação de existir. Misturando e combinando os ritmos da vida e da morte, entrega-se à festa do espírito com toda a naturalidade de uma cadencia lúcida que antecipa ou acompanha os grandes raciocínios da existência livre e estruturada em moldes criativos, plásmicos e salubres. Feito para dez, vinte ou duzentos espectadores, permite-nos colocar o problema nos seguintes termos: “Entrego-me ao jogo que me ajudará a libertar a minha cadencia vital e social sem alienar o meu ser profundo, aquilo que sou enquanto membro da espécie humana. Sei que tudo faz sentido porque não perco de vista que o contentamento, a diversão e o repouso não me retiram a capacidade crítica e a inquietação criadora. E, assim, sou verdadeiramente participante em algo que é inevitável mas que já não me assusta: a progressiva marcha para a velhice e a morte, com o seu brusco ou leve correr de pano”.

  Ou seja: a meu ver, o teatro tal como o entendo é um exorcismo contra o absurdo e a infelicidade da vida breve, contra a senilidade social e a barbárie que nos querem impor através de mecanismos de disfarce disseminados habilidosamente em descargas pretensamente cómicas ou dramáticas. Tal pressupõe uma chamada de atenção, se assim o quiserem, para a ética e não para a moral.

   Num mundo que já não sabe bem onde está a realidade (veja-se a relevância que tomaram nos últimos tempos – até que os extinguiram porque estavam a mostrar demasiado o jogo… - uns simulacros intitulados “Apanhados”, onde situações absurdas ou estranhas eram encenadas sem que as vítimas se dessem conta e que tomavam por realidade), o teatro é uma parte da receita contra a incapacidade de multiplicação da visão clara que se pode ter das coisas. Repõe no seu verdadeiro contexto os dados da questão primordial: se somos alguma coisa, o que somos necessita de máscara? Se viemos de algum lugar, esse lugar onde está? Se vamos para algum lado, porquê fazer a caminhada duma forma que nos angustia mas não nos permite utilizar as pistas que temos?

   Estas são perguntas legítimas. E são muito. São, com efeito, quase tudo.

 

Conclusão

 

   A peça de teatro a que se aludiu a dado passo da conferência a que este texto deu corpo (“Passagem de nível”) e que foi publicada depois de vicissitudes diversas originadas por gentes alheias à sua saída a lume, escrevi-a numa altura em que me achava penosamente entregue a ostracismos provocados pela minha incapacidade de aderir a ritmos que visam acorrentar o ser humano a manjedouras de grupo ou de sector. Foi uma espécie de resposta vital à indignidade com que tentam macular-nos frequentemente, mesmo numa sociedade pretensamente democrática. Escrita em dezoito dias, quase de jacto e praticamente sem modificações, afixa a minha crença em alguns valores tais como: o amor electivo entre seres que se encontram a despeito das misérias das épocas, a liberdade de utilizar o tempo que nos é dado viver sem estarmos dependentes de preconceitos, a busca do conhecimento que pode ser a antecâmara duma eventual sabedoria.

   Tal como Thomas Mann eu acredito que “o espírito não é monolítico, é uma força encerrada na vontade de fazer a sua própria imagem do mundo, a vida, a sociedade”. E, sendo assim, permanece como uma janela aberta sobre os diversos palcos da existência onde as personagens se movem como num início de acto.

  

                                                                                                    ns


Andrew Lloyd Webber, O Fantasma da Ópera (Sara Brightman, António Banderas)

 



quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Para um minuto de meditação - 42

 


“O cinema é um modo divino de contar a vida.” - Federico Fellini


“É nos cinemas que se realiza o único mistério totalmente moderno.” – André Breton


Quatro poemas de José Pascoal

 




EVOCAÇÃO DE SHELLEY

 

Debaixo deste alpendre,
Recebo o vento do norte,
Albergo a sombra fugitiva
Duma senhora de romance.

Queimo cigarros e poemas,
Queimo cabelos de problemas
Que não sei resolver
Sem a tua presença.

Nesta silente quietude,
Thoughts come and go in solitude.

 

 

CENÁRIO VIRTUAL

 

A túnica branca
Mal cobre os joelhos
Da bela mulher
Fatal do olvido.

Comemos o pão
Negro das paisagens
Pintadas por náufragos
Dos descobrimentos.

Bebemos o vinho
Das vinhas antigas
E o leite magro
Das Virgens do Leite.

Estamos no céu
Profano da terra.

 

SÍMBOLO CANSADO

 

As rosas servem de símbolo
Vezes demais.

É preciso libertá-las do lírico
Míldio.

Deixá-las ser o que são: rosas.
Nada mais.

 

OS AMIGOS PLATÓNICOS

Os amigos não servem para as ocasiões.
Os amigos não servem.
Os amigos mandam.

Mandam flores.
Mandam recados.
Mandam com mão leve.
Educados.

Grande coisa, a amizade
E a liberdade
De (não) ter amigos
De verdade.


Gaspar Garção, Cinema&Quotidiano

 




As "fitas" da minha vida: uma crónica


      As histórias de vida são sempre subjetivas e, claro, pessoais, mas talvez seja por isso que são tão interessantes, de escrever e de ler. A minha história de vida não vai ser nostálgica, saudosa ou séria, não pretende surpreender, cativar, emocionar ou entreter. Apenas pretende, com honestidade e perícia, dar um vislumbre do eu que gostava, pensava e sentia quando era mais novo. E claro, não aborrecer o leitor…


    E por onde começar? Com o passado distante, com o passado recente ou o presente imediato? O presente é para se viver, e o meu futuro estará de certeza cheio de “histórias de vida” e amigos a quem as contar, por isso vou falar do que mais me dá prazer, a minha infância, a família, os amigos e o lazer (e principalmente a 7ª Arte, o cinema). Falarmos de nós, é, como diz o ditado, “desnudar a alma” mas, no meu caso, falar dos meus prazeres e dos meus gostos é assunto para um romance do tamanho dos clássicos da literatura em vários volumes…

   A sala de cinema, o seu poder mitológico e mágico, o imaginário da tela e dos espectadores, foram sempre para mim fonte de fascínio, de deslumbramento.

   Recordo-me das primeiras vezes que assisti a filmes, com tenra idade, sentado de pernas cruzadas no chão, ou à beira da cadeira de madeira no Centro Popular do meu bairro (Atalaião), ou nas festas de Natal da Câmara Municipal, de que os meus pais eram funcionários, a assistir deliciado às sessões de cinema organizadas pelo cineclube local, com filmes clássicos “bigger than life” a serem projetados num pequeno ecrã de tela pendurado no ginásio do Atalaião ou no edifício da Câmara (“Doze Indomáveis Patifes”, “Os Reis do Sol”, “O Gavião dos Mares”, “Os Sete Magníficos”, Tarzan, Zorro, Charlot, etc). Filmes hoje talvez pouco recordados, mas para mim intemporais, projetados em festas para crianças, num tempo em que o politicamente correto ainda não existia e podíamos ver “fitas” de guerra, de terror, de suspense, sem que os nossos pais nos encaminhassem para casa e para os deveres da escola (claro que o facto do meu pai escolher os filmes e os projetar foi um fator decisivo da minha presença “rebelde” nessas tardes inesquecíveis…).

    Lembro-me também, apesar de os anos terem passado como um vento veloz, das tardes e das noites que passei no Cine-Parque, um local ao ar livre, ermo e vasto, nas traseiras do atual edifício da Câmara, cujas características propícias para o cinema eram apenas o seu grande espaço e o enorme muro branco onde eram projetados os filmes. Foram muitos os verões dos anos 80 que lá passei, a ver fitas como o primeiro filme do Indiana Jones, “Os Salteadores da Arca Perdida”, uma experiência equivalente a uma montanha russa, o intenso e fantasioso “E.T. – o Extraterrestre”, e clássicos como os filmes do mexicano Cantinflas, o alter-ego de Mário Moreno, com os seus bigodes característicos, “A Volta ao Mundo em 80 Dias”, etc. O meu pai conta-me que também ele passou a infância e a adolescência neste “drive-in” à portalegrense. A década de 50 e 60, para ele, e a década de finais de 70, início dos anos 80, para mim, poderão ser hoje facilmente recordadas em DVD ou na RTP Memória, mas faltam os rebuçados e os amendoins comprados à entrada, o barulho das cadeiras de plástico a serem abertas, o sussurro de antecipação antes do início dos filmes, o burburinho coletivo nos momentos decisivos, as palmadas nas costas e os sorrisos rasgados no final, se o filme fosse do agrado do público…

    Falta falar, claro, do Cine–Teatro Crisfal, um edifício antigo e majestoso (hoje uma discoteca), de que recordo as filas enormes na bilheteira, os cartazes rectangulares na montra com imagens dos filmes, que nos abriam o apetite meses antes; os rebuçados, as pastilhas, as batatas fritas e os salgados vendidos no bar do 1º andar, as frisas, os camarotes e o Galinheiro (o 2º balcão, onde invariavelmente o comportamento era mais “livre”, e de onde se atiravam projéteis para a Plateia, tal e qual como num filme de Fellini); as fotografias e os posters, no átrio e 1º andar, das estrelas e dos filmes clássicos, tudo isto contribuía para tornar o ambiente do Crisfal e as idas semanais ao cinema em algo poderoso, uma ocasião de descoberta e de prazer coletivo, uma experiência catártica e esfusiante.

    Estas idas ao cinema, mais no Outono e no Inverno (o Verão e a Primavera eram para o Cine-Parque), transformavam-se em autênticas excursões do meu prédio e prédios vizinhos; com o meu pai, cinéfilo inveterado, como líder do grupo, e os meus dois irmãos mais velhos (o mais novo ainda era um bebé, embora já mostrasse também propensão por “fitas”) e vários amigos (o Artur, o Paulo, o Luís, o Quim…) como o resto da “equipa” (graças a estas “escapadelas” à rotina, todos eles ainda mantêm o “bichinho” do cinema, um deles inclusive estando a fazer o doutoramento em Cinema e lecionando esta disciplina numa escola superior de Portalegre).

    O curto caminho do Atalaião até ao Crisfal, cinco minutos a pé, servia para nos abrir o apetite em relação ao filme, com o meu pai a “lançar-nos o isco”, discutindo expectativas e as críticas dos jornais nacionais (os trailers nesta época eram coisa rara, e por vezes a espera pelo filme publicitado era de muitos meses), das revistas estrangeiras que o meu pai comprava (a Première em francês sempre foi para mim algo de misterioso e exótico, talvez por apenas ver as imagens, sem compreender a língua), o que nos deixava no estado de espírito ideal para o filme, de mente e coração abertos ao inesperado.

    São inúmeros os episódios divertidos e marcantes que me aconteceram neste “mundo” que era o Crisfal, quando era mais novo (dos tempos de declínio e decadência da sala, do frio e da falta de qualidade dos filmes, não vou falar), e é esses momentos que quero recordar, porque para mim eles constituem a “história da minha vida”, num dos períodos mais importantes e mais felizes de qualquer pessoa, a Infância.

    Uma das minhas mais marcantes excursões de bairro foi para ver o épico “Ben-Hur” (em tempo de poucas estreias, o Crisfal tinha o hábito de passar ciclicamente os clássicos, como “Música no Coração”, “Pipi das Meias-Altas”, “West Side Story”, etc), numa noite tempestuosa e de chuva torrencial, que fazia com que a água nos chegasse às canelas enquanto descíamos a rua para o cinema, e que levou a que chegássemos completamente encharcados ao Crisfal. Este episódio com a chuva transformou anos depois a aventura de Judah Ben-Hur e Jesus Cristo, passada em Jerusalém, no bíblico “Os Dez Mandamentos”, talvez para relacionar a nossa “chuvada” com o episódio do Dilúvio e da Arca de Noé; e mesmo com as evidências à minha frente, sempre neguei que não nos tivesse também acontecido o nosso “pequeno” dilúvio nesse dia, no caminho para o cinema…

     Lembro-me de assistir mais de uma dezena de vezes ao já referido “Indiana Jones e os Salteadores da Arca Perdida” (ainda hoje o meu recorde em salas de cinema), que naqueles tempos mais inocentes se desvanecia da memória poucos dias depois de o ver, o que me levava a um estado de impaciência febril e desvairada até voltar a ver o chicote de Harrison Ford em ação...

    Lembro-me de assistir ao muito esperado e oscarizado “África Minha”, uma história de amores ilícitos no continente africano, num Crisfal a abarrotar e onde se podia ouvir um alfinete a cair, tamanha era a concentração com que se seguia o filme. Nas cenas finais, quando a personagem de Meryl Streep descobre que o seu apaixonado, Robert Redford, morreu, ouviu-se de repente um choro convulsivo e assustador, de alguém que estava a sentir o filme de uma forma ainda mais intensa que nós. Perante as risadas gerais de quem não percebia que o cinema também consegue “mexer” dessa forma com as pessoas, voltei-me para trás e qual não é o meu espanto quando vejo que quem chorava era a minha vizinha do andar de cima, que já nessa altura era uma Testemunha de Jeová, uma religião que não é conhecida pelos seus membros exteriorizarem as suas emoções…

     Lembro-me da estreia de outro filme oscarizado, o magnifico “Amadeus”, e de terem sido projetados os primeiros 30 minutos do filme sem som, devido a um problema técnico, mas de ninguém se ter levantado do cinema e ter reclamado o seu dinheiro de volta, tão cativante era o argumento, embora a música tenha um papel fundamental nesta biografia do grande Mozart (lembro-me de ter saído do cinema e pensado que o filme era uma obra-prima, apesar de só muitos anos depois ter visto a sua versão “não censurada”) …

    Lembro-me com especial ternura de uma noite em que fui sozinho com o meu irmão mais velho (6 anos de diferença), para assistir a um filme que há meses me “impedia” de dormir à noite, “Cocoon – A Aventura dos Corais Perdidos”, de termos ficado num camarote, e de a luz ter falhado logo no início do filme, o que era habitual nessa época em Portalegre ao mínimo sinal de trovoada. Obriguei o meu irmão a ficar cerca de uma hora no cinema, com medo de que a luz voltasse e começassem o filme sem mim, e só quando fomos obrigados a sair das instalações é que cedi, e aceitei ir para casa, mas apenas com a promessa solene do meu irmão de que no dia a seguir lá estaríamos de novo; e para grande deleite meu assisti ao filme com um enorme entusiasmo. Sempre que revejo esta fábula fantástica sobre um lar de 3ª idade, os seus habitantes, extraterrestres de visita à Terra e a súbita e espantosa regeneração e regresso à juventude dos “velhotes” do lar, lembro-me sempre de o meu irmão a tentar convencer-me a irmos para casa nessa noite, e do “vendaval” que fiz para poder ficar na sala à espera do regresso das luzes…

    A melhor história, como é da praxe, guardei-a para o fim, mas terei de confessar que ela já adquiriu proporções tão míticas na minha memória, que já não sei distinguir o que aconteceu na realidade e o que “fabriquei” na minha imaginação como um enredo cinematográfico.

   O ano foi 1982, e o filme a que ia assistir, com o meu pai e os meus irmãos mais velhos, chamava-se “Blade Runner - Perigo Eminente”. Hoje em dia é o “Filme da Minha Vida”, marcante, futurista e inovador, que revisito habitualmente, mas naquela época era apenas mais um filme de Ficção Científica a que queria desesperadamente assistir. O meu pai, que havia lido o livro em que o filme se baseava, e as críticas (não muito positivas, na altura), talvez sem pesar as consequências, criou-me uma enorme expectativa, falando-me dos atores, do argumento, dos cenários, sendo o meu frenesim ainda maior que o habitual. À entrada, e depois de termos comprado os bilhetes, o nosso caminho foi barrado pelo segurança/porteiro/controlador dos bilhetes, que na minha memória ainda hoje se assemelha a um Arnold Schwarzenegger portalegrense, com um típico bigode à anos 80 e a camisola de gola alta da moda. O problema era que o filme era para maiores de 12, e eu tinha apenas 8 anos de idade e o meu outro irmão 9. O meu irmão mais velho, numa demonstração de “ratice” que não lhe era habitual, e que nessa noite não lhe perdoei, escapuliu-se para dentro da sala, dando a entender através da sua cara cheia de pena para comigo, que preferia assistir ao ansiado filme que ficar connosco e expressar solidariedade filial. Depois de uma discussão acerca da minha “pretensa” e precoce maturidade, que recordo como infrutífera, com o aproximar do início do filme e as pessoas atrás de nós à espera para entrar, o meu pai recorreu a um último estratagema, chamando o “facínora” à parte e tendo uma pequena conversa com ele, após o que me foram franqueadas as portas do Crisfal, e lá entrei, depois deste “milagre” caseiro, para assistir ao filme.

   Para um filme que lida com o poder da memória, com a noção do que é ser-se humano, com memórias pré-fabricadas mas que para os andróides do filme parecem reais, não deixa de ser curioso o facto de eu não me recordar de ter visto o filme naquela noite, sendo as minhas muito intensas recordações do filme fruto das muitas vezes que o revi, em casa e no cinema…

   Ficou o mistério do que o meu pai terá dito ao porteiro para eu ter podido assistir ao filme (e se de facto o cheguei a ver), mas devido ao passado de ambos em comum no período pós- 25 de Abril, e as atribulações passadas em conjunto no Verão Quente de 75, só posso imaginar que provavelmente pensou que quem enfrentou cenas de pancadaria e perigos reais bem merecia levar os filhos a um espetáculo inócuo, desde que as crianças em questão não fossem afetadas psicologicamente pelo filme (do qual não devo ter percebido patavina…).

   Hoje em dia, é com motivo de orgulho e com alguma ironia que constato que a minha vida deu uma volta completa, e que me encontro eu agora na posição de decidir que filmes passam comercialmente no cinema em Portalegre, além de vender os bilhetes e colocar as pessoas na sala, impedindo, se necessário, de assistir ao filme quem não tenha a idade legal (talvez pela experiência traumática que descrevi, foram raros os casos em que isso aconteceu). Só não projeto os filmes como o meu pai, porque depressa descobri, quando comecei a aprender essa tarefa, que estava para além da minha capacidade, que não tinha o estofo para ser um “Alfredo”, a famosa personagem projecionista do “Cinema Paraíso”.

    É um prazer estar de novo numa sala às escuras, a assistir à empolgante reação dos espectadores, jovens e não tão jovens, ouvir os seus comentários à saída do filme e as suas sugestões para projeções futuras, ver o “brilho nos olhos” dos mais novos ao deliciarem-se com o mesmo tipo de aventuras que eu, com a idade deles, via.

   Mesmo numa época de cinema digital, 3-D, TV Cabo, clubes de vídeo Meo, canais temáticos e de pirataria online, é reconfortante saber que ainda há quem tenha prazer no ritual que constitui a ida à sala de cinema, o apagar das luzes, o som da máquina de projeção, o trailer, o símbolo do estúdio, o início do filme e o início de uma viagem única…

    E não posso deixar de me sentir identificado, na ingenuidade e na “fome”, com que recentemente um cliente habitual de 10 anos me perguntou entusiasmadamente, à saída da projeção da 1ª parte do último filme da saga Harry Potter, “Os Talismãs da Morte”, se podia voltar no dia seguinte para ver a 2ª parte, que mal podia esperar para saber o que iria acontecer…

     (Gaspar Garção - Portalegre, 1974. Licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Escola Superior de Educação de Portalegre e mestre de Jornalismo, Comunicação e Cultura na mesma entidade. Dedicando-se à análise da ficção científica nos seus diversos ramos, é autor de "Relance sobre o humano na literatura de antecipação". Escreveu ainda "Charlie Chaplin e o mito de Charlot". Orientou ciclos cinematográficos sobre F.C. e sobre aspectos dos primeiros anos do cinema mudo. Trabalhou no Centro de Artes e Espectáculos locais e trabalha agora no Gabinete de Comunicação da Câmara Municipal de Portalegre).


Vangelis, Blade Runner - Love Theme

 



segunda-feira, 9 de novembro de 2020

ÚLTIMA HORA - Morreu CRUZEIRO SEIXAS

 



 Hoje, assim que me levantei, recebi um telefonema de Jorge Gaillard Nogueira.

 Tive, assim, dada por este nosso confrade, a notícia infausta de que falecera Cruzeiro Seixas (Artur Manuel do Cruzeiro Seixas). Estava à beira de cumprir 100 anos e, por esse motivo, a revista A IDEIA (dirigida por António Cândido Franco, já programada e preparada para Dezembro) ser-lhe-á inteiramente dedicada. Agora, infelizmente, já como celebração póstuma.

  Em evocação deste confrade e amigo de muitos anos, aqui dou a lume o texto que a seu tempo me fora solicitado pelo seu director e sairá pois ali.

  Evohé, caríssimo mano Artur!

                                                                *

     SOBRE CRUZEIRO SEIXAS

   Em 2018 Cruzeiro Seixas enviou-me duas cartas.

   Uma delas agradecendo com fraternal pormenor o envio que lhe fizera de livros meus.  A outra, que carreava a oferta de um seu catálogo-livro, era mais extensa e nela se alongava em reflexões de índole pessoal norteadas por uma comovente humildade de verdadeiro fabro, de hacedor  sem jaça, sem prosápia (como a que enroupa certos cavalheiros de mão romba que se creem irmãos de predestinados pelas deusas da paleta) – ele que é indiscutivelmente entre nós um dos melhores desenhadores deste tempo, senhor de uma imaginação transbordante e fecunda que lhe permitiu navegar, como diria Péret, “sem norte e sem estrela através das tempestades, rumo aos areais rumorejantes de ágatas onde brilha o olhar provocante das opalas”.

  Elas trouxeram-me de pronto à recordação uma certa tarde, cerca de 50 anos antes, em que o conheci, nos conhecemos, numa galeria de pintura, no decorrer da inauguração de uma mostra de um autor que já não lembro quem teria sido. O que não esqueci, ao ser-me apresentado por um colega de veraneio, foi a sua figura de fino recorte: um senhor esbelto de indumentária em cinzento claro, camisa azul marinho, cabelo grisalho acentuando uma delicadeza bem espalhada nuns olhos perscrutadores e abertos numa espécie de sonhadora atenção.

  Conversámos seu bocado e, sem me lembrar de muitos pormenores, apenas guardei que faláramos de surrealismo, de pintura e de como e porque razão me encontrava eu ali.

  E estivemos algumas décadas sem contactarmos de novo. Embora eu fosse tendo, como ele decerto em relação a mim, notícias do seu trajecto, da sua demanda, ele que com Mário Cesariny e António Maria Lisboa – Pedro Oom era de uma outra dimensão, ainda que paralela – constituíam a trilogia que, no surrealismo em português, sentia que estava mais perto da minha própria caminhada.

  Notícias essas dadas ora por um filho meu, ora por um comum amigo, ora pelos periódicos que até mim chegavam.

  Ora bem: tempos atrás escrevi eu que o Surrealismo tem, nos últimos anos, estado a ser objecto de uma nova e forte atenção de ensaístas, de críticos e investigadores da escrita e da arte em geral. Isso é claramente perceptível e, diga-se mesmo, perfeitamente entendível, uma vez que ele nunca se propôs – fosse nos seus reais praticantes fosse nas suas obras vivas – ser um elemento passageiro ou um modo particular dependente de características momentâneas de moda ou de enfoque.

   Cruzeiro Seixas e Isabel Meyrelles, dois dos primeiros cultores do surrealismo entre nós e felizmente ainda vivos, são duas figuras fundamentais dele e nele presentes.

   Eu colocaria em Cruzeiro Seixas, assim e aqui, a sua limpidez como num espelho policromo e encantado: dum lado a magnificente pintura, do outro a poesia suscitadora, ática e muito rica a um tempo, deste poeta, autor que pela escrita forma e dá imagem em réplica, a seu modo, ao universo de criação originalíssima que é o do pintor que sempre soube excursionar de maneira muito pessoal pelo mito, altamente legítimo e inteiramente salubre.

   No que lhe diz parte, a sua viagem pessoal dentro do surrealismo tem sempre sido uma heterodoxa maneira de encarar o mundo e os seus prestígios ou apoquentações dum ponto de vista filho da curiosidade, da indagação visando as possíveis descobertas, da ligação aos segredos da existência a que podemos ter algum acesso se mantivermos a mente aberta e atenta ao que se vai passando e que vem a seguir ao que se passou em anos de que a nossa vida esteve repleta - não só os factos da história social, quotidiana, mas tudo o que se pôde imaginar de fecundo ou mesmo possível: a magia que parte da escrita ou a ela conduz, a pintura no mundo próprio ou alheio - e tudo o resto que nestas duas se consubstanciam.

                                                              *                                   

Duas cartas de Cruzeiro Seixas

1.

  Amigo Nicolau Saião

 

  Não são nada satisfatórias as notícias daqui.

  O que vai sendo noticiado não é de forma alguma o que verdadeiramente tem a ver comigo e com o Surrealismo.

  Vivemos em sociedade e nela, quer queiramos quer não, uma enormíssima parte de nós está integrada. Gritamos liberdade, liberdade, liberdade do fundo de uma prisão. Além disso tenho 97 anos e a minha vista não me permite que leia uma linha. Os seus livros deram-me enorme satisfação mas tenho que esperar por alguém disposto a ler-me algumas páginas.

  Mesmo nestas circunstâncias é sempre um prazer encontrar um velho amigo como o é o Nicolau Saião. Destes últimos acontecimentos envio-lhe um catálogo onde pode ler alguns desaforismos da minha autoria.

  Felicitando-me pela receção dos seus livros, felicito-o pela constância da sua visão.

  Infelizmente já não me vai ser possível, naturalmente, voltar a Portalegre, à casa do Régio e às manufacturas de tapeçarias, mas no entanto espero ainda o rever.

  Por hoje fica a gratidão comovida, o velho abraço e os melhores votos, do

    “Com a admiração e a amizade do Cruzeiro Seixas”

 

                          Artur (escrito pelo seu punho)   

                                                                      28 Março 2018

 

2.

   Amigo Saião

 

  Não é para mim nem para si satisfatória a resposta que posso dar a uma longa carta. Os meus 97 anos tornam o dia-a-dia muito difícil… É uma série infinita de impossibilidades, como a de ler e desenhar.

  Passei despercebido mas fui “amado” por gente como o Cesariny, o Herberto Hélder; e sobre o que fiz, escreveram críticos, como Edouard Jaguer, José Pierre, Franklin Rosemont, etc.

  Meus pais não tinham meios para me possibilitar a frequência de um curso e assim, durante toda a minha vida, vivi em empregos desenhando dentro da gaveta da minha secretária, isto desde 1948.

  Evidentemente que nunca tive um “atelier”…Essas gavetas e a minha homossexualidade foram a grande família da minha liberdade.

  Envio-lhe fotocópias de um texto de Cesariny e outro de Ernesto Sampaio.

  Hoje estou numa instituição que dá pelo nome de “Casa do Artista”, onde falta espaço, alimentação, etc. etc.

  A “minha obra” parece-me a mim ter sido mais em quantidade do que em qualidade.

  A maior parte dos artistas que conheço são grandes comerciantes; eu, pelo contrário, dei, perdi, deixei roubar a maior parte daquilo que fiz.

  Disso me envaideço imenso. E tudo isto me dá um acréscimo de consciência e responsabilidade, que muito prezo.

  Acresce a estas dificuldades, que são jovens que fazem o grande favor de escrever estas cartas e ler uma página aqui e ali dos livros que recebo.

  O seu nome é uma garantia de honestidade intelectual e é uma das companhias possíveis neste acanhado espaço geográfico.

  Comovidamente lhe agradeço que se tenha lembrado de mim.

  O abraço forte e os melhores votos do…

                                                                        Artur

                                                                                      17/06/2018

 

                                                                              

(O papel destas duas cartas tem, ao cimo, impresso um desenho – uma espécie de ex-libris – constituído por um cavalo cuja cabeça é uma mão empunhando uma caneta de aparo, das que se usavam na escola)                                               

                                                                                                              ns


Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...