As "fitas" da minha vida: uma crónica
As histórias de vida são sempre subjetivas e, claro,
pessoais, mas talvez seja por isso que são tão interessantes, de escrever e de
ler. A minha história de vida não vai ser nostálgica, saudosa ou séria, não
pretende surpreender, cativar, emocionar ou entreter. Apenas pretende, com
honestidade e perícia, dar um vislumbre do eu que gostava, pensava e sentia
quando era mais novo. E claro, não aborrecer o leitor…
E por
onde começar? Com o passado distante, com o passado recente ou o presente
imediato? O presente é para se viver, e o meu futuro estará de certeza cheio de
“histórias de vida” e amigos a quem as contar, por isso vou falar do que mais
me dá prazer, a minha infância, a família, os amigos e o lazer (e
principalmente a 7ª Arte, o cinema). Falarmos de nós, é, como diz o ditado,
“desnudar a alma” mas, no meu caso, falar dos meus prazeres e dos meus gostos é
assunto para um romance do tamanho dos clássicos da literatura em vários
volumes…
A sala de cinema, o seu poder mitológico e
mágico, o imaginário da tela e dos espectadores, foram sempre para mim fonte de
fascínio, de deslumbramento.
Recordo-me das primeiras vezes que assisti a
filmes, com tenra idade, sentado de pernas cruzadas no chão, ou à beira da
cadeira de madeira no Centro Popular do meu bairro (Atalaião), ou nas festas de
Natal da Câmara Municipal, de que os meus pais eram funcionários, a assistir
deliciado às sessões de cinema organizadas pelo cineclube local, com filmes
clássicos “bigger than life” a serem projetados num pequeno ecrã de tela
pendurado no ginásio do Atalaião ou no edifício da Câmara (“Doze Indomáveis
Patifes”, “Os Reis do Sol”, “O Gavião dos Mares”, “Os Sete Magníficos”, Tarzan,
Zorro, Charlot, etc). Filmes hoje talvez pouco recordados, mas para mim
intemporais, projetados em festas para crianças, num tempo em que o politicamente
correto ainda não existia e podíamos ver “fitas” de guerra, de terror, de
suspense, sem que os nossos pais nos encaminhassem para casa e para os deveres
da escola (claro que o facto do meu pai escolher os filmes e os projetar foi um
fator decisivo da minha presença “rebelde” nessas tardes inesquecíveis…).
Lembro-me também, apesar de os anos terem
passado como um vento veloz, das tardes e das noites que passei no Cine-Parque,
um local ao ar livre, ermo e vasto, nas traseiras do atual edifício da Câmara,
cujas características propícias para o cinema eram apenas o seu grande espaço e
o enorme muro branco onde eram projetados os filmes. Foram muitos os verões dos
anos 80 que lá passei, a ver fitas como o primeiro filme do Indiana Jones, “Os Salteadores
da Arca Perdida”, uma experiência equivalente a uma montanha russa, o intenso e
fantasioso “E.T. – o Extraterrestre”, e clássicos como os filmes do mexicano
Cantinflas, o alter-ego de Mário Moreno, com os seus bigodes característicos,
“A Volta ao Mundo em 80 Dias”, etc. O meu pai conta-me que também ele passou a
infância e a adolescência neste “drive-in” à portalegrense. A década de 50 e
60, para ele, e a década de finais de 70, início dos anos 80, para mim, poderão
ser hoje facilmente recordadas em DVD ou na RTP Memória, mas faltam os
rebuçados e os amendoins comprados à entrada, o barulho das cadeiras de
plástico a serem abertas, o sussurro de antecipação antes do início dos filmes,
o burburinho coletivo nos momentos decisivos, as palmadas nas costas e os
sorrisos rasgados no final, se o filme fosse do agrado do público…
Falta falar, claro, do Cine–Teatro Crisfal,
um edifício antigo e majestoso (hoje uma discoteca), de que recordo as filas
enormes na bilheteira, os cartazes rectangulares na montra com imagens dos
filmes, que nos abriam o apetite meses antes; os rebuçados, as pastilhas, as
batatas fritas e os salgados vendidos no bar do 1º andar, as frisas, os
camarotes e o Galinheiro (o 2º balcão, onde invariavelmente o comportamento era
mais “livre”, e de onde se atiravam projéteis para a Plateia, tal e qual como
num filme de Fellini); as fotografias e os posters, no átrio e 1º andar, das
estrelas e dos filmes clássicos, tudo isto contribuía para tornar o ambiente do
Crisfal e as idas semanais ao cinema em algo poderoso, uma ocasião de
descoberta e de prazer coletivo, uma experiência catártica e esfusiante.
Estas idas ao cinema, mais no Outono e no
Inverno (o Verão e a Primavera eram para o Cine-Parque), transformavam-se em
autênticas excursões do meu prédio e prédios vizinhos; com o meu pai, cinéfilo
inveterado, como líder do grupo, e os meus dois irmãos mais velhos (o mais novo
ainda era um bebé, embora já mostrasse também propensão por “fitas”) e vários
amigos (o Artur, o Paulo, o Luís, o Quim…) como o resto da “equipa” (graças a
estas “escapadelas” à rotina, todos eles ainda mantêm o “bichinho” do cinema,
um deles inclusive estando a fazer o doutoramento em Cinema e lecionando esta
disciplina numa escola superior de Portalegre).
O curto caminho do Atalaião até ao Crisfal,
cinco minutos a pé, servia para nos abrir o apetite em relação ao filme, com o
meu pai a “lançar-nos o isco”, discutindo expectativas e as críticas dos
jornais nacionais (os trailers nesta
época eram coisa rara, e por vezes a espera pelo filme publicitado era de
muitos meses), das revistas estrangeiras que o meu pai comprava (a Première em
francês sempre foi para mim algo de misterioso e exótico, talvez por apenas ver
as imagens, sem compreender a língua), o que nos deixava no estado de espírito
ideal para o filme, de mente e coração abertos ao inesperado.
São inúmeros os episódios divertidos e
marcantes que me aconteceram neste “mundo” que era o Crisfal, quando era mais
novo (dos tempos de declínio e decadência da sala, do frio e da falta de
qualidade dos filmes, não vou falar), e é esses momentos que quero recordar,
porque para mim eles constituem a “história da minha vida”, num dos períodos
mais importantes e mais felizes de qualquer pessoa, a Infância.
Uma das minhas mais marcantes excursões de
bairro foi para ver o épico “Ben-Hur” (em tempo de poucas estreias, o Crisfal
tinha o hábito de passar ciclicamente os clássicos, como “Música no Coração”,
“Pipi das Meias-Altas”, “West Side Story”, etc), numa noite tempestuosa e de
chuva torrencial, que fazia com que a água nos chegasse às canelas enquanto
descíamos a rua para o cinema, e que levou a que chegássemos completamente
encharcados ao Crisfal. Este episódio com a chuva transformou anos depois a
aventura de Judah Ben-Hur e Jesus Cristo, passada em Jerusalém, no bíblico “Os
Dez Mandamentos”, talvez para relacionar a nossa “chuvada” com o episódio do
Dilúvio e da Arca de Noé; e mesmo com as evidências à minha frente, sempre
neguei que não nos tivesse também acontecido o nosso “pequeno” dilúvio nesse
dia, no caminho para o cinema…
Lembro-me de assistir mais de uma dezena
de vezes ao já referido “Indiana Jones e os Salteadores da Arca Perdida” (ainda
hoje o meu recorde em salas de cinema), que naqueles tempos mais inocentes se
desvanecia da memória poucos dias depois de o ver, o que me levava a um estado
de impaciência febril e desvairada até voltar a ver o chicote de Harrison Ford
em ação...
Lembro-me de assistir ao muito esperado e
oscarizado “África Minha”, uma história de amores ilícitos no continente
africano, num Crisfal a abarrotar e onde se podia ouvir um alfinete a cair,
tamanha era a concentração com que se seguia o filme. Nas cenas finais, quando
a personagem de Meryl Streep descobre que o seu apaixonado, Robert Redford,
morreu, ouviu-se de repente um choro convulsivo e assustador, de alguém que
estava a sentir o filme de uma forma ainda mais intensa que nós. Perante as
risadas gerais de quem não percebia que o cinema também consegue “mexer” dessa
forma com as pessoas, voltei-me para trás e qual não é o meu espanto quando
vejo que quem chorava era a minha vizinha do andar de cima, que já nessa altura
era uma Testemunha de Jeová, uma religião que não é conhecida pelos seus
membros exteriorizarem as suas emoções…
Lembro-me
da estreia de outro filme oscarizado, o magnifico “Amadeus”, e de terem sido
projetados os primeiros 30 minutos do filme sem som, devido a um problema
técnico, mas de ninguém se ter levantado do cinema e ter reclamado o seu
dinheiro de volta, tão cativante era o argumento, embora a música tenha um
papel fundamental nesta biografia do grande Mozart (lembro-me de ter saído do
cinema e pensado que o filme era uma obra-prima, apesar de só muitos anos
depois ter visto a sua versão “não censurada”) …
Lembro-me com especial ternura de uma noite
em que fui sozinho com o meu irmão mais velho (6 anos de diferença), para
assistir a um filme que há meses me “impedia” de dormir à noite, “Cocoon – A
Aventura dos Corais Perdidos”, de termos ficado num camarote, e de a luz ter
falhado logo no início do filme, o que era habitual nessa época em Portalegre
ao mínimo sinal de trovoada. Obriguei o meu irmão a ficar cerca de uma hora no
cinema, com medo de que a luz voltasse e começassem o filme sem mim, e só
quando fomos obrigados a sair das instalações é que cedi, e aceitei ir para
casa, mas apenas com a promessa solene do meu irmão de que no dia a seguir lá
estaríamos de novo; e para grande deleite meu assisti ao filme com um enorme
entusiasmo. Sempre que revejo esta fábula fantástica sobre um lar de 3ª idade,
os seus habitantes, extraterrestres de visita à Terra e a súbita e espantosa
regeneração e regresso à juventude dos “velhotes” do lar, lembro-me sempre de o
meu irmão a tentar convencer-me a irmos para casa nessa noite, e do “vendaval”
que fiz para poder ficar na sala à espera do regresso das luzes…
A melhor história, como é da praxe,
guardei-a para o fim, mas terei de confessar que ela já adquiriu proporções tão
míticas na minha memória, que já não sei distinguir o que aconteceu na
realidade e o que “fabriquei” na minha imaginação como um enredo
cinematográfico.
O ano foi 1982, e o filme a que ia assistir,
com o meu pai e os meus irmãos mais velhos, chamava-se “Blade Runner - Perigo
Eminente”. Hoje em dia é o “Filme da Minha Vida”, marcante, futurista e
inovador, que revisito habitualmente, mas naquela época era apenas mais um
filme de Ficção Científica a que queria desesperadamente assistir. O meu pai,
que havia lido o livro em que o filme se baseava, e as críticas (não muito
positivas, na altura), talvez sem pesar as consequências, criou-me uma enorme
expectativa, falando-me dos atores, do argumento, dos cenários, sendo o meu
frenesim ainda maior que o habitual. À entrada, e depois de termos comprado os
bilhetes, o nosso caminho foi barrado pelo segurança/porteiro/controlador dos
bilhetes, que na minha memória ainda hoje se assemelha a um Arnold Schwarzenegger
portalegrense, com um típico bigode à anos 80 e a camisola de gola alta da
moda. O problema era que o filme era para maiores de 12, e eu tinha apenas 8
anos de idade e o meu outro irmão 9. O meu irmão mais velho, numa demonstração
de “ratice” que não lhe era habitual, e que nessa noite não lhe perdoei,
escapuliu-se para dentro da sala, dando a entender através da sua cara cheia de
pena para comigo, que preferia assistir ao ansiado filme que ficar connosco e
expressar solidariedade filial. Depois de uma discussão acerca da minha
“pretensa” e precoce maturidade, que recordo como infrutífera, com o aproximar
do início do filme e as pessoas atrás de nós à espera para entrar, o meu pai
recorreu a um último estratagema, chamando o “facínora” à parte e tendo uma
pequena conversa com ele, após o que me foram franqueadas as portas do Crisfal,
e lá entrei, depois deste “milagre” caseiro, para assistir ao filme.
Para um filme que lida com o poder da
memória, com a noção do que é ser-se humano, com memórias pré-fabricadas mas
que para os andróides do filme parecem reais, não deixa de ser curioso o facto
de eu não me recordar de ter visto o filme naquela noite, sendo as minhas muito
intensas recordações do filme fruto das muitas vezes que o revi, em casa e no
cinema…
Ficou o mistério do que o meu pai terá dito
ao porteiro para eu ter podido assistir ao filme (e se de facto o cheguei a
ver), mas devido ao passado de ambos em comum no período pós- 25 de Abril, e as
atribulações passadas em conjunto no Verão Quente de 75, só posso imaginar que
provavelmente pensou que quem enfrentou cenas de pancadaria e perigos reais bem
merecia levar os filhos a um espetáculo inócuo, desde que as crianças em
questão não fossem afetadas psicologicamente pelo filme (do qual não devo ter
percebido patavina…).
Hoje em dia, é com motivo de orgulho e com
alguma ironia que constato que a minha vida deu uma volta completa, e que me
encontro eu agora na posição de decidir que filmes passam comercialmente no
cinema em Portalegre, além de vender os bilhetes e colocar as pessoas na sala,
impedindo, se necessário, de assistir ao filme quem não tenha a idade legal
(talvez pela experiência traumática que descrevi, foram raros os casos em que
isso aconteceu). Só não projeto os filmes como o meu pai, porque depressa
descobri, quando comecei a aprender essa tarefa, que estava para além da minha
capacidade, que não tinha o estofo para ser um “Alfredo”, a famosa personagem
projecionista do “Cinema Paraíso”.
É um prazer estar de novo numa sala às
escuras, a assistir à empolgante reação dos espectadores, jovens e não tão
jovens, ouvir os seus comentários à saída do filme e as suas sugestões para
projeções futuras, ver o “brilho nos olhos” dos mais novos ao deliciarem-se com
o mesmo tipo de aventuras que eu, com a idade deles, via.
Mesmo numa época de cinema digital, 3-D, TV
Cabo, clubes de vídeo Meo, canais temáticos e de pirataria online, é
reconfortante saber que ainda há quem tenha prazer no ritual que constitui a
ida à sala de cinema, o apagar das luzes, o som da máquina de projeção, o trailer, o símbolo do estúdio, o início
do filme e o início de uma viagem única…
E não posso deixar de me sentir
identificado, na ingenuidade e na “fome”, com que recentemente um cliente
habitual de 10 anos me perguntou entusiasmadamente, à saída da projeção da 1ª
parte do último filme da saga Harry Potter, “Os Talismãs da Morte”, se podia
voltar no dia seguinte para ver a 2ª parte, que mal podia esperar para saber o
que iria acontecer…
(Gaspar Garção
- Portalegre, 1974. Licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Escola
Superior de Educação de Portalegre e mestre de Jornalismo, Comunicação e
Cultura na mesma entidade. Dedicando-se à análise da ficção científica
nos seus diversos ramos, é autor de "Relance sobre o humano na
literatura de antecipação". Escreveu ainda "Charlie Chaplin e o
mito de Charlot". Orientou ciclos cinematográficos sobre F.C. e sobre
aspectos dos primeiros anos do cinema mudo. Trabalhou no Centro de Artes
e Espectáculos locais e trabalha agora no Gabinete de Comunicação da Câmara
Municipal de Portalegre). |
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