quinta-feira, 8 de julho de 2021

Um texto de José do Carmo Francisco

 


ns, Painel



25 livros - 25 anos. Uma lista: entre o pó e a posteridade

 

 

«Ser conhecido não é o mesmo que ser importante, nós aqui fazemos simples notas de leitura mas só o tempo pode distinguir o pó da posteridade.» Mais palavra menos palavra, foi esta a recomendação que Jacinto Baptista me fez em Agosto de 1978 no velho Diário Popular. Hoje como ontem existem muitos equívocos na História da Literatura Portuguesa. Há cem anos Augusto Gil era mais conhecido do que Camilo Pessanha tal como tempos antes Pinheiro Chagas era mais popular do que Eça de Queirós enquanto, por outro lado, Cláudio Nunes era muito mais divulgado pelos jornais da sua época do que Cesário Verde.

Por todas as razões e mais uma («somos um país pequeno, toda a gente se conhece») é um risco muito grande a elaboração de uma lista deste tipo mas se os leitores perceberem que se trata apenas de uma lista pessoal, tudo se torna mais simples. No meu caso é ainda mais pessoal pois o meu percurso nas Letras é um pouco atípico. Em primeiro lugar porque não passei pelos bancos da Universidade, os meus bancos eram outros e à hora de almoço na velha Parceria A. M. Pereira conheci autores como Romeu Correia, José Palla e Carmo, Natália Correia, Ruben A. e Luiz Pacheco. As coisas aconteciam de modo informal, havia em 1966 Suplementos Culturais nos diversos jornais vespertinos e matutinos, tornei-me assinante da Seara Nova, cujo director-adjunto era o meu colega Vasco Martins.

Uma descoberta espantosa foi o romance A Torre da Barbela de Ruben A. com um prefácio/ensaio de José Palla e Carmo. As Páginas V, as primeiras que li, foram um abalo sísmico para quem vinha de uma Escola Comercial e conhecia apenas os escritores dos livros obrigatórios. Ruben A. não vinha na Antologia oficial mas só muito tempo depois soube porquê. Pois um dos livros que poderia ter entrado nesta lista é a Obra Ântuma de José Palla e Carmo mas a sua data é de 1986. Para quem não se esquece do refinado humor das suas crónicas no Jornal de Letras com o nome civil de José Sesinando, pode fazer uma ideia do conteúdo deste livro que, apesar de tudo, não entra na lista.

Outro livro que poderia ter entrado é o Vida e morte dos Santiagos de Mário Ventura mas é do ano de 1985. Vinha a calhar um livro que é uma revisitação da História no sentido total do termo: a vida de uma família dentro da vida de uma província portuguesa – o Alentejo. Entre o universo pessoal e o espaço político, o herói é a própria terra que salta dos mapas e suja de pó as botas dos homens. Poderia falar de Nenhum olhar de José Luís Peixoto que pisa os mesmos terrenos (Planície) de Levantado do chão de José Saramago mas os heróis do segundo voltam à vida depois da morte enquanto os do primeiro voltam à morte depois da vida.

Sem esquecer Os putos-contos escolhidos de Altino do Tojal numa edição de 2009 da Bonecos Rebeldes mas trata-se de uma reedição com uma selecção do autor, daí ter sido colocada fora do inventário. Já o mais recente livro de poemas de Liberto Cruz tem o problema de ser uma edição de 2012, por isso não pode integrar a lista. Ernesto Rodrigues e Fernando Venâncio são autores das excelentes antologias Crónica Jornalística do século XIX e XX, respectivamente, uma de 2003 e outra de 2004 e também poderiam ter entrado na lista mas já não havia lugar. Tal como não houve para Orlando Neves (Parábola da inocência) de 2002 da Editora Notícias e Fernando Grade, a festejar 50 anos de vida literária em 2012, com Poemas de Natal (2005) da Editora Mic.  Nem lugar para livros de autores tão diversos como João Camilo, Alexandre O´Neill, António Osório, Maria Velho da Costa, Manuel Tiago, Vergílio Alberto Vieira, Maria Ondina Braga, Nuno Júdice, Helder Macedo, Teresa Horta, Manuel Frias Martins, Francisco Bugalho, Joana Ruas, José Saramago, Valter Hugo Mãe, Maria Alzira Seixo, Emanuel Félix ou Teolinda Gersão. Uma lista como esta pode dar origem a outra lista e assim sucessivamente.

Mas não vale a pena prolongar a discussão. O que está feito está feito, tudo nas escolhas é absolutamente relativo e daqui a 25 anos outras listas com outros nomes surgirão nesta ou noutra Revista. A vida é um mistério, não um negócio. Se fosse um negócio os ricos compravam a saúde e morriam mais tarde que os outros. E quem diz saúde diz talento para escrever – que não é coisa que se compre na vida de todos os dias. E ainda bem.  

 

 

Já não gosto de chocolates. Álamo Oliveira, Salamandra, 1999

A cidade do homem. Amadeu Lopes Sabino, Sextante, 2010

Matar a imagem. Ana Teresa Pereira, Caminho, 1989

Exortação aos crocodilos. António Lobo Antunes, Dom Quixote, 1999

Lisboas. Armando Silva Carvalho, Quetzal, 2000

Ilha grande fechada. Daniel de Sá, Salamandra, 1992

Obra poética – 1948/1988. David Mourão-Ferreira, Presença, 1988

Os meus sentimentos. Dulce Maria Cardoso, ASA, 2005

Trabalhos e paixões de Benito Prada. Fernando Assis Pacheco, ASA, 1993

Tendências dominantes da Poesia Portuguesa da Década de 50. Fernando J.B. Martinho, Colibri, 1996

Contos, fábulas e outras ficções (org. Zetho Gonçalves). Fernando Pessoa, Bonecos Rebeldes, 2008

A cova do lagarto. Filomena Marona Beja, Sextante, 2007

Longe de Manaus. Francisco José Viegas, ASA, 2005

O último cais. Helena Marques, Dom Quixote, 1992

Lillias Fraser. Hélia Correia, Relógio d´Água, 2001

Gente feliz com lágrimas. João de Melo, Dom Quixote, 1988

Vou-me embora de mim. Joaquim Pessoa, Hugin, 2000

De ProfundisValsa Lenta. José Cardoso Pires, Círculo de Leitores, 1998

O cemitério de Pianos. José Luís Peixoto, Bertrand, 2006

De mãos no fogo. Júlio Conrado, Notícias, 2001

O vale da paixão. Lídia Jorge, Dom Quixote, 1998

Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto. Mário de Carvalho, Caminho, 1995

Os objectos inquietantes. Nicolau Saião, Caminho, 1992

Domínio Público. Paulo Castilho, Dom Quixote, 2011

O livro do sapateiro. Pedro Tamen, Dom Quixote 2011


Joan Manuel Serrat, La fiesta de San Juan

 



segunda-feira, 5 de julho de 2021

UMA FRASE LAPIDAR

 



«Porque a poesia é a ignorância propositada de coisas estúpidas que os políticos e politizados tomam a sério para adiarem o real humano que exige um mundo sem metrificadores que vivam à custa dela».

Natália Correia


Para um minuto de meditação - 107

 


ns



    PROIBIR O SEXO

   O Governo espanhol fez aprovar a Lei “Trans e de Igualdade LGBTI”, que introduz alterações no Código Civil, designadamente no capítulo sobre paternidade e filiação. As mudanças agora previstas - concedendo "autodeterminação de género" aos maiores de 16 anos sem autorização parental, conselho médico ou tratamento hormonal - interditam palavras como mãe e pai: a nova designação politicamente correcta é "progenitores". A partir de agora com monopólio legal. 

   A mãe torna-se "progenitora gestante" e o pai será "progenitor não-gestante".

  A engenharia social levada a cabo pelo Executivo de Pedro Sánchez investe contra outras palavras arcaicas, como mulher e homem. Neste admirável mundo novo, só há lugar para pessoas, sem distinção de sexo. Aliás, o próprio sexo é banido: a novilíngua, de tesoura em riste, apenas permite "género".

    A comunista Irene Montero, ministra da Igualdade, congratula-se com esta "conquista civilizacional". Qualquer madre superiora diria o mesmo. O sexo regressa assim à clandestinidade. De onde, segundo algumas boas almas, nunca devia ter saído.

Pedro Correia, in Delito de Opinião


Dois poemas de Nicolau Saião

 


ns


   Os poemas que se seguem, dedicados ao casal de artistas a que a carta de Mário Cesariny - publicada na anterior postagem – alude, foram enviados pelo seu autor aos dois pintores junto a uma carta a eles endereçada.

   Segundo informação de MC foram os últimos poemas, dados em epístola, que Arpad Szènes leu. Faleceria pouco tempo depois.

 

 

ARPAD SZÈNES

 

É tudo muito confuso

é tudo muito cruel

é tudo muito real

 

E de repente, eis a presença solene

de Deus e de um milhafre.

 

Um armário, mais abaixo                         

esconde tintas, vozes, corações

 

O mar espera a sua oportunidade

sem se fatigar

 

Chave solar, água perdida

entre um verde, um castanho, um violeta

 

 As nuvens estão a mais

 ou a menos

 mas para inventar deuses e matérias

 enfim completas.

 

 Em verdade nos dizem

 que o destino é aqui que se encontra.

 

 

TRÍPTICO PARA MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA

 

Alguns traços podem matar, é o que dizem.

Alguns traços são como cadeiras sangrentas.

E na verdade eles erguem, podem erguer, o tempo

e transformar-se (por exemplo) em substâncias breves

comummente sagradas: um peixe metralhado

uma lata de bolachas, um pequeno dedal

três ou quatro rostos humanos

uma pirâmide da cidade santa do Peru

ou, apenas, a imagem (real) da tradição

para a qual um morto (usado ou virgem) é tão belo como o destino

(vamos lá) a intervalos regulares.

 

Mas que sabem, que sabem (eles) da floresta?

Eles, os do pessegueiro feito plácido azeite

os da enfeitada confirmação acessória, os da matéria que

provê as mais cegas necessidades de

ar (digamos) sete vezes por semana.

Terá de haver, é certo, uma razão

para tudo isto. Isto, serve dizer:  um deslumbrante

som, uma casa que fica sendo o quase princípio das coisas

ou, por antítese, a velocidade completa

dum sol rude e destroçado. Mas

com que alegria! a cor tem também o seu lugar:

- a ilusão viva desta mão, um copo (é exacto) azul

bem mais que aterrador, sendo como que a espádua

duma figura marítima ou de

uma qualquer linguagem irredutível.

 

Tantos anos passei

sem conhecer esta cerâmica inquietante. Tantos anos

que incluem aliás os meus anos repletos de chapéus e segredos

e toda uma filosofia de amargura, às vezes

uma realidade verdadeiramente (?) retratada e

 

os longos passeios (doridos) pelas quentes, sonolentas

existentes vilas falando (suavemente), abrigos

que são para diferentes caminhos de (in)submissão

a um incerto deus.

 

Um desejo afinal que a cidade afastou, essa cidade

exaurida de medo.

 

E sei bem que não basta

que à palavra se junte outra vontade

interrogada não pelo elemento

que tudo irá ligar:  outra vontade

à semelhança de muita gente (havida), de multidões talhadas

nesses riscos ardentes, geografia altiva, vivos de ferocidade, vivos de

inumeráveis quartos, praças, canaviais, inúmeráveis mares

 

 

onde um morto (de acaso?) se multiplica pelos séculos inatingíveis.

 

(Depois incluídos no livro “Flauta de Pan”, capítulo “Caixa de Cores”)


Nicolau Saião, Recordando Manuel D'Assumpção

 


Manuel D'Assumpção, O Último bailado (1955)



D’ASSUMPÇÃO & SUAS EVOCAÇÕES SECRETAS

   A quem servem as evocações? Em certas alturas, a nós mesmos. Talvez a um que outro, recheado de minutos de dúvida sobre a face da sociedade. A gentes projectadas num futuro incerto, possivelmente, viajando entre recordações e utopias. Entre os rochedos da memória provável.

   A certas horas, rodamos em torno das recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria carne que, como num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a pouco se ilumina. Se para se escrever uma página, como referia Rilke no seu “Malte Laurids Brigge”, é preciso a frequentação de muitas ruas, muitos rostos, funerais e nascimentos, deambulações ao acaso e a cor quotidiana da vida e da morte nos olhos de nasciturnos, grávidas, simples seres solares e lunares que subitamente ficam presos à rota que vai do princípio ao fim – é preciso igualmente a decantação da memória para que ao termo, no cadinho que são os nossos olhos brilhando na obscuridade, num quarto vazio, a pouco e pouco as sementes auríferas se separem das escórias e palpitem, ainda que nuas e frágeis, ainda que em solidão singularmente solene. Crê-se que o futuro nos poderá ver como num espelho iluminado, devolvidos à nossa verdadeira imagem; mas a matéria do futuro é incerta, vaga, na sua superfície criam-se como que buracos negros que não é possível preencher: ainda estão e estarão por muitos anos, de pé, as aparelhagens pseudo-sociais, constrangedoras e inúteis, para desequilibradamente acantonarem neste local, naqueloutro, em outro ainda, as verdadeiras faces dos que, na sua passagem pela Vida, criaram mundos de liberdade que a “realidade societária”, informe e espúria, não quer consentir.

    D’Assumpção foi sempre para mim uma espécie de presença ausente. Habitante de planetas longínquos e misteriosos ou então de lugares de ao pé da porta que contudo, como na estória de Jean Ray ou no “Erich Zann” de Lovecraft, por mais que se tente não se conseguem reencontrar, ele decerto era alheio ao movimento de muitos outros seres que eventualmente se cruzavam com ele ou com a sua aparência de movimento. Digo bem: porque frequentemente a nossa deslocação real, ao longo do tempo que nos foi dado viver, se faz virtualmente, havendo pontos – como nas fábulas – onde verdadeiramente a nossa figura se fixa, permanece nos olhos dos que nos amaram ou algo esperaram de nós sem que disso tivessem consciência, envoltos numa razão que ultrapassa as horas e os quilômetros. Por exemplo e ao acaso: para Cézanne – Aix-en-Provence; para Mário de Sá-Carneiro – Paris; para H. P. Lovecraft – Providence; para D’Assumpção – Portalegre – Paris – Lisboa (e a inversa também é verdadeira).

   No fim da infância ou no princípio da adolescência (tocam-se, sendo todavia, inapelavelmente, mundos diferentes) em certa tarde o meu pai chegou a casa e, no meio da conversa, contou-nos que nesse dia fora com o mecânico (era na altura empregado no stand de meu padrinho João Vinte-e-Um, que negociava automóveis, motas, camiões) buscar uma motocicleta a casa de um cliente; de acordo com o que relatou, ao que lembro, fora o próprio cliente que a entregara – por não poder pagar as letras. “É o filho do Sr. Rosiel, coitado…” disse meu pai sinceramente constrangido. “Aquele que pinta”, referiu ainda a uma pergunta de minha Mãe. E pronto, foi tudo, conversa de acaso perdida depois entre o resto dos minutos.

   Dias depois, entrei no “Facha”; o stand do meu padrinho ficava mesmo em frente, por baixo da “Cegrel” e em direcção ao “Rossio” e era o Café que me ficava mais à mão para os reconfortantes amendoins, rebuçados escapados à catástrofe que costumavam ser as finanças adolescentes… Lembro-me que numa mesa perto da porta um indivíduo de fato azulado, um pouco inclinado sobre o tampo, se entregava a qualquer actividade pouco usual. Quando tornei a passar o sujeito acendia um cigarro; o busto, erecto, deixava entrever uma folha de papel. Soprou o fumo, tirando com a mão esquerda um pedacito de tabaco que se colara nos lábios; nessa altura, o empregado perguntou: “Sr. D’Assumpção, quer em copo ou em chávena?” Referia-se à “bica”; naquela altura havia pessoas que preferiam bebê-la em recipientes de vidro e não na habitual chávena branca, de loiça; hábito que se radicava na aprendizagem de que (segundo constava) os micróbios frequentavam menos os primeiros…

   Na rua, pensei: “Este é que é o tal da mota…”. Mas o que me ficara nos olhos, pelo traçado inusual, fôra o desenho. Onde se encontrará hoje, depois de por um momento se ter cruzado com o garoto que eu era então?

   Quando cheguei ao “Stand” – (naqueles anos, como se sabe, tudo tem um halo de mistério, aliás a verdadeira face do mundo; depois perde-se pouco a pouco a capacidade de nos maravilharmos) – na ocasião propícia disse a meu Pai que vira o sujeito da mota no “Facha”, a desenhar. Ele retorquiu que o filho do Sr. Rosiel tinha estado lá fora, parece que em França, fazia quadros, mas estivera doente ou coisa que o valha. “Tem estado agora cá, não sei se para trabalhar com o pai…”, concluiu.

   O Sr. Rosiel conhecia eu bem (viria a conhecê-lo bastante melhor, mantendo mesmo com ele largas conversas iniciadas no estabelecimento de electrodomésticos “Custódio Silva”, pela noitinha, enquanto – umas vezes por outras – um que outro cívico, obedecendo a ordens, fingia que olhava os aparelhos expostos na montra, vigiando a bem da Nação os perigosos dois-ou-três subversivos que ali, mefistofelicamente, trocavam opiniões sobre gente tão perigosa como Faulkner, Aquilino, Tolstoi, Van Gogh…). Como alguns se recordarão, tinha um “atelier” de fotografia à esquina por cima da loja “Hermínio Castro”; era ele que me plasmava em retratos tipo passe para diversas utilizações: para tias devotadas e madrinhas amantíssimas, com um xi-coração repenicado; para as cadernetas da Escola; para os usos e costumes de molduras sobre as cómodas, depois excursionando por feéricos álbuns, hoje envoltos em nostalgia, onde os primos, cunhados, avós e tios nos contemplam de juntura com faces de amigos que já não sabemos bem quem sejam. Certo dia, nessa loja, vi encostada à parede uma pintura onde os azuis e os vermelhos, os rosas e os verdes-maçã criavam uma estranha sinfonia. “É do meu filho…” respondeu o Sr. Rosiel à pergunta que timidamente lhe fizera. “Gostas? Vê lá tu que reparaste!”. Ficara contente. Era aliás uma pessoa extremamente atenciosa, cuja bonomia recordo por entre outras aparências de depois, sempre com o seu cigarrinho que nervosamente chupava com todo o ímpeto de velho fumador. De fato escuro, magro, tinha semelhanças com o filho. Mais tarde, conheceria o outro filho – dar-me-ia um pouco também com ele – este sobre o fornido de carnes, só tendo em comum talvez o olhar agudo. Como era fotógrafo, encontrava-se comigo frequentemente em eventos que eu ia cobrir jornalisticamente como redactor dum velho periódico local.

   Mas voltemos a D’Assumpção. Tanto quanto o permite o rodopiar das palavras, ora aqui ora ali.

  Tempos mais tarde, entrei na época do ping-pong e do bilhar. Depois das aulas, a dadas horas, frequentavam-se as salas da “Mocidade Portuguesa” (onde os preços eram mais em conta), do “Central”, a sala traseira do “Facha”, o salão do Clube de Futebol do Alentejo, da FNAT (onde de noite, às vezes, havia uns teatros e se podia ver televisão), do “Alentejano” e do “Plátano”; quando estes estavam ocupados ia-se também à sala do “Estrela”, na altura num primeiro andar frente à Casa Umbelino, mas era lugar acanhado onde os tacos batiam por vezes na parede; o “Plátano” da época era também frequentado por partidários do dominó, da bisca lambida… Na parede, enquanto efectuávamos as carambolas, os efeitos, um que outro pique mais desenvolto e promissor, um quadro bastante grande servia para descansarmos o olhar vitorioso ou derrotado: o célebre quadro de D’Assumpção que, segundo ouvi relatar, seria depois vendido pelo proprietário a uma galeria do Porto, com bom e legítimo proveito.

   Na minha recordação o quadro aparece-me enevoado: sei que havia um horizonte, árvores, - mas o todo da obra desapareceu-me para reinos inalcançáveis. E quantas vezes o contemplei, umas vezes apreciando-o em miradas sucessivas, outras num relance, assoberbado pelas excessivas carambolas do adversário! Mas o mesmo sucede com rostos, acontecimentos e coisas que connosco se cruzam na nossa navegação através do tempo, uma vez que as sedimentações se dão incontrolavelmente, por uma mecânica subtil que ora nos surpreende ora nos sufoca – se sabemos conservar o nosso coração de crianças.

   Mais tarde, já adulto, soube de D’Assumpção de maneira diferente: algumas vezes falei dele com Herberto Hélder no “Monte Carlo”, nos meus tempos de tertúlia lisboeta logo ao voltar da Guiné, depois de com outro antigo companheiro ter entrado em contacto com a gente do grupo de revista “Grifo”; algumas vezes escrevi sobre ele, sobre a sua pintura; certo dia, como que por acaso, soube da sua morte – sobre a qual não me vou debruçar; tomei a iniciativa de expor quadros dele, integrados numa colectiva em que além de obras diversas de autores de Portalegre havia também serigrafias de Mário de Oliveira e óleos de Cesariny (a “Geração Sibilina”, que pertence hoje ao acervo do Museu local, por minha decisão, pois encaminhei para ali os quadros que o Mário oferecera a Portalegre, ficando ao meu alvedrio a entidade que os devia receber – secção cultural do Clube de Futebol do Alentejo? Museu Municipal?

   Optei por este último, por me parecer melhor apetrechado para os expôr. E assim foi, com efeito: três anos depois já lá os tinha nas paredes, assim como os outros… Foi a última notícia que ao meu emprego dessa época me veio dar o Manuel Mourato de boa memória).

   Aqueles quadros, hoje patentes no Museu, estão lá por uma razão: fotografados por Joaquim Ceia Trindade (A.J.Silverberg) por minha solicitação, as fotos foram remetidas ao marchand João Pinto de Figueiredo, que por intermédio de Mário Cesariny eu prevenira de que existiam; embora ele não estivesse, na altura, interessado na sua aquisição, sabia do eventual interesse de um apreciador do Porto; perguntou-me por telefone se os quadros estavam assinados. Eu não vira assinatura (saberia depois, pelo seu cunhado Sr. Valente, também da minha lidação, que o estavam nas costas, que as molduras interditavam) e assim lho disse, embora de acordo com o mesmo Valente um perito, que os analisara, atestasse que eram obras de D’Assumpção sem qualquer dúvida. Devido a isso – o que é compreensível nestes negócios – Pinto de Figueiredo declinou mais interesse. E, assim, foram posteriormente adquiridos pelo Museu local por um preço bastante razoável (preço de conterrâneo); em 1981, na exposição “Três Poetas do Surrealismo – A. M. Lisboa, M. H. Leiria e Pedro Oom”, era um desenho aguarelado de D’Assumpção que constituía a face do convite endereçado pela Biblioteca Nacional, entidade que a patenteava; e na mostra de 1984 “Surrealismo e Arte Fantástica”, organizada por Cesariny e C.Martins com a minha colaboração (infelizmente de longe e vendo com certa angústia o quanto ficaram assoberbados por tarefas inúmeras) no Teatro Ibérico e na Sociedade Nacional de Belas Artes, outro desenho de D’Assumpção aparecia no catálogo-livro em jeito de homenagem, sendo igualmente a partir de um óleo seu que o cartaz e o desdobrável foram iluminados.

   Entre uma e outra idade houve contactos, reflexões, momentos e olhares que a escrita memorialista não atinge: pertencem ao céu e ao inferno do poeta, daquele que evoca. São imarcescíveis e impossíveis de fixar. A sua geografia é interior, pertence a lugares inabordáveis.

   Mais terra a terra, saudavelmente perversa e envolta em roupagens quotidianas, aqui fica uma pergunta com que termino estas breves e leves, difusas recordações: como é possível que depois de tanto tempo após o seu falecimento, tendo o Pintor atingido tal notoriedade pública (ele que sempre dispôs da estatura que lhe era própria, mas que foi solapada num gesto em que a terra portalegrense, ainda controlada por medíocres e onzeneiros sem perfil, segue sendo fértil) não se tenha ainda efectuado em Portalegre uma retrospectiva ampla, séria e fundamentada de D’Assumpção? Como é possível que os seus conterrâneos continuem afastados da contemplação conveniente da Obra de um dos mais originais e suscitadores pintores modernos lusitanos?

   Aqui fica, em terreno vago, a pergunta. E o seu eco gostaria que se projectasse, justa e acusadoramente, além dos rochedos que o proporcionam, rochedos que não serão para sempre as fragas da Serra da Penha em que alguns querem encerrar as consciências livres.


Quarteto do Sol, Da cidade nasce o povo

 



quinta-feira, 1 de julho de 2021

Para um minuto de meditação - 106

 



Quando Berardo ria, não ria sozinho. Lembram-se?


Berardo nunca teria feito o que fez, nem teria criado as dívidas colossais que criou, sem Sócrates, sem Ricardo Salgado, sem Armando Vara e outros que ainda andam por aí. É bom lembrar a história toda.

(Dos jornais)


   Ainda me lembro de Berardo a ser praticamente levado em ombros pelos sindicatos afetos à CGTP aquando da célebre assembleia da antiga PT na qual Berardo e outros accionistas alinhados com o BES, Ongoing e governo socialista de então votaram contra a OPA da Sonae.

David Antunes


   O juíz Ivo Rosa encarregar-se-á depois de mandar arquivar tudo. Mas mesmo que fosse condenado, na altura de cumprir pena já terá morrido.

Tiago Palhoto


Dois poemas de José Carlos Costa Marques

 

 João Cabral de Melo Neto

(prefácio autocrítico)

  

Com tua faca sem cabo,

deceparias meus versos,

rotundos,

exclamativos.

 

No calo com que não calo

os versos tersos

facundos,

reiterativos,

 

a tua fome não está.

Mas está essa outra fome,

também tua,

de poesia,

 

aquela fome de lá

no trânsito onde se some

o flamenco na lua,

e nasce o dia.

 

Do cirurgião desconheço

o ofício de cortar,

derramado,

inundação.

 

Porém também eu obedeço

à tua lâmina de amar,

e fico desse teu lado

enxuto do coração.

 


O jugo do trabalho

 

“Work all day, drink at night to forget it.”

                                               Philip Larkin

 

Trabalhar como os mergulhadores o dia todo,

beber à noite para esquecer o dia.

Assim o bibliotecário no fim dizia

que vivia. Surpresa aos amigos esse engodo!

 

Mas não são só mergulhadores a soldo

ou livreiros, aliás o poeta Larkin. Nem só a poesia

se dessedenta do dia ou do mergulho o lodo

vence, no tempo que dá a paga luzidia.

Aparte alguns eleitos, a cujo rogo o mundo gira

e podem julgar-se a salvo, quem se livra do cabresto,

escravo no desatar do tributo inescapável?

 

Nem poetas, nem fazedores lerdos do irreparável.

Beber findando o dia, do primeiro ao sexto.

Mas sóbrios é que veremos lá onde além da lira.


É assim que se faz a estória

 


O papá que veio do Leste (120cm x 60cm) – MC, quadro dedicado a ns


DUAS CARTAS

De Mário Cesariny e ns


A Francisco da Gália (*) envia Mário Ibericus

Saúde.

A morada da Maria Helena(Vieira da Silva) é 34, R. l’Abbé Carton, Paris 14 ème. Deves enviar – istové – o nome que é de pores no sobrescrito, é VIEIRA e SZÈNES. Vale.

 

Cá veio a tua carta com a tua tradução do Rosemont(1)que é a beleza, nenhum cheiro a tradução, e o teu poema de “O Livro das Cidades” e respectas duas colagens. Tudo do fino. Segue nesta o que a isso se junta para a Voz Anarquista (2).

De minha parte vão e estão:

 

o LUNÁRIO DO SURREALISMO PARA 1990. É uma secção a ser continuada e cujas características apanharás à primeira leitura. E é um presente bom que faço aos teus e nossos amigos porque título assim não vem todos os dias e eu tinha-o de lado para a edição de um livro grande gizado nos mesmos moldes. Aliás, não desisto de fazer tal livro (que está quase feito, aliás outra vez).

 

um NOTÍCIAS DA CULTURA que espero te regozijará bastante e servirá de aviso grave aos e às OKAPIS (3) de Lisboa e Horizontes.

 

uma PEQUENA CONTRIBUIÇÃO AO PROGRESSO DO MITO “DEUS-PÁTRIA-FAMÍLIA”, que já conheces de vista.

 

um ENSAIO DE SIMULAÇÃO DA DISLEXIA PROFUNDA, do Miguel de Castro Henriques.

 

um FERNANDO PESSOA POETA, que é a minha comunicação para a base naval de Portland. (Congresso sobre pensamento libertário – Universidade de Portland-Oregon)

 

Penso que este material sublime, junto ao teu do Livro das Cidades e a tradução do Rosemont, dará darão as duas páginas requeridas e mesmo alguns sobres para continuados noutras páginas. E julgo ser importante que saia junto, por ficarem tocados os vários pontos-estrêlas gerais. A menos que ainda possa ser pouco e se lhes possa dar mais. Acrescentarias das tuas lavras. Caso contrário, e sendo absolutamente exigido “diminuir”, proponho que a “vítima” seja o Rosemont e se lhe diminua o texto. (…)

 As comunicações eu Botas (4) parecem-me comprometidas outra vez. Assim que te a ti mando, para que por tua vez sejas tu a mandar, como no princípio. Por fim, achava preferível que a esta página ou páginas se não apuzesse nenhum título especial. Apareceriam no que são como são. “Voz Anarquista” já é mais do que bom. Mas como há textos que não saem assinados (aqui vão três) poder-se-ia pôr, num cantinho, “página” (ou páginas) coordenada(s) por Fulano e Fulano”.

 

Como vão as tuas endoenças? Eu mantenho algumas. E as bodas do Ceia (5) quando são? Recita-lhe durante a cerimónia “O Casamento do Céu e do Inferno” do William Blake!

 

  Abraços para ti, para a Flora, e para o nubente

 

                                                                Mário (manuscrito)

 

Enfim, diz que recebeste, e o que achas do recebido.

 

                                                                                Abril 7 (manuscrito)

 

Magníficos, os “exemplares especiais” que fizeste das nossas comunicações Portland!! (6) (manuscrito)

 

 

Notas - (*) Refere-se a NS, cujo nome civil é Francisco.

  

  1. Refere-se ao ensaísta americano Franklin Rosemont
  2. Jornal que se propusera publicar um suplemento literário orientado por MC e NS. Atarantados com a qualidade das colaborações (que não tinham nada a ver com “militâncias”) abandonaram a ideia.
  3. Referência irónica à ensaísta sul-americana Maria Lucia Lepecki, que na altura dispunha na praça lusa de bastante notoriedade.
  4. Refere-se ao pintor e poeta Mário Botas, nessa altura bastante doente.
  5. Refere-se ao confrade que escrevia textos sobre música moderna com o pseudónimo de A.J.Silverberg.
  6. Refere-se ao Congresso organizado pela Univ. de Portland (Lewis & Clark College), em que ambos apresentaram comunicações – MC sobre Fernando Pessoa, NS sobre as Religiões Reveladas.

 

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26 Set. 84

 

Mário:

 

   Apresso-me a escrever-te para te dizer que, com efeito, o papel do Rosemont é de facto de mais. É, pelo menos, um bom serviço prestado aos KGB e companhia, sob a sua capa anarcaqueirante.

   Não alinho nisso; seria bom compreender-se que, também eu, não concordo com a sua inclusão no Catálogo; o fantástico e o maravilhoso, sendo a inteligência e a poesia em funcionamento prático, não se compadecem com a vizinhança de pistolinhas de Chicago. Aquilo não é revolucionarismo, é politiquice às três matracadas.

   Creio que é urgente mandares dizer a Rosemont que a Exposição nada tem a ver com anarquistas federados ou só de chapelinho; para que tudo não se complique e comece a ficar macacal. E dê merda.

   Por outro lado, importa dizer de uma vez por todas: eu não sou anarquista, explicando: sou libertário porque surrealista. A minha estadia junto dos anarquistas ibéricos foi um equívoco provocado pelo facto de eu julgar que as pessoas que se dizem livres têm poesia na cabeça e no corpo, trocando: que são a própria poesia.

 Quem são a própria poesia são os Poetas. (…). Os outros podem sê-lo eventualmente, mas não se tem notado nada. São anarquistas de aviário ou pistoleiros puros e simples. A Anarquia, para mim, (como para António Maria Lisboa) teria de ser a poesia em movimento. Mas aqui (ou em todo o lado? Espero que não) é só a politiquice duma dada extrema. Que vão para a pôrra, definitivamente. O único anarquista verdadeiro é o homem criativo, o Poeta, que não se curva a cores e traquitanas. E disse, caraças!

  Concordo pois contigo e Carlos que importa levar a Rosemont as “actas de Niceia” (passe a piada!). O texto dele parece-me menos surrealista que exaltado. E a exaltação assim é meia-mantença de um outro conformismo. Prefiro os índios e os esquimós, mais que os americanos em (pseudo?) rebeldia. Tenho a ver com os Dogons (assim como com Basile Valentim) nada tenho a ver com Marx e Lenine. E pronto, punheta!

  Cago tanto na LSD como nos manifestos eleitoralistas. Tanto me urino nas bombas de compra ou de fabrico próprio como nos artefactos dos cabrões dos militares e estados-maiores. E acabei.

   Amanhã te mandarei o resto da tradução do Calas. Acredito no valor do livro dele se o dizes. Aliás estes textos dele não são maus, são só horrivelmente ingénuos (embora necessários, e além disso a inteligentsia de cá é tão estúpida que não irá dar por nada). Depois um dia falaremos disso.

  Os meus textos que apontas não estão publicados em nada a não ser as cópias fotocopiadas que te mandei – com excepção do Picasso.

  Agrada-me que tenhas colocado esses para publicação no catálogo.

  Talvez dentro deste tempo eu tenha dinheiro para editar um livro (que dizes a “Objectos inquietantes” ou outro?) Fala disto. Procura por favor uma tipografia que faça BARATO, PÁ. Davas capinha? Então vê lá isto. Estou um bocado melhor, depois falaremos de viva voz.

  E viva a Poesia, a revolta e a beleza sem amarras nenhumas.

  E vejam lá isso sobre o Rosemont. Se não, qualquer dia estão a fabricar bombas atómicas de bolso. O que é tão mau como o resto.

 

                        Abraço grande do    

                        Francisco  (nome de NS,  também manuscrito)

 

NOTA - : “Coincidindo com a Exposição "O fantástico e o maravilhoso", o diretor do quinzenário Voz anarquista (Francisco Quintal) aceitara a minha sugestão de ali ser dada a lume uma "página surrealista" organizada por nós (eu e Mário); assim sendo, juntámos colaboração; Franklin Rosemont, para além de um texto sobre o surrealismo destinado ao catálogo da Exposição, mandava um outro destinado eventualmente à dita página no qual, visto o anarquismo ser de esquerda (conforme a tradição…equivocada), se debruçava com extrema "militância esquerdista" sobre o momento português - manifestamente devido ao desconhecimento do que de fato sucedia em Portugal, onde os surrealistas eram marginalizados e fortemente hostilizados (bem como muita outra gente) pelo partido político que ali representava o império soviético, totalitário, e liderava as operações de conquista do poder em conformidade. 


King Crimson, In the wake of Poseidon

 



Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...