ns
Os poemas que se seguem, dedicados ao casal de artistas a que a carta de
Mário Cesariny - publicada na anterior postagem – alude, foram enviados pelo
seu autor aos dois pintores junto a uma carta a eles endereçada.
Segundo informação de MC foram os últimos poemas, dados em epístola, que
Arpad Szènes leu. Faleceria pouco tempo depois.
ARPAD SZÈNES
É tudo muito confuso
é tudo muito cruel
é tudo muito real
E de repente, eis a presença solene
de Deus e de um milhafre.
Um armário, mais abaixo
esconde tintas, vozes, corações
O mar espera a sua oportunidade
sem se fatigar
Chave solar, água perdida
entre um verde, um castanho, um
violeta
As nuvens estão a mais
ou a menos
mas para inventar deuses e matérias
enfim completas.
Em verdade nos dizem
que o destino é aqui que se encontra.
TRÍPTICO PARA MARIA HELENA VIEIRA DA
SILVA
Alguns traços podem matar, é o que
dizem.
Alguns traços são como cadeiras
sangrentas.
E na verdade eles erguem, podem
erguer, o tempo
e transformar-se (por exemplo) em
substâncias breves
comummente sagradas: um peixe
metralhado
uma lata de bolachas, um pequeno
dedal
três ou quatro rostos humanos
uma pirâmide da cidade santa do
Peru
ou, apenas, a imagem (real) da
tradição
para a qual um morto (usado ou
virgem) é tão belo como o destino
(vamos lá) a intervalos regulares.
Mas que sabem, que sabem (eles) da
floresta?
Eles, os do pessegueiro feito
plácido azeite
os da enfeitada confirmação
acessória, os da matéria que
provê as mais cegas necessidades de
ar (digamos) sete vezes por semana.
Terá de haver, é certo, uma razão
para tudo isto. Isto, serve
dizer: um deslumbrante
som, uma casa que fica sendo o
quase princípio das coisas
ou, por antítese, a velocidade
completa
dum sol rude e destroçado. Mas
com que alegria! a cor tem também o
seu lugar:
- a ilusão viva desta mão, um copo
(é exacto) azul
bem mais que aterrador, sendo como
que a espádua
duma figura marítima ou de
uma qualquer linguagem irredutível.
Tantos anos passei
sem conhecer esta cerâmica
inquietante. Tantos anos
que incluem aliás os meus anos
repletos de chapéus e segredos
e toda uma filosofia de amargura,
às vezes
uma realidade verdadeiramente (?)
retratada e
os longos passeios (doridos) pelas quentes,
sonolentas
existentes vilas falando
(suavemente), abrigos
que são para diferentes caminhos de
(in)submissão
a um incerto deus.
Um desejo afinal que a cidade
afastou, essa cidade
exaurida de medo.
E sei bem que não basta
que à palavra se junte outra
vontade
interrogada não pelo elemento
que tudo irá ligar: outra vontade
à semelhança de muita gente
(havida), de multidões talhadas
nesses riscos ardentes, geografia
altiva, vivos de ferocidade, vivos de
inumeráveis quartos, praças,
canaviais, inúmeráveis mares
onde um morto (de acaso?) se
multiplica pelos séculos inatingíveis.
(Depois incluídos no livro “Flauta de Pan”, capítulo “Caixa de Cores”)
Sem comentários:
Enviar um comentário