segunda-feira, 5 de julho de 2021

Dois poemas de Nicolau Saião

 


ns


   Os poemas que se seguem, dedicados ao casal de artistas a que a carta de Mário Cesariny - publicada na anterior postagem – alude, foram enviados pelo seu autor aos dois pintores junto a uma carta a eles endereçada.

   Segundo informação de MC foram os últimos poemas, dados em epístola, que Arpad Szènes leu. Faleceria pouco tempo depois.

 

 

ARPAD SZÈNES

 

É tudo muito confuso

é tudo muito cruel

é tudo muito real

 

E de repente, eis a presença solene

de Deus e de um milhafre.

 

Um armário, mais abaixo                         

esconde tintas, vozes, corações

 

O mar espera a sua oportunidade

sem se fatigar

 

Chave solar, água perdida

entre um verde, um castanho, um violeta

 

 As nuvens estão a mais

 ou a menos

 mas para inventar deuses e matérias

 enfim completas.

 

 Em verdade nos dizem

 que o destino é aqui que se encontra.

 

 

TRÍPTICO PARA MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA

 

Alguns traços podem matar, é o que dizem.

Alguns traços são como cadeiras sangrentas.

E na verdade eles erguem, podem erguer, o tempo

e transformar-se (por exemplo) em substâncias breves

comummente sagradas: um peixe metralhado

uma lata de bolachas, um pequeno dedal

três ou quatro rostos humanos

uma pirâmide da cidade santa do Peru

ou, apenas, a imagem (real) da tradição

para a qual um morto (usado ou virgem) é tão belo como o destino

(vamos lá) a intervalos regulares.

 

Mas que sabem, que sabem (eles) da floresta?

Eles, os do pessegueiro feito plácido azeite

os da enfeitada confirmação acessória, os da matéria que

provê as mais cegas necessidades de

ar (digamos) sete vezes por semana.

Terá de haver, é certo, uma razão

para tudo isto. Isto, serve dizer:  um deslumbrante

som, uma casa que fica sendo o quase princípio das coisas

ou, por antítese, a velocidade completa

dum sol rude e destroçado. Mas

com que alegria! a cor tem também o seu lugar:

- a ilusão viva desta mão, um copo (é exacto) azul

bem mais que aterrador, sendo como que a espádua

duma figura marítima ou de

uma qualquer linguagem irredutível.

 

Tantos anos passei

sem conhecer esta cerâmica inquietante. Tantos anos

que incluem aliás os meus anos repletos de chapéus e segredos

e toda uma filosofia de amargura, às vezes

uma realidade verdadeiramente (?) retratada e

 

os longos passeios (doridos) pelas quentes, sonolentas

existentes vilas falando (suavemente), abrigos

que são para diferentes caminhos de (in)submissão

a um incerto deus.

 

Um desejo afinal que a cidade afastou, essa cidade

exaurida de medo.

 

E sei bem que não basta

que à palavra se junte outra vontade

interrogada não pelo elemento

que tudo irá ligar:  outra vontade

à semelhança de muita gente (havida), de multidões talhadas

nesses riscos ardentes, geografia altiva, vivos de ferocidade, vivos de

inumeráveis quartos, praças, canaviais, inúmeráveis mares

 

 

onde um morto (de acaso?) se multiplica pelos séculos inatingíveis.

 

(Depois incluídos no livro “Flauta de Pan”, capítulo “Caixa de Cores”)


Sem comentários:

Enviar um comentário

Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...