Manuel D'Assumpção, O Último bailado (1955)
D’ASSUMPÇÃO & SUAS EVOCAÇÕES SECRETAS
A quem servem as evocações? Em certas alturas, a nós mesmos.
Talvez a um que outro, recheado de minutos de dúvida sobre a face da sociedade.
A gentes projectadas num futuro incerto, possivelmente, viajando entre
recordações e utopias. Entre os rochedos da memória provável.
A certas horas, rodamos em torno das
recordações como um lobo em volta da presa. É a nossa própria carne que, como
num espelho, se faz significado, matéria afastada que pouco a pouco se ilumina.
Se para se escrever uma página, como referia Rilke no seu “Malte Laurids Brigge”, é preciso a frequentação de muitas ruas,
muitos rostos, funerais e nascimentos, deambulações ao acaso e a cor quotidiana
da vida e da morte nos olhos de nasciturnos, grávidas, simples seres solares e
lunares que subitamente ficam presos à rota que vai do princípio ao fim – é
preciso igualmente a decantação da memória para que ao termo, no cadinho que
são os nossos olhos brilhando na obscuridade, num quarto vazio, a pouco e pouco
as sementes auríferas se separem das escórias e palpitem, ainda que nuas e
frágeis, ainda que em solidão singularmente solene. Crê-se que o futuro nos
poderá ver como num espelho iluminado, devolvidos à nossa verdadeira imagem;
mas a matéria do futuro é incerta, vaga, na sua superfície criam-se como que
buracos negros que não é possível preencher: ainda estão e estarão por muitos
anos, de pé, as aparelhagens pseudo-sociais, constrangedoras e inúteis, para
desequilibradamente acantonarem neste local, naqueloutro, em outro ainda, as
verdadeiras faces dos que, na sua passagem pela Vida, criaram mundos de
liberdade que a “realidade societária”, informe e espúria, não quer consentir.
D’Assumpção foi sempre para mim uma espécie
de presença ausente. Habitante de planetas longínquos e misteriosos ou então de
lugares de ao pé da porta que contudo, como na estória de Jean Ray ou no “Erich
Zann” de Lovecraft, por mais que se tente não se conseguem reencontrar, ele
decerto era alheio ao movimento de muitos outros seres que eventualmente se
cruzavam com ele ou com a sua aparência de movimento. Digo bem: porque
frequentemente a nossa deslocação real, ao longo do tempo que nos foi dado
viver, se faz virtualmente, havendo pontos – como nas fábulas – onde
verdadeiramente a nossa figura se fixa, permanece nos olhos dos que nos amaram
ou algo esperaram de nós sem que disso tivessem consciência, envoltos numa
razão que ultrapassa as horas e os quilômetros. Por exemplo e ao acaso: para
Cézanne – Aix-en-Provence; para Mário de Sá-Carneiro – Paris; para H. P.
Lovecraft – Providence; para D’Assumpção – Portalegre – Paris – Lisboa (e a
inversa também é verdadeira).
No fim da infância ou no princípio da
adolescência (tocam-se, sendo todavia, inapelavelmente, mundos diferentes) em
certa tarde o meu pai chegou a casa e, no meio da conversa, contou-nos que
nesse dia fora com o mecânico (era na altura empregado no stand de meu padrinho
João Vinte-e-Um, que negociava automóveis, motas, camiões) buscar uma
motocicleta a casa de um cliente; de acordo com o que relatou, ao que lembro,
fora o próprio cliente que a entregara – por não poder pagar as letras. “É o filho do Sr. Rosiel, coitado…” disse
meu pai sinceramente constrangido. “Aquele
que pinta”, referiu ainda a uma pergunta de minha Mãe. E pronto, foi tudo,
conversa de acaso perdida depois entre o resto dos minutos.
Dias depois, entrei no “Facha”; o stand do
meu padrinho ficava mesmo em frente, por baixo da “Cegrel” e em direcção ao
“Rossio” e era o Café que me ficava mais à mão para os reconfortantes
amendoins, rebuçados escapados à catástrofe que costumavam ser as finanças
adolescentes… Lembro-me que numa mesa perto da porta um indivíduo de fato
azulado, um pouco inclinado sobre o tampo, se entregava a qualquer actividade
pouco usual. Quando tornei a passar o sujeito acendia um cigarro; o busto,
erecto, deixava entrever uma folha de papel. Soprou o fumo, tirando com a mão
esquerda um pedacito de tabaco que se colara nos lábios; nessa altura, o
empregado perguntou: “Sr. D’Assumpção,
quer em copo ou em chávena?” Referia-se à “bica”; naquela altura havia
pessoas que preferiam bebê-la em recipientes de vidro e não na habitual chávena
branca, de loiça; hábito que se radicava na aprendizagem de que (segundo
constava) os micróbios frequentavam menos os primeiros…
Na rua, pensei: “Este é que é o tal da mota…”. Mas o que me ficara nos olhos, pelo
traçado inusual, fôra o desenho. Onde se encontrará hoje, depois de por um
momento se ter cruzado com o garoto que eu era então?
Quando cheguei ao “Stand” – (naqueles anos,
como se sabe, tudo tem um halo de mistério, aliás a verdadeira face do mundo;
depois perde-se pouco a pouco a capacidade de nos maravilharmos) – na ocasião
propícia disse a meu Pai que vira o sujeito da mota no “Facha”, a desenhar. Ele
retorquiu que o filho do Sr. Rosiel tinha estado lá fora, parece que em França,
fazia quadros, mas estivera doente ou coisa que o valha. “Tem estado agora cá, não sei se para trabalhar com o pai…”,
concluiu.
O Sr. Rosiel conhecia eu bem (viria a
conhecê-lo bastante melhor, mantendo mesmo com ele largas conversas iniciadas
no estabelecimento de electrodomésticos “Custódio Silva”, pela noitinha,
enquanto – umas vezes por outras – um que outro cívico, obedecendo a ordens,
fingia que olhava os aparelhos expostos na montra, vigiando a bem da Nação os
perigosos dois-ou-três subversivos que ali, mefistofelicamente, trocavam
opiniões sobre gente tão perigosa como Faulkner, Aquilino, Tolstoi, Van Gogh…).
Como alguns se recordarão, tinha um “atelier” de fotografia à esquina por cima
da loja “Hermínio Castro”; era ele que me plasmava em retratos tipo passe para
diversas utilizações: para tias devotadas e madrinhas amantíssimas, com um
xi-coração repenicado; para as cadernetas da Escola; para os usos e costumes de
molduras sobre as cómodas, depois excursionando por feéricos álbuns, hoje
envoltos em nostalgia, onde os primos, cunhados, avós e tios nos contemplam de
juntura com faces de amigos que já não sabemos bem quem sejam. Certo dia, nessa
loja, vi encostada à parede uma pintura onde os azuis e os vermelhos, os rosas
e os verdes-maçã criavam uma estranha sinfonia. “É do meu filho…” respondeu o Sr. Rosiel à pergunta que timidamente
lhe fizera. “Gostas? Vê lá tu que
reparaste!”. Ficara contente. Era aliás uma pessoa extremamente atenciosa,
cuja bonomia recordo por entre outras aparências de depois, sempre com o seu
cigarrinho que nervosamente chupava com todo o ímpeto de velho fumador. De fato
escuro, magro, tinha semelhanças com o filho. Mais tarde, conheceria o outro
filho – dar-me-ia um pouco também com ele – este sobre o fornido de carnes, só
tendo em comum talvez o olhar agudo. Como era fotógrafo, encontrava-se comigo frequentemente
em eventos que eu ia cobrir jornalisticamente como redactor dum velho periódico
local.
Mas voltemos a D’Assumpção. Tanto quanto o
permite o rodopiar das palavras, ora aqui ora ali.
Tempos mais tarde, entrei na época do ping-pong e do bilhar. Depois das aulas,
a dadas horas, frequentavam-se as salas da “Mocidade Portuguesa” (onde os
preços eram mais em conta), do “Central”, a sala traseira do “Facha”, o salão
do Clube de Futebol do Alentejo, da FNAT (onde de noite, às vezes, havia uns teatros
e se podia ver televisão), do “Alentejano” e do “Plátano”; quando estes estavam
ocupados ia-se também à sala do “Estrela”, na altura num primeiro andar frente
à Casa Umbelino, mas era lugar acanhado onde os tacos batiam por vezes na
parede; o “Plátano” da época era também frequentado por partidários do dominó,
da bisca lambida… Na parede, enquanto efectuávamos as carambolas, os efeitos,
um que outro pique mais desenvolto e promissor, um quadro bastante grande
servia para descansarmos o olhar vitorioso ou derrotado: o célebre quadro de
D’Assumpção que, segundo ouvi relatar, seria depois vendido pelo proprietário a
uma galeria do Porto, com bom e legítimo proveito.
Na minha recordação o quadro aparece-me
enevoado: sei que havia um horizonte, árvores, - mas o todo da obra
desapareceu-me para reinos inalcançáveis. E quantas vezes o contemplei, umas
vezes apreciando-o em miradas sucessivas, outras num relance, assoberbado pelas
excessivas carambolas do adversário! Mas o mesmo sucede com rostos, acontecimentos
e coisas que connosco se cruzam na nossa navegação através do tempo, uma vez
que as sedimentações se dão incontrolavelmente, por uma mecânica subtil que ora
nos surpreende ora nos sufoca – se sabemos conservar o nosso coração de
crianças.
Mais tarde, já adulto, soube de D’Assumpção
de maneira diferente: algumas vezes falei dele com Herberto Hélder no “Monte
Carlo”, nos meus tempos de tertúlia lisboeta logo ao voltar da Guiné, depois de
com outro antigo companheiro ter entrado em contacto com a gente do grupo de
revista “Grifo”; algumas vezes escrevi sobre ele, sobre a sua pintura; certo
dia, como que por acaso, soube da sua morte – sobre a qual não me vou debruçar;
tomei a iniciativa de expor quadros dele, integrados numa colectiva em que além
de obras diversas de autores de Portalegre havia também serigrafias de Mário de
Oliveira e óleos de Cesariny (a “Geração Sibilina”, que pertence hoje ao acervo
do Museu local, por minha decisão, pois encaminhei para ali os quadros que o
Mário oferecera a Portalegre, ficando ao meu alvedrio a entidade que os devia
receber – secção cultural do Clube de Futebol do Alentejo? Museu Municipal?
Optei por este último, por me parecer melhor
apetrechado para os expôr. E assim foi, com efeito: três anos depois já lá os
tinha nas paredes, assim como os outros… Foi a última notícia que ao meu
emprego dessa época me veio dar o Manuel Mourato de boa memória).
Aqueles quadros, hoje patentes no Museu,
estão lá por uma razão: fotografados por Joaquim Ceia Trindade (A.J.Silverberg)
por minha solicitação, as fotos foram remetidas ao marchand João Pinto de
Figueiredo, que por intermédio de Mário Cesariny eu prevenira de que existiam;
embora ele não estivesse, na altura, interessado na sua aquisição, sabia do
eventual interesse de um apreciador do Porto; perguntou-me por telefone se os
quadros estavam assinados. Eu não vira assinatura (saberia depois, pelo seu
cunhado Sr. Valente, também da minha lidação, que o estavam nas costas, que as
molduras interditavam) e assim lho disse, embora de acordo com o mesmo Valente
um perito, que os analisara, atestasse que eram obras de D’Assumpção sem
qualquer dúvida. Devido a isso – o que é compreensível nestes negócios – Pinto
de Figueiredo declinou mais interesse. E, assim, foram posteriormente adquiridos
pelo Museu local por um preço bastante razoável (preço de conterrâneo); em
1981, na exposição “Três Poetas do Surrealismo – A. M. Lisboa, M. H. Leiria e
Pedro Oom”, era um desenho aguarelado de D’Assumpção que constituía a face do
convite endereçado pela Biblioteca Nacional, entidade que a patenteava; e na
mostra de 1984 “Surrealismo e Arte Fantástica”, organizada por Cesariny e
C.Martins com a minha colaboração (infelizmente de longe e vendo com certa
angústia o quanto ficaram assoberbados por tarefas inúmeras) no Teatro Ibérico
e na Sociedade Nacional de Belas Artes, outro desenho de D’Assumpção aparecia
no catálogo-livro em jeito de homenagem, sendo igualmente a partir de um óleo
seu que o cartaz e o desdobrável foram iluminados.
Entre uma e outra idade houve contactos,
reflexões, momentos e olhares que a escrita memorialista não atinge: pertencem
ao céu e ao inferno do poeta, daquele que evoca. São imarcescíveis e
impossíveis de fixar. A sua geografia é interior, pertence a lugares inabordáveis.
Mais terra a terra, saudavelmente perversa e
envolta em roupagens quotidianas, aqui fica uma pergunta com que termino estas
breves e leves, difusas recordações: como é possível que depois de tanto tempo
após o seu falecimento, tendo o Pintor atingido tal notoriedade pública (ele
que sempre dispôs da estatura que lhe era própria, mas que foi solapada num
gesto em que a terra portalegrense, ainda controlada por medíocres e onzeneiros
sem perfil, segue sendo fértil) não se tenha ainda efectuado em Portalegre uma
retrospectiva ampla, séria e fundamentada de D’Assumpção? Como é possível que
os seus conterrâneos continuem afastados da contemplação conveniente da Obra de
um dos mais originais e suscitadores pintores modernos lusitanos?
Aqui fica, em terreno vago, a pergunta. E o
seu eco gostaria que se projectasse, justa e acusadoramente, além dos rochedos
que o proporcionam, rochedos que não serão para sempre as fragas da Serra da
Penha em que alguns querem encerrar as consciências livres.
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