O papá que veio do Leste (120cm x 60cm) – MC, quadro dedicado a ns
DUAS CARTAS
De Mário Cesariny e ns
A Francisco da Gália (*) envia Mário Ibericus
Saúde.
A morada da Maria
Helena(Vieira da Silva) é 34, R. l’Abbé Carton, Paris 14 ème. Deves enviar –
istové – o nome que é de pores no sobrescrito, é VIEIRA e SZÈNES. Vale.
Cá veio a tua
carta com a tua tradução do Rosemont(1)que é a beleza, nenhum cheiro a tradução, e o
teu poema de “O Livro das Cidades” e respectas duas colagens. Tudo do fino.
Segue nesta o que a isso se junta para a Voz Anarquista (2).
De minha parte
vão e estão:
o LUNÁRIO DO
SURREALISMO PARA 1990. É uma secção a ser continuada e cujas características
apanharás à primeira leitura. E é um presente bom que faço aos teus e nossos
amigos porque título assim não vem todos os dias e eu tinha-o de lado para a
edição de um livro grande gizado nos mesmos moldes. Aliás, não desisto de fazer
tal livro (que está quase feito, aliás outra vez).
um NOTÍCIAS DA
CULTURA que espero te regozijará bastante e servirá de aviso grave aos e às
OKAPIS (3) de Lisboa e Horizontes.
uma PEQUENA
CONTRIBUIÇÃO AO PROGRESSO DO MITO “DEUS-PÁTRIA-FAMÍLIA”, que já conheces de
vista.
um ENSAIO DE SIMULAÇÃO
DA DISLEXIA PROFUNDA, do Miguel de Castro Henriques.
um FERNANDO
PESSOA POETA, que é a minha comunicação para a base naval de Portland. (Congresso sobre pensamento libertário –
Universidade de Portland-Oregon)
Penso que este
material sublime, junto ao teu do Livro das Cidades e a tradução do Rosemont,
dará darão as duas páginas requeridas e mesmo alguns sobres para continuados
noutras páginas. E julgo ser importante que saia junto, por ficarem tocados os
vários pontos-estrêlas gerais. A menos que ainda possa ser pouco e se
lhes possa dar mais. Acrescentarias das tuas lavras. Caso contrário, e
sendo absolutamente exigido “diminuir”, proponho que a “vítima” seja o Rosemont
e se lhe diminua o texto. (…)
As comunicações eu Botas (4) parecem-me
comprometidas outra vez. Assim que te a ti mando, para que por tua vez sejas tu
a mandar, como no princípio. Por fim, achava preferível que a esta página ou
páginas se não apuzesse nenhum título especial. Apareceriam no que são como
são. “Voz Anarquista” já é mais do que bom. Mas como há textos que não saem
assinados (aqui vão três) poder-se-ia pôr, num cantinho, “página” (ou páginas)
coordenada(s) por Fulano e Fulano”.
Como vão as tuas
endoenças? Eu mantenho algumas. E as bodas do Ceia (5) quando são?
Recita-lhe durante a cerimónia “O Casamento do Céu e do Inferno” do William
Blake!
Abraços para ti, para a Flora, e para o
nubente
Mário (manuscrito)
Enfim, diz que
recebeste, e o que achas do recebido.
Abril
7 (manuscrito)
Magníficos, os
“exemplares especiais” que fizeste das nossas comunicações Portland!! (6) (manuscrito)
Notas - (*) Refere-se a
NS, cujo nome civil é Francisco.
- Refere-se ao ensaísta americano Franklin Rosemont
- Jornal que se propusera publicar um suplemento
literário orientado por MC e NS. Atarantados com a qualidade das
colaborações (que não tinham nada a ver com “militâncias”) abandonaram a ideia.
- Referência irónica à ensaísta sul-americana Maria
Lucia Lepecki, que na altura dispunha na praça lusa de bastante
notoriedade.
- Refere-se ao pintor e poeta Mário Botas, nessa altura
bastante doente.
- Refere-se ao confrade que escrevia textos sobre música
moderna com o pseudónimo de A.J.Silverberg.
- Refere-se ao
Congresso organizado pela Univ. de Portland (Lewis & Clark College),
em que ambos apresentaram comunicações – MC sobre Fernando Pessoa, NS
sobre as Religiões Reveladas.
***
26 Set. 84
Mário:
Apresso-me a escrever-te para te dizer que,
com efeito, o papel do Rosemont é de facto de mais. É, pelo menos, um bom
serviço prestado aos KGB e companhia, sob a sua capa anarcaqueirante.
Não alinho
nisso; seria bom compreender-se que, também eu, não concordo com a sua inclusão
no Catálogo; o fantástico e o maravilhoso, sendo a inteligência e a poesia em
funcionamento prático, não se compadecem com a vizinhança de pistolinhas de
Chicago. Aquilo não é revolucionarismo, é politiquice às três matracadas.
Creio que é urgente mandares dizer a
Rosemont que a Exposição nada tem a ver com anarquistas federados ou só de
chapelinho; para que tudo não se complique e comece a ficar macacal. E dê merda.
Por outro lado, importa dizer de uma vez por
todas: eu não sou anarquista, explicando: sou
libertário porque surrealista. A minha estadia junto dos anarquistas
ibéricos foi um equívoco provocado pelo facto de eu julgar que as pessoas que
se dizem livres têm poesia na cabeça e no corpo, trocando: que são a própria
poesia.
Quem são a própria poesia são os Poetas. (…).
Os outros podem sê-lo eventualmente, mas não se tem notado nada. São
anarquistas de aviário ou pistoleiros puros e simples. A Anarquia, para mim, (como
para António Maria Lisboa) teria de ser a poesia
Concordo pois contigo e Carlos que importa
levar a Rosemont as “actas de Niceia” (passe a piada!). O texto dele parece-me
menos surrealista que exaltado. E a exaltação assim é meia-mantença de um outro
conformismo. Prefiro os índios e os esquimós, mais que os americanos em
(pseudo?) rebeldia. Tenho a ver com os Dogons (assim como com Basile Valentim)
nada tenho a ver com Marx e Lenine. E pronto, punheta!
Cago
tanto na LSD como nos manifestos eleitoralistas. Tanto me urino nas bombas de
compra ou de fabrico próprio como nos artefactos dos cabrões dos militares e
estados-maiores. E acabei.
Amanhã te mandarei o resto da tradução do
Calas. Acredito no valor do livro dele se o dizes. Aliás estes textos dele não
são maus, são só horrivelmente ingénuos (embora necessários, e além disso a inteligentsia de cá é tão estúpida que
não irá dar por nada). Depois um dia falaremos disso.
Os meus textos que apontas não estão
publicados em nada a não ser as cópias fotocopiadas que te mandei – com
excepção do Picasso.
Agrada-me que tenhas colocado esses para
publicação no catálogo.
Talvez dentro deste tempo eu tenha dinheiro
para editar um livro (que dizes a “Objectos inquietantes” ou outro?) Fala disto.
Procura por favor uma tipografia que faça BARATO, PÁ. Davas capinha? Então vê
lá isto. Estou um bocado melhor, depois falaremos de viva voz.
E viva a Poesia, a revolta e a beleza sem
amarras nenhumas.
E vejam
lá isso sobre o Rosemont. Se não, qualquer dia estão a fabricar bombas atómicas
de bolso. O que é tão mau como o resto.
Abraço grande do
Francisco (nome
de NS, também manuscrito)
NOTA - : “Coincidindo com a Exposição "O
fantástico e o maravilhoso", o diretor do quinzenário Voz anarquista (Francisco Quintal) aceitara a minha sugestão de ali
ser dada a lume uma "página surrealista" organizada por nós (eu e
Mário); assim sendo, juntámos colaboração; Franklin Rosemont, para além de um
texto sobre o surrealismo destinado ao catálogo da Exposição, mandava um outro
destinado eventualmente à dita página
no qual, visto o anarquismo ser de
esquerda (conforme a tradição…equivocada),
se debruçava com extrema "militância esquerdista" sobre o momento
português - manifestamente devido ao desconhecimento do que de fato sucedia em
Portugal, onde os surrealistas eram marginalizados e fortemente hostilizados
(bem como muita outra gente) pelo partido político que ali representava o
império soviético, totalitário, e liderava as operações de conquista do poder
em conformidade.
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