Um trio
de quatro
Sempre
que venho a Portugal tenho por hábito passar pela cidade que se acomoda nas
faldas de São Mamede. Pelo enquadramento do lugar, mas também pelos amigos que
lá tenho, “velhos” companheiros de muitos anos desde que, primeiro na Orada e
depois em Portalegre, fiz por ser um observador atento das letras e artes: o
Jorge Seminário, o Cachuda, o Bartolomeu dos anzóis que nunca falhava uma
pescaria na barragem da Póvoa ou em Montargil, o Américo que vendia leite bem
cedo, de manhãzinha quando éramos estudantes, o Perua…
Muitos
deles partiram para outras paragens, algumas de tal modo afastadas que nunca
mais voltaram (falecidos). Outros mudaram de aparência e quase que me custa
reconhecê-los. Quem me vai dando notícias intermitentes é este amigo que, com
outros amigos recentes, mais uma vez “entrevistei” para não me destreinar.
Em
volta duma mesa bem composta, fomos trocando ideias. E o resultado aqui está.
Manuel Caldeira/Joaquim
Simões/Jorge Perestrelo
Joaquim Simões (JS) – Antes de começarmos propriamente nas artes & letras,
deixe-me perguntar-lhe porque é que nunca procurou ir viver num meio maior e
potencialmente mais favorável a um artista. Foram acasos da vida ou foi
deliberado?
NS – Acho que foi uma mistura dos dois. Aí pelos fins de 70 ainda pensei em
arranjar trabalho na capital. Para ser mais exacto na região do Montijo pois
tinha lá pessoas amigas e familiares perto de Lisboa. O ambiente societário
portalegrense era sufocante, estava em sedimentação uma espécie de tomada
do poder por diversos sectores de oportunistas com cobertura política
que beiravam, no mínimo, a criação de verdadeiras bolsas de arrivismo e mesmo
de corrupção ética apoiadas numa intricada rede de compadrios e interesses que
tinham ficado do regime anterior e que, habilmente, tinham conseguido camuflar
enquanto durou a confusão do PREC.
Mas o contacto pessoal e artístico com o
Mário Cesariny e os seus habituais companheiros e amigos, dissuadiram-me. Eles
aconselharam-me e ainda bem que os ouvi, a manter-me por aqui e deixar passar o
pior da “trovoada”, pois as coisas na grande Lisboa não iam melhores, por vezes
ainda eram piores. De modo que me fui aguentando no emprego que tinha
conseguido arranjar depois de ter sido “saneado”, como então se dizia, de
chefe-de-redacção e administrador-delegado do semanário “A Rabeca”, por me opor
à censura e outros manejos dos indivíduos que haviam tomado conta do periódico
e que estavam ligados ao PC e ao MDP. Estive uns tempos desempregado e com
subsídio da Segurança Social, pois não pudera voltar à Meteorologia.
Foi por essa altura que sujeitos de certos
meios políticos, aliás com repúdio de outros e da população, que sempre me
estimou, tentaram dar-me como reaccionário e, mesmo, como “bufo da Pide”, numa
manobra típica dessa gente que nunca olhou a meios para atingir os seus fins.
Curiosamente foi Álvaro Cunhal quem, correspondendo a um “desabafo” do Dr.
Feliciano Falcão, comunista portalegrense histórico e amigo de José Régio, teria
dado indicação aos energúmenos daqui para me deixarem em paz. Feliciano Falcão
merecia-lhe todo o crédito e se era meu amigo era porque eu não devia ser tipo
“a abater”… Outros, antigos fascistas reciclados em “democratas”, por seu turno
tentavam dar-me como perigoso subversivo, quiseram a todo o custo colar-me o
rótulo de anarquista e de ateu, chegaram mesmo a enviar recados ao director do
jornal onde eu costumava escrever, “O Distrito de Portalegre” (depois arruinado
por gente sem merecimento), para que me denunciasse ao bispo!
Depois o tempo foi correndo, o meu
quotidiano foi-se consolidando, os filhos estavam a crescer e a minha mulher
foi progredindo na sua carreira e as coisas como de resto no país foram
mudando, de modo que nunca mais pensei em abalar de cá.
Posteriormente ainda tive alguns
problemas, nomeadamente graves actos de difamação veiculados por um periódico
local, os quais foram resolvidos em tribunal de relação, pois no de primeira
instância quiseram macular o caso numa jogada típica de uma região com
leis tendenciais.
Mas o meu caminho estava traçado, tanto
por cá como através de incursões pelo estrangeiro que os invejosos e medíocres
locais já não conseguiram entravar decisivamente, ainda que a marginalização,
até ilegal, tenha continuado com a complacência de certas autoridades.
Mas já não tem verdadeiro efeito no meu
dia-a-dia, ainda que certos intriguistas, um dos quais um comprovado burlão que
desmascarei um dia, tenham tentado sujar-me junto do povo lagóia.
Manuel Caldeira (MC)
- Neste momento como vês a literatura, em
Portugal e lá fora?
NS – Tenho, em parte, uma certa dificuldade em te responder. Por
estranho que pareça creio que estou melhor informado sobre a escrita que se faz
lá fora do que a que existe portas adentro. Pela simples razão de que me é mais
favorável comprar livros por preço razoável em Espanha ou nos leilões da Net…E
aí há mais livros de literatura estrangeira que nacional. Daí que, em termos de
presença no terreno me sinta ligeiramente incapaz de saber com
pormenor, por ter lido, o que cá se vai escrevendo.
Dito isto e com todo o respeito real, acho
que a literatura portuguesa continua a ter, no geral, um certo cenário de
existência visando a “melhoria de vida”, a “ascensão a lugar de
relevo” de muitos dos seus protagonistas. A meu ver há gente que escreve
porque isso é uma inevitabilidade propiciada pelo crescimento da alfebetização…
Estão condenados a escrever assim como a melhoria de vida em
terras pequenas condenou outros a tomar banho todos os
dias…Basta ver-se o espaço internáutico… Proliferaram os blogues, a
literatura desses meios, com gente que depois punha em letra de forma o que
congeminara nesses espaços e que com terrível frequência era dos continentes da
flatulência ou da pura pedantice suavemente acéfala. Pelo meio, felizmente,
havia e há coisas de merecimento, mas o saldo é maioritariamente de
fugir…
Creio que tal corresponde a uma crise de
crescimento num país durante muito tempo analfabetizado. Não devemos admirar-nos.
Portanto, se a literatura corresponde a
algo que de facto está além da busca de “notoriedade qualificada”, de
incontornável como parece dever ser o seu leit-motiv interior,
a pouco e pouco as “public relations” irão perdendo a partida e encarquilhando-se
até definharem com a subida do carácter dos operadores aventurosos.
Tenho lido alguns livros que me
satisfazem: lembro o livro de viagens “Baía dos Tigres” por exemplo, os
poemários “Chão de papel” e “Poemas de Caravaggio” (incluindo o prefácio), um
livro de memórias “Bilhete de identidade”, um que outro ensaio histórico ou
literário…
Da escrita estrangeira, que como disse
conheço melhor, salientaria livros como “El candidato de Dios”, de Enrique
Moriel, que vem na sequencia de um must anterior, “La ciudad sin
tiempo”, obras de Martin Dugard, de Philippe Claudel, de Cormac Mcarthy,
Saul Bellow, Claudio Magris, mesmo os thrillers bem
estruturados de Minette Walters, Val McDermid, a redescoberta dum grande senhor
solapado durante demasiado tempo, John Franklin Bardin…
Em suma, acho que a escrita e por extensão
a literatura, continua a aguentar-se bem, a despeito da extrema comercialização
(seja em loja ou nas Feiras) que tenta despejar-se-lhe em cima e que muitos dos
seus cultores facilitam criando frequentemente “génios por via
administrativa”.
JS – Na sua opinião, o que representa a obra para o seu autor?
NS – Depende. No caso de haver uma verdadeira paixão,
que nos melhores casos é sempre uma paixão caldeada pela razão do fazer e
do navegar, será uma real aventura de viver e de erguer alguns
minutos miraculosos. No meu caso pessoal, à medida que o tempo passa sinto uma
espécie de surpresa, de estupefacção por haver esta coisa de escrever, de se
construírem estórias, encenações, raciocínios postos em letra… É uma espécie de
humilde encantamento. Para alguns outros será talvez uma maneira de viajarem
por dentro, de se baterem contra a tragédia da vida breve, do tempus
fugit. Ou, porque não, de erguerem com galhardia varonil o seu desafio aos
deuses que sempre quiseram fazer do Homem não mais que um servidor atemorizado.
Jorge Perestrelo
(JP) - O quotidiano do homem e do
escritor. Como se posicionam?
NS – No meu caso, tem dias…
Em certas alturas sinto-me mais
suscitado pelos acontecimentos vulgares, digamos. Há em certas coisas
comezinhas ou aparentemente banais um poderoso apelo que me interessa
sobremaneira. A passagem duma determinada pessoa pela rua, o que sucedeu nesta
ou naquela circunstancias, mesmo casos da habitualmente triste e suja actualidade
política, momentos da existência pessoal – uma iguaria, o envergar dum traje ou
saber-se de que maneira e com que cadência as árvores perto da minha casa
ficaram sem folhas à medida que o tempo invernoso chegou – prendem a minha
atenção duma maneira profunda.
Noutras, é o mistério da escrita e da
leitura que me ocupam todos os minutos do dia. E faço questão de referir que se
sou, como dizes, escritor, é só na medida em que escrevo (risos).
Profissionalmente nunca ganhei praticamente nada com as letras. E tem sido com
dificuldade, muitas vezes só devido ao apreço e afecto de confrades amigos, que
os meus livros têm sido publicados. Em parte, dou a lume o que faço também movido
por uma razão de tipo ingénuo: quando fui muito perseguido criei a ideia de
que, se tivesse uma certa notoriedade mediante as letras, talvez não me
perseguissem tanto…Acreditava que isso de ser escritor me podia defender! Hoje,
que já tenho como se costuma dizer “o rabo pelado”, sei perfeitamente
que se o Poder decidir destroçar-nos pode fazê-lo sem entraves, seja-se ou
não notável… Vivemos, não o esqueçamos, numa “sociedade criminal”
do tipo democracia mitigada ou tendencial (tecnicamente, de
enfoque cripto-fascista) o que aliás tentam não se veja, não se fale, não se
ouça, como no célebre apólogo dos macacos. A nossa é maioritariamente uma
sociedade hipócrita e cruel, onde a caridadezinha, por exemplo, serve para a
ICAR efectuar boas performances de cariz propagandístico (risos).
Mas não me sinto desiludido, pelo
contrário conservo um grande apetite de viver e a cada momento me sinto
gratificado por me ter sido, pelas potestades, concedido existir e contemplar o
mundo das coisas e da natureza, que são admiráveis.
JS - A obra constitui-se como uma criação ou uma tradução?
NS – Uma criação - que a meu ver é a tradução de estados existenciais, e
nessa medida fundacionais, da pessoa a quem se colocam interrogações,
perplexidades e quimeras. As quais, num indivíduo que tem como instrumento
primacial as palavras, assumem o carácter de escrita ou, noutros casos
paralelos e semelhantes mas de ordem diferente, desaguam na pintura, na música,
etc. Para mim o homo faber é no estádio mais elevado um hacedor,
um artesão de tipo superior ou, se quisermos, um artista na plena acepção da
palavra.
JP - Recordações e memórias. São partes de um todo ou momentos de acaso?
NS – Se bem compreendo a tua pergunta,
eis a resposta possível: com o avançar da idade e dando-se o facto de que tenho
cada vez mais nostalgias, que aliás assumo porque cada vez estou mais do outro
lado da vida, são já partes de um todo que procuro preservar como um tesouro.
Esses momentos de acaso, para empregar a tua expressão, existiram
sem que por vezes procurássemos que existissem, são frequentemente recordações,
“instantâneos” como se diz na profissão de fotógrafo, que nos visitam sem que
os possamos controlar. Em grande medida é daí que a poesia parte, desse
território que visitámos um dia e que de súbito desapareceu sem que nos
déssemos muita conta.
MC - Qual pensas que é o lugar do autor no mundo actual?
NS – Enquanto pessoa é muitas vezes supranumerário, dependendo do país ou
mesmo do continente onde está. Dito isto, é em certos sítios um mero ornamento,
facilite ou não facilite o facto.
Falando sem irmos a esses detalhes, penso
que é um intruso que as classes diversas se habituaram a suportar, por um lado,
a admirar por outro se em torno dele houver um trabalho de marketing bem
artilhado. Os tempos são diferentes de, por exemplo, os meados do século
passado, quando devido a factores bem determinados o Autor tinha um peso
inegável no imaginário e até no meio social dos homens desse tempo. Hoje, se
não tiver o peso que lhe é conseguido pela publicidade, a proximidade com o
poder, com os mídias e até com os meios argentários, o autor tem menos lugar
social que uma vedeta futebolística, cinematográfica ou, inclusive, do
jet set semi-pornográfico.
A nossa sociedade, nomeadamente num país
empobrecido e envilecido como o nosso, guiado e dominado em grande medida por
videirinhos e cleptocratas, fabrica as consciências de que necessita para que o
espectáculo continue em termos favoráveis.
Para além disto e conservando um pouco de
dignidade (muitos diriam ingenuidade…) creio que apesar de tudo o lugar do
Autor continua a ser uma pedra de toque numa futura maior humanização do mundo
e dos seres. Ou de alguma consciencialização, o que já era razoavelmente bom…
MC - O que é que a escrita pode fazer por quem a efectua e pelos que a
recebem?
NS – A tua pergunta não transporta ironia, por isso não vou
responder ironicamente que, nos casos mais eficazes de videirice, pode dar cabo
ou ajudar a dar cabo de cabeças leitoras e proporcionar bons réditos aos que se
prestam a fazer esse jogo nefando…
De boa fé respondo que até pode ajudar a
decidir um destino, tanto dos que a fazem como dos que a recebem. Muitos
percursos vitais foram transformados ou levados nesta ou naquela direcção por
uma simples leitura, que assumiu um peso excepcional ou num ou noutro. A
escrita não constrói ou destrói impérios, nenhuma revolução foi determinada ou
sufocada por qualquer escrita, mesmo a estorieta de que a Guerra Civil
americana teria sido provocada pelo livro “A cabana do Pai Tomás” é pura especulação sem bases. A escrita
pode, isso sim, influenciar destinos individuais que, por seu turno, podem
fazer inflectir nesta ou naquela direcção acontecimentos de certa ordem. Mas
isso dá-se num plano muito pessoal, aliás sujeito a outras coordenadas e outras
determinantes. Em suma, no plano dos conceitos e movimentos de alma, a escrita
é ou pode ser uma forma de ascender ao conhecimento, encarado dum ponto de
vista lato, que até pode levar por seu turno a uma dada sabedoria. A magia
frequente é que ela é um verdadeiro “vaso comunicante” como dizia
Breton, o que permite um estatuto de convivência fecunda entre os dois campos.
MC - E quais os mundos em que ela se move?
NS - Nos mundos do consciente e do inconsciente, em primeiro
lugar, depois nos dois planos – esses mais complexos – da realidade e da
fantasia. Ou para dizer doutra forma, no continente da necessidade e no da
liberdade.
Uma vez que nos últimos tempos tenho, como
muitos creio eu, sido submetido a inúmeras humilhações sociais provocadas pelos
pervertidos ou corruptos membros da clique que se apoderou dos cinzentos
corredores do regime, tem-se dado em mim uma desaceleração da
fé nos poderes da arte. Fui, como milhares de pessoas ao que tenho sentido,
capturado pela desesperança e pela amargura, ou mais exactamente, foi uma parte
do meu espírito que sentiu um abalo bastante forte de que não recuperei e não
sei se virei a recuperar.
Concretizo: por razões que não vem ao caso
descriptar, foi-me dado saber de ciência certa que o mundo se está a encaminhar
para algo que, não sendo sectorialmente bom antes pelo contrário, será
globalmente bom em termos especiais. Mas e aqui é que bate o ponto, saber
não é poder. Aliás nunca o foi excepto se pertencemos aos escalões do mando
ou se somos membros da classe dominante. O saber nada pode contra a
inevitabilidade da morte, por exemplo e mesmo que conheças os secretos sentidos
do mundo estás como os outros preso à carnalidade a que só os deuses escapam.
Isso comunica-nos, em certas alturas, uma
angústia muito pronunciada e, mesmo dispondo da capacidade de nos movermos no
mundo aberto pelo conhecimento da escrita, ela acaba por ser um bem fraco
consolo.
JS - A arte pode ser entendida como a própria Vida no seu mais profundo
sentido? No sentido em que a vida é luta, até que ponto a arte também o é ou
tem que ser?
NS – Respondendo à primeira parte da questão: acho, felizmente, que não.
E digo felizmente porque hoje por hoje, ultrapassada a ideia amorável mas
apenas romântica de que todo o Homem seria um artista (de facto não é assim, já
veremos porquê) milhares e milhares, para não dizer milhões, estariam à partida
afastados da sua plenitude. E isso seria terrível. A arte (ou a capacidade
artística, se quiser) é sim, a meu ver, uma inflexão própria da Vida, ou por
outras palavras: algo que por determinadas características, chamemos-lhes
psico-fisiológicas, ou de conformação genética, se possui ou não, sem que isso
acrescente mais-valia específica ao dotado. Depois, essa faculdade educa-se,
aperfeiçoa-se, vai cristalizando através das horas no operador. Por isso é que
há maus artistas ou bons artistas, que são os que
sabem como os “laboreurs” excursionar
através da sabedoria possível. A arte, no meu modo de ver, é sim um
verdadeiro trabalho alquímico, que pode partir duma iluminação inicial mas que
requisita a junção e a transfiguração mútua do “espírito e da matéria”, para
usar estas expressões simbólicas. Assim sendo, creio que isto responde também à
sua questão sequente.
JP – Pelos vistos, cabe-me fazer a última pergunta. Ei-la: coisas que se
desejam e coisas que se tiveram. Como se colocam?
NS – Por vezes colocam-se de maneira um pouco amarga, ou devo dizer
desalentadora? No meu caso, pondo as coisas num plano estritamente prático ou
quotidiano, houve coisas que desejei fazer e nunca pude consegui-las.
Concretizando: gostava de ter dado a volta ao mundo, pelo menos conhecer a
Ásia… Nunca o fiz. Nunca tive a sorte de haver um milionário desembaraçado e
imaginativo que me dissesse: “Vais e depois escreves um livro com as tuas
impressões, as maravilhas que viste e o que tudo isso te suscitou”. Claro
que no mundo real os milionários são em geral pessoas ávidas e puramente
realistas, seja essa característica o que for. E gostava de ter tido – não se
riam, por favor! – um burro. Parece simples, mas não é. Teria de ter um
casinhoto onde o acomodar e que fosse suficientemente perto da minha casa para
o poder tratar, alimentá-lo e cuidar da sua limpeza…! E gostava de não
ter andado sempre em dificuldades a partir aí do dia 20 de cada mês…E gostava
de em certo período não ter sido tão atormentado por sevandijas, que me fizeram
muito mal. Como vêem, sou efectivamente muito terra-a-terra.
No que respeita a coisas espirituais, que
são frequentemente ora cómicas ora trágicas, nunca senti por aí além a falta
dalguma delas. Tive sempre um certo equilíbrio interior, estive sempre rodeado
de pessoas que por seu turno me estimaram, tenho tido livros, comida, casa,
nunca fui torturado ou alvo de um desgosto devastador. E tive a pintura, a
escrita, que me deram para encher uma vida.
Creio que tive sorte - e se não vi o mundo
inteiro vi uma parte e muito bela…É o que chega para um modesto lírico!
Espero continuar assim por alguns anos, o
maior espaço de tempo que puder ser…!
(Fotos de Portalegre de Mariana Garção)