segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

ÚLTIMA HORA

 

    (Sobre notícia colhida por volta da 1 da madrugada na importante Emissora espanhola Onda Cero, no programa “A Rosa dos Ventos” (um dos mais destacados na rádio do país irmão) realizado por Bruno Cardeñosa).

    Num Comunicado Oficial emitido ontem pelo Pentágono - o que já está a causar forte comoção nos investigadores e especialistas do ramo – este admite finalmente que tem em seu poder despojos de Ovnis caídos e que estão em hangares à guarda de militares.

     A notícia refere ainda que é dado a saber que um/alguns dos cerca de 40 despojos em causa faz parte do acervo que, segundo observadores bem informados, teria sido apanhado no deserto do Novo México perto da cidade de Roswell o que, numa primeira fase, fôra admitido por um alto comando e noticiado em diversos órgãos de informação estadunidenses.

   Contudo, logo a seguir, os mais altos escalões militares teriam levado a efeito uma operação de “cover up”, conforme foi dito desde então por diversos especialistas, no sentido de infirmarem testemunhos e mesmo protagonistas directos do achado.

    Este caso, muito famoso, foi objecto de diversas tomadas de posição até hoje, havendo nomeadamente um célebre filme estrelado por Kyle MacLachlan e Martin Sheen e realizado por Jeremy Kagan.

                                                                                                                  ns

Para um minuto de meditação - 66

 

António Abreu ganha (outro) processo contra o Observador na ERC





O jornal Observador, em perfeita sintonia com o Polígrafo, publicou um “Fact-Check” objectivamente errado a defender o Secretário de Estado da Educação, João Costa, acusando António Abreu, Director do Notícias Viriato, de publicar informação “falsa” sobre o caso de Artur Mesquita Guimarães e os filhos chumbados. Devido à parceria que o Observador tem com o Facebook, a publicação de António Abreu foi censurada e restringida para os seus leitores.

António Abreu, no exercício do Direito Constitucional que é o Direito de Resposta, enviou o texto de resposta ao Observador, mas este “adulterou” o título e, numa grave ofensa contra os Direitos, Liberdades e Garantias do Director do Notícias Viriato, pondo em causa a sua privacidade e integridade física, partilhou publicamente a sua morada pessoal.

A ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), no seguimento da queixa de António Abreu, deliberou que o Observador é obrigado a republicar novamente o Direito de Resposta com o título original, considerando que a divulgação da morada pessoal é um "acto perfeitamente desnecessário" e inclusive apto a "ofender direitos fundamentais".

O Observador na sua defesa contra a queixa de António Abreu, acusa-o de ter uma "atitude persecutória" contra o jornal, que a publicação da morada, que permaneceu no site durante 10 dias, foi um "lapso", e que o título original do Direito de Resposta - "Direito de Resposta de António Abreu, Director do Notícias Viriato" - era uma tentativa de fazer publicidade a um órgão "ao que parece, de comunicação social".

Esta deliberação da ERC favorável a António Abreu não está relacionada com o processo, ainda a decorrer em Tribunal, que o Observador colocou contra o Notícias Viriato devido a outro Direito de Resposta.

Esta é a 5ª vez consecutiva que António Abreu, como Director do Notícias Viriato, ganha processos na ERC contra outros meios de comunicação social.


Três poemas de Joaquim Simões

 


ns



Dia de anos

 

                no aniversário do João Barreiros

 

 

Hoje, fiz sessenta e quatro.

Ontem, fiz sessenta e três.

E, amanhã, não sei se não

farei anos outra vez – 

 

– que o tempo que eu conhecia,

o tempo que era um fadário,

certinho como um relógio

a posar pró calendário,

 

que antes me prometia

tudo, que era meu amigo,

pôs-se a olhar-me de lado

como ao pior inimigo…!

 

Mudou do dia p’rà noite!

Tornou-se indisciplinado,

resmunga, até cambaleia

como que embriagado…

 

Cada ano parece uma

das contas que mete ao rol,

enquanto ri, escarninho:

“Mais uma voltinha ao Sol…”

 

Já não sei o que lhe faça,

mas não me leva por tolo!

Mesmo aqui, nas barbas dele,

sopro as velas! Como bolo…!

 

 

11.

 

A luz vinda do espelho envolve-te o corpo

Ilumina-nos deste lado

Inclinas a cabeça para trás

Uma madeixa de cabelo ao canto da boca

Perguntas gostas dela

Daquela cujo corpo acaricias?

O teu ventre ondula e ergue-se suavemente

Marcando o ritmo das minhas mãos

O meus dentes seguram a tua nuca

O  meu corpo retesa-se arqueia-se

Desfaz-se de súbito em pura energia

Flecha sibilante do teu prazer

Tu e ela digo eu depois

Ensinaram-me o amor

De mim mesmo

Como poderia deixar de vos amar?

 

Amemo-nos os quatro então

Respondes tu

Húmidos como se tivéssemos acabado de nascer

De novo

 

 

12.

 

As máquinas não voam, nós voamos

Com elas e por elas no horizonte,

Lá de dentro do qual nos avistamos

Na estrada que julgamos ver defronte.

 

Não são armas, são filhos como cães,

Companheiras paridas do existir

Do que ainda não somos, anciães

Vagindo vidas vindas do porvir.

 

Todo o mundo e ninguém são. Contudo,

Ao erguerem-se nos sons do universo,

Falam de nós, deste viver, de tudo

 

O que, sendo já no que é, por ora mudo,

Espreita e se espelha em cada verso

Buscando o que, sendo um, se põe disperso




É assim que se faz a estória

 

COMUNICAÇÃO DE MÁRIO CESARINY

NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL

“Pelos Direitos Humanos contra os julgamentos de Moscovo”



(Palavras prévias de Nicolau Saião: Este texto de MC, cuja cópia me foi oferecida por ele em Setembro de 78, para além da sua importância como documento revelador duma consciência livre, activa e ética, dá-nos pistas de relevo para entender na sua verdadeira dimensão os ataques que o seu autor sofreu, a partir de determinada altura, por parte de antigos companheiros de rota, nomeadamente Luiz Pacheco, Vergílio Martinho e alguns outros membros colaços inscritos no Partido Comunista luso.

    Para além, é claro, do que os poderia separar ao conceberem e praticarem da maneira própria de cada um a vivência quotidiana na efectivação do surrealismo e/ou abjeccionismo e das suas proximidades durante a época salazarista e da que imediatamente lhe sucedeu, o chamado PREC, eivado de contradições e movimentações as mais estranhas e afastadas de uma liberdade autêntica que o golpe do 25 de Abril se propusera levar a efeito, incrementar e permitir consolidar.

    Sei, porque eu estava lá e o ouvi por diversas vezes – na “tertúlia” do Café Monte Carlo, onde passei a estacionar durante razoável período de tempo após a minha ida, com Carlos Martins, ao contacto com os surreal-abjecionistas do chamado “Grupo do Grifo” – que as críticas, por vezes muito acerbas, que lhe eram dirigidas assentavam em duas características do nobre autor de “Pena Capital”: ter feito nome na pintura, o que lhe granjeava proventos consideráveis e legítimos e, principalmente, estar contra as posições afixadas por aquela formação política que jamais esteve liberta do autoritarismo estalinista ou do cunho dependente das directrizes que a URSS estabelecia para a desejada sovietização a seu modo das chamadas democracias ocidentais ou ocidentalizadas. Martinho, pessoa aliás cordata no seu cômputo pessoal de relacionamento, era um ferrenho adepto do cunhalismo, tendo-me uma vez afirmado que considerava Álvaro Cunhal o maior político da Europa.

    Quanto a Pacheco, para entendermos o seu ímpeto verrinoso em relação a Cesariny basta conhecermos as peripécias, pouco abonatórias, da sua adesão “militante” e conceptual (aquando da sua inscrição no PC) já no que sucedeu - e insistira expressamente para que sucedesse – na sequência do seu falecimento (caixão coberto pela bandeira deste partido e discurso fúnebre proferido por um importante quadro comunista, a exemplo do que fora feito na cerimónia de Ary dos Santos). O qual objectivou, sem razão para dúvidas, a rendição absoluta do falecido às posturas que eram o corpus concreto e a feição mais estreme da acção cunhalista na sua caminhada totalitária em Portugal e no mundo.

    Cesariny, libertário e surrealista, espírito livre e voz alta e clara, não podia claramente compaginar-se com os vezos de antigos companheiros que nunca tiveram uma frase de crítica para verberar ou infirmar o totalitarismo em que se mergulhavam os próceres comunistas nacionais e internacionais e enlevavam os fautores dos acintes, dos ataques maiores ou menores que lhe eram dirigidos nos “anos da brasa” lusitanos – conforme ao que lá fora, na Europa ou noutro continente, acontecera e acontecia (e ainda acontece) aos surrealistas ou a qualquer um dos que não se curvavam nem curvam ante o “esquerdismo totalitário” a que a vulgata marxista, hoje jungida ao “politicamente correcto”, dá o mote, o tom e a estrutura na figura de espantalhos letrados.

    Cremos pois que este texto ilumina de igual modo o porquê de em certos círculos (que se têm caracterizado por epigrafarem e festejarem o denominado “surrealismo de escola” e, de forma algo precipitada e controversa, cozinharem de maneira peculiar o chamado “abjeccionismo luso”) se buscar envolver numa típica legenda o perfil solenizante de Luiz Pacheco – liofilizado et pour cause e seguidamente colocado num certo Olimpo - que a realidade da História feita com pundonor e verdade objectiva reconduz sem partis pris à sua real dimensão).

                                          *

   Nasceu este ano na URSS um ciclo de heróis

   Leio, do escritor Máximo Gorky, estas breves linhas extraídas de um artigo de jornal publicado em Moscovo em Novembro de 1917. Repito: em Novembro de 1917:

   “Lénin, Trotsky e os que os seguem já estão contaminados pela embriaguez do Poder e é um exemplo disso a sua escandalosa atitude em relação à liberdade de palavra, às liberdades individuais e a tudo aquilo por que a democracia se bateu. Fanáticos delirantes e aventureiros sem escrúpulos lançam-se de olhos cegos numa pseudo “revolução-social” que mais não será do que a estrada da anarquia, da ruína do proletariado e da ruina da revolução.

   Empenhados nesta via, Lénin e os seus companheiros de luta permitem-se todos os crimes: uma carnificina nos arredores de Petersburgo, a destruição de Moscovo, a supressão da liberdade de palavra, prisões insensatas, enfim, todos os horrores perpetrados por Plehve e Stolypine. Mas Plehve e Stolypine agiam contra a democracia, empenhados na destruição de tudo o que de honesto e vivo existia na Rússia, enquanto Lénin, pelo menos até agora, é seguido por uma considerável fracção de trabalhadores. Estou, no entanto, em crer que o bom senso da classe trabalhadora, a consciência que ela possui do seu papel histórico, depressa abrirão os olhos do proletariado para o aspecto totalmente quimérico das promessas de Lénin e para a extensão funesta da sua loucura.(…) A classe operária deve saber que não há milagres e que o que a espera é a fome, a indústria totalmente desorganizada, a ruína dos meios de transporte e um longo e sangrento período de anarquia seguido de um sombrio período de reacção não menos sanguinolenta”.

    Estas palavras de Gorky, que ele sublinhava com o título “À atenção da Democracia”, num jornal que em breve seria proibido de aparecer, em vão as procuraremos nas centenas de edições, mais tarde feitas pelo Estado soviético, das Obras Completas do escritor. Foram expurgadas, como todos os títulos que fez surgir durante um ano nesse jornal. Quanto aos redactores e colaboradores dele, informa-nos Boris Souvarine que, à excepção de Gorky, pereceram todos nos subterrâneos da GPU. Entre eles Lozovski, primeiro organizador dos sindicatos soviéticos e depois ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros, torturado na cadeia até à morte, e Vassily Bazarov, tradutor russo do “Capital” de Marx.

   Vê-se, pois, que o “sombrio período de reacção” que Gorky previa não tardou em afirmar-se. Vemos mais, infelizmente: que nunca mais desarmou, de 1917 até hoje. E tal como Gorky acentua, com lucidez que pode parecer-nos comum mas não o era de facto, tratar-se-ia de um reacionarismo conduzido em nome dos trabalhadores, em nome da revolução.

    Porque ponho entre nós estas palavras de Gorky, gentil humanista e deficiente escritor que acabou por não resistir ao canto da sereia stalinista, que lhe pagou com as honras de envenenamento pela GPU de Yagoda a ambiguidade da sua adesão? (1)

    Pois porque, em meu fraco entendimento, ouvir-se-á sem dúvida, aqui e lá fora, a sinceridade do nosso protesto pelos julgamentos e encarceramentos fascistas de Yuri Orlov, Anatol Sharansky, Alexandre Ginsburg, Victor Pyatkus, Vladimiro Slepak e José Begun mas de nada ou de pouco nos servirá se a todos nos situarmos no quadro de uma Convenção ou Acordo assinado em Helsínquia sobre Direitos Humanos. Que esse acordo que já se previa desacordado seja uma etapa da maior importância na luta política entre sistemas sociais diversos, estamos aqui para confirmá-lo. Mas aos jogos, às conquistas e às cedências da raposice política havemos de acrescentar uma outra dimensão para que estamos: a observação e denúncia da inflação pavorosa do linguajar que nos enche o ouvido. Que as piores injustiças, os actos mais selvagens, os maiores crimes podem chegar à rua em ondas de consagração, se não de santidade, quando lhes alçam pela carapuça o termo “revolução”, é fenómeno consagrado pelo uso, que já nem vale a pena discutir. Atentemos apenas neste quadro: Revolução nacional, do dr. Salazar. Revolução mundial, do dr. Trotsky. Revolução social nacional, do dr. Stalin. Revolução nacional social, do dr. Hitler. Revolução pronunciamento militar, do general Franco. É óbvio que em todas estas etiquetas de desespero o que há de menos é a Revolução. E ousemos agora e sempre muito alegrar por este final de século não ter sido brindado, como parecia, por mais um nacional-socialismo, encabeçado pelo luso dr. A. Cunhal.(2)

    Este “charivari” de ideias decepadas pelo uso pirata da sua necessidade, estes discursos que mostram o anverso para expelir o reverso e que já só funcionam como metáforas, trazem quiçá consigo a boa nova: a de que nesta época do primado da ideia as ideias estão todas pela hora da morte, elas todas, as óptimas, as boas as péssimas e as talvez. Já não conseguem falar. O que, em certo sentido, é um inestimável bem: talvez depois de meio século e mais de regimes ditatoriais e de Estados totalitários possa começar a descobrir-se, a evidenciar-se, que as ideias só são aquilo que são, parte do homem – como as partes sexuais – não o seu todo; e, em consequência, evidenciar-se que sendo as ideias coisa séria, como as ditas partes, a tentação de pô-las a servir o que não é serviço delas leva à blenorragia intelectual que estamos apontando.

    Julgo que é chegado o tempo de uma nova enciclopédia, de poucas mas claras páginas politicas. Há uns três anos, em pleno consulado de Costa Gomes,(3) ouvia-se no Rossio de Lisboa um espontâneo que, vestido à civil, enfileirava no entanto ostensivamente entre militares munidos de G-3 em posição de disparo, e gritava estentórico: “Abaixo a social-democracia!”. Cheguei-me a ele e disse-lhe: “Abaixo a ditadura!”. Pareceu surpreender-se com aquela minha audácia e olhou por cima dos ombros, à direita e à esquerda, como a assegurar-se do apoio dos soldados entre os quais se postara. Para meu eterno descanso, os soldados nem buliram. Apercebendo-se disso, o homem encarou-me e gritou: “Viva a ditadura da maioria!”. Retorqui-lhe: “Não sei o que é!”. O homem não mo explicou.

    Ora tem dois géneros, dois pelo menos e ambos tenebrosos, esta “ditadura da maioria”: um deles, velho da idade do Mundo, será pressão exercida, qualquer tipo de pressão em qualquer tipo de sociedade civil, por uma maioria distraída sobre uma minoria atenta – e, neste aspecto, tanto podemos recordar Rimbaud quando assevera que a poesia não ritma a acção, vai à frente dela, como podemos referir-nos ao martírio milenário das comunidades judaicas e à destruição física, ainda nos nossos dias, de expressões e civilizações importantes, e até talvez mais importantes, como a dos índios norte e centro-americanos. Mas não era decerto nesta desgraça que pensava o espontâneo do Rossio de Costa Gomes. Era numa desgraça ainda maior, mais sofisticada, codificada, filosofada, desvirtuada e propagandeada pela actual retoiça materialista histórica e dialéctica do Estado totalitário, também de vários nomes antitéticos: democracia popular, ditadura do proletariado, etc. E dizer-se ou ouvir-se dizer que Karl Marx não é o marxismo, que Descartes não é o cartesianismo, ou que Cristo não é cristão já cai na pilhéria aquela da “normalidade na anormalidade”, quando fugiram os presos.(4) Ou, um pouco mais grave, no projecto de lei fascista contra o fascismo. É a aplicação universalmente descontracta do binómio de Newton: fomos perseguidos por minorias infames e exploradoras? Passemos a perseguidores implacáveis, delegados que somos de maiorias sublimes. Porém, estes delegados do maior não conseguem mais do que aumentar desmesuradamente o número de cárceres. E, no melhor dos casos, numa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas onde não há socialismo nem sovietes, um almoço sem carne e raramente com peixe substitui o vinho antigo, que cintilava nas imagens de liberdade.

    Vi há pouco um filme de péssima extracção estética e casuística, “As sandálias do Pescador”(5) em que o dissidente soviético Anthony Quinn, presuto, perseguido e arrecadado bispo de Kirov, é libertado de um Gulag e exilado na Cidade do Vaticano. Esta fita USA tem um final a arrebentar de feliz: Quinn vira Papa e, na cerimónia da coroação, Rei dos Reis, anuncia que venderá ao desbarato todos os bens materiais da Igreja, terras, mosteiros, pedrarias, tapetes, os frescos de Miguel Ângelo, os óleos, os anéis, o ouro dos altares e o de trazer por casa, as acções da Companhia de Jesus, etc, etc, etc, para que enfim se acabe a fome no Mundo. Não vi o nome do realizador mas se acaso é um tonto é um tonto que se excede, porque te põe em frente do nariz a última tentação do marxismo antes de definitivamente desaparecer: a nostalgia de uma Igreja, a necessidade de um sagrado para que nunca apelou porque não lhe achou nome.(6) A catacumba itifálica marxista obrigatoriamente dispensa a respiração indivíduo finito/ universo infinito, para se ater aos Estados-Deus dos romanos. À quantidade imensurável de mártires produzidos não correspondeu uma gesta específica de heróis, porque o herói pertence ao mundo da esperança, alheio à vocação de quantos infelizes continuam a tender, na modernidade, para a emulação dos cristãos pelo toiro, pelo fogo e pelo leão.

    Mas a estes Cristos Ateus, paródia nova, e creio eu que última, da catacumba marxista, falta-lhes a imolação pela pomba, segredo que a Católica, ela também em convulsão intestina, não pode vender a ninguém.

    Não quero terminar sem dizer-vos que a única coisa realmente importante que vejo nestas minhas palavras é o acto de as estar pronunciando aqui, entre vós.

    Quero ainda chamar a vossa atenção para o importantíssimo conteúdo das palavras pronunciadas por Anatol Sharanski ao despedir-se dos seus depois de condenado. Ele não invocou a Jerusalém celeste nem atirou para a consumação dos séculos o velho sentido hebraico da redenção. Ele disse algo que é transformação formidável, é transformação qualitativa na luta do povo russo pela obtenção dos direitos humanos. Disse: “Até para o ano, em Jerusalém!”.

    Estas palavras significam que nasceu este ano, na União Soviética, um ciclo de heróis.

                                                                                   Mário Cesariny

                                                                                           (30-7-78)

  _______________    

NOTAS

(1) Conforme se veio a saber depois da queda do Muro da Vergonha e concomitante abertura de arquivos secretos da URSS, Máximo Gorky morreu após envenenamento perpetrado por agentes da polícia política. Coisa que se suspeitava mas se tinha medo de conferir, embora circulasse à boca pequena nos “mentideros” do regime. Com a sua típica e hábil velhacaria e magnífico cinismo, Stalin mandou no entanto fazer-lhe funerais de Estado.

(2) Político luso, inteiramente devotado ao comunismo russo, viveu vários anos na URSS e noutros países de Leste, frequentemente sob incógnita para usufruir de maior desenvoltura militante. Autor de várias publicações teóricas tornou proverbial a expressão “amplas liberdades”, que a seu ver caracterizaria a doação ao povo quando o PC chegasse ao Poder. Curiosamente lançou-a em público no período em que o seu partido mais tentava cercear a liberdade possibilitada pelos militares revoltosos…

(3) Francisco da Costa Gomes, general depois elevado ao marechalato pelo Governo no fim da sua vida. Crismado com o anexim de “Chico Rolha”, devido à sua capacidade de sobreviver flutuando mediante um oportunismo habilíssimo, foi um aliado forte e objectivo da URSS, nomeadamente como figura cimeira das consabidas associações para a paz, entidades de que este país se servia profundamente ao recheá-las de “idiotas úteis”.

(4) MC alude a um caso que se tornou célebre durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso): a fuga, que teve contornos enigmáticos e ridículos, em vista do que a rodeou, de 89 (!) agentes da PIDE, todos no mesmo dia e à mesma hora, das cadeias em que a cena abrilina os encafuara. A frase que ele cita foi proferida por um prócere governamental…visando justificar o tragicómico sucesso.

(5) Filme do realizador britânico Michael Anderson, baseado na obra homónima de Morris West, escritor católico especializado em romances girando no universo fideísta. Anderson, que se notabilizara através de bons filmes como “A fuga de Logan” (science-fiction), “O Memorando Quiller” (espionagem) ou “A casa da Flecha” (mistério & suspense), encenou aquela obra (por razões comestíveis?) para a Metro Goldwyn Mayer, que presumivelmente recebera essa encomenda dos meios vaticanistas mais “avançados”.

(6) Actualmente, o protagonista da paródia aludida é, claramente, o inefável Papa Francisco, figura mediática que conseguiu ultrapassar o dinâmico Woytila e o melífluo Ratzinger na sua piscadela de olho aos credos politicamente correctos “new stile”, ao racionalismo crente “nouvelle vague” e ao “marxismo cultural” de diversos matizes obnóxios – os que acham possível uma espécie de Tratado de Tordesilhas islamo-cristão, com recorrências ora fradescas ora ideológicas…e em que o inimigo a crestar é o ateísmo ou mesmo o agnosticismo de cepa progressista.



Jazigo de Mário Cesariny no cemitério dos Prazeres (Lisboa)

Hatikva (canto de esperança israelita)

 



quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Para um minuto de meditação - 65

 


Fernando Aguiar



     Rússia humilha diplomacia europeia

 

    Enquanto decorria o encontro entre Borell e Lavrov, Moscovo expulsava três diplomatas de países da União Europeia por terem “participado nas manifestações ilegais” a favor da libertação de Navalny.

                                                                                 (Dos jornais)


   Borell é a real imagem da situação a que a política da UE tem conduzido a Europa, fraquezas sobre fraquezas, a tal política dos consensos apenas nos conduz à irrelevância e à decadência como aliás se tem visto, a Europa parece uma bola de bilhar a ser atirada de um lado para o outro sem nunca acertar no objectivo...

                                                                               Manuel Magalhães


Jean-Paul Mestas, Cinco poemas

 

Depois

 

Não voltaremos aqui.

 

As pedras sabem a razão

mesmo nos dias vazios

em que se teriam ouvido

apenas os gritos do silêncio.

 

Onde estavas

se apenas olhaste

as margens do esquecimento?

 

O fluxo do desprezo

tem, talvez, a resposta.

 


Consolação

 

Já recebemos as nossas duas partes:

sem ruído, a dos mortos

depois a dos vivos

espinhos e silêncio.

 

Os meses tiveram a sua oportunidade

para instruir a paz,

como se o recém-nascido

tivesse a sua parte do diabo

ou a da esperança.

 

E depois adquiriu-se o hábito

de esperar o futuro.

 


Zéralda

 

Não, nunca mais

a noite interminável

a manhã incerta

uma queimadela

 

e o barulho seco

dum homem que caía

sem uma palavra na sua sombra

 


Intervalo

 

Nós rimos, disse ele,

como podíamos ter chorado

ou simplesmente morrer.

Hoje, não sei,

o silêncio e o esquecimento

fazem uma careta olhando-nos

já tão velhos,

                        perdidos

para as músicas do dia.

 


Entre nós

 

Não podereis contar-me

entre as vossas recordações:

 

entre nós os barcos

foram muito numerosos,

as estações demasiado frívolas

ou um tanto assassinas.

 

Deixemos assim ficar na água

as apóstrofes

e as vírgulas.


Tradução de Cristino Cortes

As moradas coloridas

 

Um trio de quatro



 Sempre que venho a Portugal tenho por hábito passar pela cidade que se acomoda nas faldas de São Mamede. Pelo enquadramento do lugar, mas também pelos amigos que lá tenho, “velhos” companheiros de muitos anos desde que, primeiro na Orada e depois em Portalegre, fiz por ser um observador atento das letras e artes: o Jorge Seminário, o Cachuda, o Bartolomeu dos anzóis que nunca falhava uma pescaria na barragem da Póvoa ou em Montargil, o Américo que vendia leite bem cedo, de manhãzinha quando éramos estudantes, o Perua…

Muitos deles partiram para outras paragens, algumas de tal modo afastadas que nunca mais voltaram (falecidos). Outros mudaram de aparência e quase que me custa reconhecê-los. Quem me vai dando notícias intermitentes é este amigo que, com outros amigos recentes, mais uma vez “entrevistei” para não me destreinar.

Em volta duma mesa bem composta, fomos trocando ideias. E o resultado aqui está.

                   Manuel Caldeira/Joaquim Simões/Jorge Perestrelo

 

Joaquim Simões (JS) – Antes de começarmos propriamente nas artes & letras, deixe-me perguntar-lhe porque é que nunca procurou ir viver num meio maior e potencialmente mais favorável a um artista. Foram acasos da vida ou foi deliberado?

NS – Acho que foi uma mistura dos dois. Aí pelos fins de 70 ainda pensei em arranjar trabalho na capital. Para ser mais exacto na região do Montijo pois tinha lá pessoas amigas e familiares perto de Lisboa. O ambiente societário portalegrense era sufocante, estava em sedimentação uma espécie de tomada do poder por diversos sectores de oportunistas com cobertura política que beiravam, no mínimo, a criação de verdadeiras bolsas de arrivismo e mesmo de corrupção ética apoiadas numa intricada rede de compadrios e interesses que tinham ficado do regime anterior e que, habilmente, tinham conseguido camuflar enquanto durou a confusão do PREC.

Mas o contacto pessoal e artístico com o Mário Cesariny e os seus habituais companheiros e amigos, dissuadiram-me. Eles aconselharam-me e ainda bem que os ouvi, a manter-me por aqui e deixar passar o pior da “trovoada”, pois as coisas na grande Lisboa não iam melhores, por vezes ainda eram piores. De modo que me fui aguentando no emprego que tinha conseguido arranjar depois de ter sido “saneado”, como então se dizia, de chefe-de-redacção e administrador-delegado do semanário “A Rabeca”, por me opor à censura e outros manejos dos indivíduos que haviam tomado conta do periódico e que estavam ligados ao PC e ao MDP. Estive uns tempos desempregado e com subsídio da Segurança Social, pois não pudera voltar à Meteorologia.

Foi por essa altura que sujeitos de certos meios políticos, aliás com repúdio de outros e da população, que sempre me estimou, tentaram dar-me como reaccionário e, mesmo, como “bufo da Pide”, numa manobra típica dessa gente que nunca olhou a meios para atingir os seus fins. Curiosamente foi Álvaro Cunhal quem, correspondendo a um “desabafo” do Dr. Feliciano Falcão, comunista portalegrense histórico e amigo de José Régio, teria dado indicação aos energúmenos daqui para me deixarem em paz. Feliciano Falcão merecia-lhe todo o crédito e se era meu amigo era porque eu não devia ser tipo “a abater”… Outros, antigos fascistas reciclados em “democratas”, por seu turno tentavam dar-me como perigoso subversivo, quiseram a todo o custo colar-me o rótulo de anarquista e de ateu, chegaram mesmo a enviar recados ao director do jornal onde eu costumava escrever, “O Distrito de Portalegre” (depois arruinado por gente sem merecimento), para que me denunciasse ao bispo!

Depois o tempo foi correndo, o meu quotidiano foi-se consolidando, os filhos estavam a crescer e a minha mulher foi progredindo na sua carreira e as coisas como de resto no país foram mudando, de modo que nunca mais pensei em abalar de cá.

Posteriormente ainda tive alguns problemas, nomeadamente graves actos de difamação veiculados por um periódico local, os quais foram resolvidos em tribunal de relação, pois no de primeira instância quiseram macular o caso numa jogada típica de uma região com leis tendenciais.

Mas o meu caminho estava traçado, tanto por cá como através de incursões pelo estrangeiro que os invejosos e medíocres locais já não conseguiram entravar decisivamente, ainda que a marginalização, até ilegal, tenha continuado com a complacência de certas autoridades.

Mas já não tem verdadeiro efeito no meu dia-a-dia, ainda que certos intriguistas, um dos quais um comprovado burlão que desmascarei um dia, tenham tentado sujar-me junto do povo lagóia.



Manuel Caldeira (MC) - Neste momento como vês a literatura, em Portugal e lá fora?

NS – Tenho, em parte, uma certa dificuldade em te responder. Por estranho que pareça creio que estou melhor informado sobre a escrita que se faz lá fora do que a que existe portas adentro. Pela simples razão de que me é mais favorável comprar livros por preço razoável em Espanha ou nos leilões da Net…E aí há mais livros de literatura estrangeira que nacional. Daí que, em termos de presença no terreno me sinta ligeiramente incapaz de saber com pormenor, por ter lido, o que cá se vai escrevendo.

Dito isto e com todo o respeito real, acho que a literatura portuguesa continua a ter, no geral, um certo cenário de existência visando a “melhoria de vida”, a “ascensão a lugar de relevo” de muitos dos seus protagonistas. A meu ver há gente que escreve porque isso é uma inevitabilidade propiciada pelo crescimento da alfebetização… Estão condenados a escrever assim como a melhoria de vida em terras pequenas condenou outros a tomar banho todos os dias…Basta ver-se o espaço internáutico… Proliferaram os blogues, a literatura desses meios, com gente que depois punha em letra de forma o que congeminara nesses espaços e que com terrível frequência era dos continentes da flatulência ou da pura pedantice suavemente acéfala. Pelo meio, felizmente, havia e há coisas de merecimento, mas o saldo é maioritariamente de fugir… 

Creio que tal corresponde a uma crise de crescimento num país durante muito tempo analfabetizado. Não devemos admirar-nos.

Portanto, se a literatura corresponde a algo que de facto está além da busca de “notoriedade qualificada”, de incontornável como parece dever ser o seu leit-motiv interior, a pouco e pouco as “public relations” irão perdendo a partida e encarquilhando-se até definharem com a subida do carácter dos operadores aventurosos.

Tenho lido alguns livros que me satisfazem: lembro o livro de viagens “Baía dos Tigres” por exemplo, os poemários “Chão de papel” e “Poemas de Caravaggio” (incluindo o prefácio), um livro de memórias “Bilhete de identidade”, um que outro ensaio histórico ou literário…

Da escrita estrangeira, que como disse conheço melhor, salientaria livros como “El candidato de Dios”, de Enrique Moriel, que vem na sequencia de um must anterior, “La ciudad sin tiempo”, obras de Martin Dugard, de Philippe  Claudel, de Cormac Mcarthy, Saul Bellow, Claudio Magris, mesmo os thrillers bem estruturados de Minette Walters, Val McDermid, a redescoberta dum grande senhor solapado durante demasiado tempo, John Franklin Bardin…

Em suma, acho que a escrita e por extensão a literatura, continua a aguentar-se bem, a despeito da extrema comercialização (seja em loja ou nas Feiras) que tenta despejar-se-lhe em cima e que muitos dos seus cultores facilitam criando frequentemente “génios por via administrativa”.

JS – Na sua opinião, o que representa a obra para o seu autor?

NS – Depende. No caso de haver uma verdadeira paixão, que nos melhores casos é sempre uma paixão caldeada pela razão do fazer e do navegar, será uma real aventura de viver e de erguer alguns minutos miraculosos. No meu caso pessoal, à medida que o tempo passa sinto uma espécie de surpresa, de estupefacção por haver esta coisa de escrever, de se construírem estórias, encenações, raciocínios postos em letra… É uma espécie de humilde encantamento. Para alguns outros será talvez uma maneira de viajarem por dentro, de se baterem contra a tragédia da vida breve, do tempus fugit. Ou, porque não, de erguerem com galhardia varonil o seu desafio aos deuses que sempre quiseram fazer do Homem não mais que um servidor atemorizado.

Jorge Perestrelo (JP) O quotidiano do homem e do escritor. Como se posicionam?

NS – No meu caso, tem dias…

Em certas alturas sinto-me mais suscitado  pelos acontecimentos vulgares, digamos. Há em certas coisas comezinhas ou aparentemente banais um poderoso apelo que me interessa sobremaneira. A passagem duma determinada pessoa pela rua, o que sucedeu nesta ou naquela circunstancias, mesmo casos da habitualmente triste e suja actualidade política, momentos da existência pessoal – uma iguaria, o envergar dum traje ou saber-se de que maneira e com que cadência as árvores perto da minha casa ficaram sem folhas à medida que o tempo invernoso chegou – prendem a minha atenção duma maneira profunda.

Noutras, é o mistério da escrita e da leitura que me ocupam todos os minutos do dia. E faço questão de referir que se sou, como dizes, escritor, é só na medida em que escrevo (risos). Profissionalmente nunca ganhei praticamente nada com as letras. E tem sido com dificuldade, muitas vezes só devido ao apreço e afecto de confrades amigos, que os meus livros têm sido publicados. Em parte, dou a lume o que faço também movido por uma razão de tipo ingénuo: quando fui muito perseguido criei a ideia de que, se tivesse uma certa notoriedade mediante as letras, talvez não me perseguissem tanto…Acreditava que isso de ser escritor me podia defender! Hoje, que já tenho como se costuma dizer “o rabo pelado”, sei perfeitamente que se o Poder decidir destroçar-nos pode fazê-lo sem entraves, seja-se ou não notável… Vivemos, não o esqueçamos, numa “sociedade criminal” do tipo democracia mitigada ou tendencial (tecnicamente, de enfoque cripto-fascista) o que aliás tentam não se veja, não se fale, não se ouça, como no célebre apólogo dos macacos. A nossa é maioritariamente uma sociedade hipócrita e cruel, onde a caridadezinha, por exemplo, serve para a ICAR efectuar boas performances de cariz propagandístico (risos).

Mas não me sinto desiludido, pelo contrário conservo um grande apetite de viver e a cada momento me sinto gratificado por me ter sido, pelas potestades, concedido existir e contemplar o mundo das coisas e da natureza, que são admiráveis.

JS - A obra constitui-se como uma criação ou uma tradução?

NS – Uma criação - que a meu ver é a tradução de estados existenciais, e nessa medida fundacionais, da pessoa a quem se colocam interrogações, perplexidades e quimeras. As quais, num indivíduo que tem como instrumento primacial as palavras, assumem o carácter de escrita ou, noutros casos paralelos e semelhantes mas de ordem diferente, desaguam na pintura, na música, etc. Para mim o homo faber é no estádio mais elevado um hacedor, um artesão de tipo superior ou, se quisermos, um artista na plena acepção da palavra.

JP - Recordações e memórias. São partes de um todo ou momentos de acaso?

NS – Se bem compreendo a tua pergunta, eis a resposta possível: com o avançar da idade e dando-se o facto de que tenho cada vez mais nostalgias, que aliás assumo porque cada vez estou mais do outro lado da vida, são já partes de um todo que procuro preservar como um tesouro. Esses momentos de acaso, para empregar a tua expressão, existiram sem que por vezes procurássemos que existissem, são frequentemente recordações, “instantâneos” como se diz na profissão de fotógrafo, que nos visitam sem que os possamos controlar. Em grande medida é daí que a poesia parte, desse território que visitámos um dia e que de súbito desapareceu sem que nos déssemos muita conta.



MC - Qual pensas que é o lugar do autor no mundo actual?

NS – Enquanto pessoa é muitas vezes supranumerário, dependendo do país ou mesmo do continente onde está. Dito isto, é em certos sítios um mero ornamento, facilite ou não facilite o facto.

Falando sem irmos a esses detalhes, penso que é um intruso que as classes diversas se habituaram a suportar, por um lado, a admirar por outro se em torno dele houver um trabalho de marketing bem artilhado. Os tempos são diferentes de, por exemplo, os meados do século passado, quando devido a factores bem determinados o Autor tinha um peso inegável no imaginário e até no meio social dos homens desse tempo. Hoje, se não tiver o peso que lhe é conseguido pela publicidade, a proximidade com o poder, com os mídias e até com os meios argentários, o autor tem menos lugar social que uma vedeta futebolística, cinematográfica ou, inclusive, do jet set semi-pornográfico.

A nossa sociedade, nomeadamente num país empobrecido e envilecido como o nosso, guiado e dominado em grande medida por videirinhos e cleptocratas, fabrica as consciências de que necessita para que o espectáculo continue em termos favoráveis.

Para além disto e conservando um pouco de dignidade (muitos diriam ingenuidade…) creio que apesar de tudo o lugar do Autor continua a ser uma pedra de toque numa futura maior humanização do mundo e dos seres. Ou de alguma consciencialização, o que já era razoavelmente bom…

MC - O que é que a escrita pode fazer por quem a efectua e pelos que a recebem?

NS  A tua pergunta não transporta ironia, por isso não vou responder ironicamente que, nos casos mais eficazes de videirice, pode dar cabo ou ajudar a dar cabo de cabeças leitoras e proporcionar bons réditos aos que se prestam a fazer esse jogo nefando…

De boa fé respondo que até pode ajudar a decidir um destino, tanto dos que a fazem como dos que a recebem. Muitos percursos vitais foram transformados ou levados nesta ou naquela direcção por uma simples leitura, que assumiu um peso excepcional ou num ou noutro. A escrita não constrói ou destrói impérios, nenhuma revolução foi determinada ou sufocada por qualquer escrita, mesmo a estorieta de que a Guerra Civil americana  teria sido provocada pelo livro  “A cabana do Pai Tomás” é pura especulação sem bases. A escrita pode, isso sim, influenciar destinos individuais que, por seu turno, podem fazer inflectir nesta ou naquela direcção acontecimentos de certa ordem. Mas isso dá-se num plano muito pessoal, aliás sujeito a outras coordenadas e outras determinantes. Em suma, no plano dos conceitos e movimentos de alma, a escrita é ou pode ser uma forma de ascender ao conhecimento, encarado dum ponto de vista lato, que até pode levar por seu turno a uma dada sabedoria. A magia frequente é que ela é um verdadeiro “vaso comunicante”  como dizia Breton, o que permite um estatuto de convivência fecunda entre os dois campos.

MC - E quais os mundos em que ela se move?

NS -  Nos mundos do consciente e do inconsciente, em primeiro lugar, depois nos dois planos – esses mais complexos – da realidade e da fantasia. Ou para dizer doutra forma, no continente da necessidade e no da liberdade.

Uma vez que nos últimos tempos tenho, como muitos creio eu, sido submetido a inúmeras humilhações sociais provocadas pelos pervertidos ou corruptos membros da clique que se apoderou dos cinzentos corredores do regime, tem-se dado em mim uma desaceleração da fé nos poderes da arte. Fui, como milhares de pessoas ao que tenho sentido, capturado pela desesperança e pela amargura, ou mais exactamente, foi uma parte do meu espírito que sentiu um abalo bastante forte de que não recuperei e não sei se virei a recuperar.

Concretizo: por razões que não vem ao caso descriptar, foi-me dado saber de ciência certa que o mundo se está a encaminhar para algo que, não sendo sectorialmente bom antes pelo contrário, será globalmente bom em termos especiais. Mas e aqui é que bate o ponto, saber não é poder. Aliás nunca o foi excepto se pertencemos aos escalões do mando ou se somos membros da classe dominante. O saber nada pode contra a inevitabilidade da morte, por exemplo e mesmo que conheças os secretos sentidos do mundo estás como os outros preso à carnalidade a que só os deuses escapam.

Isso comunica-nos, em certas alturas, uma angústia muito pronunciada e, mesmo dispondo da capacidade de nos movermos no mundo aberto pelo conhecimento da escrita, ela acaba por ser um bem fraco consolo.

JS - A arte pode ser entendida como a própria Vida no seu mais profundo sentido? No sentido em que a vida é luta, até que ponto a arte também o é ou tem que ser?

NS – Respondendo à primeira parte da questão: acho, felizmente, que não. E digo felizmente porque hoje por hoje, ultrapassada a ideia amorável mas apenas romântica de que todo o Homem seria um artista (de facto não é assim, já veremos porquê) milhares e milhares, para não dizer milhões, estariam à partida afastados da sua plenitude. E isso seria terrível. A arte (ou a capacidade artística, se quiser) é sim, a meu ver, uma inflexão própria da Vida, ou por outras palavras: algo que por determinadas características, chamemos-lhes psico-fisiológicas, ou de conformação genética, se possui ou não, sem que isso acrescente mais-valia específica ao dotado. Depois, essa faculdade educa-se, aperfeiçoa-se, vai cristalizando através das horas no operador. Por isso é que há maus artistas ou bons artistas, que são os que sabem como os “laboreurs” excursionar através da sabedoria possível.  A arte, no meu modo de ver, é sim um verdadeiro trabalho alquímico, que pode partir duma iluminação inicial mas que requisita a junção e a transfiguração mútua do “espírito e da matéria”, para usar estas expressões simbólicas. Assim sendo, creio que isto responde também à sua questão sequente.

JP – Pelos vistos, cabe-me fazer a última pergunta. Ei-la: coisas que se desejam e coisas que se tiveram. Como se colocam?

NS – Por vezes colocam-se de maneira um pouco amarga, ou devo dizer desalentadora? No meu caso, pondo as coisas num plano estritamente prático ou quotidiano, houve coisas que desejei fazer e nunca pude consegui-las. Concretizando: gostava de ter dado a volta ao mundo, pelo menos conhecer a Ásia… Nunca o fiz. Nunca tive a sorte de haver um milionário desembaraçado e imaginativo que me dissesse: “Vais e depois escreves um livro com as tuas impressões, as maravilhas que viste e o que tudo isso te suscitou”. Claro que no mundo real os milionários são em geral pessoas ávidas e puramente realistas, seja essa característica o que for. E gostava de ter tido – não se riam, por favor! – um burro. Parece simples, mas não é. Teria de ter um casinhoto onde o acomodar e que fosse suficientemente perto da minha casa para o poder tratar, alimentá-lo e cuidar da sua limpeza…!  E gostava de não ter andado sempre em dificuldades a partir aí do dia 20 de cada mês…E gostava de em certo período não ter sido tão atormentado por sevandijas, que me fizeram muito mal. Como vêem, sou efectivamente muito terra-a-terra.

No que respeita a coisas espirituais, que são frequentemente ora cómicas ora trágicas, nunca senti por aí além a falta dalguma delas. Tive sempre um certo equilíbrio interior, estive sempre rodeado de pessoas que por seu turno me estimaram, tenho tido livros, comida, casa, nunca fui torturado ou alvo de um desgosto devastador. E tive a pintura, a escrita, que me deram para encher uma vida.

Creio que tive sorte - e se não vi o mundo inteiro vi uma parte e muito bela…É o que chega para um modesto lírico!

Espero continuar assim por alguns anos, o maior espaço de tempo que puder ser…!

(Fotos de Portalegre de Mariana Garção)


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