COMUNICAÇÃO
DE MÁRIO CESARINY
NA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL
“Pelos Direitos Humanos contra os julgamentos de Moscovo”
(Palavras
prévias de Nicolau Saião: Este texto de MC, cuja cópia me foi
oferecida por ele em Setembro de 78, para além da sua importância como
documento revelador duma consciência livre, activa e ética, dá-nos pistas de
relevo para entender na sua verdadeira dimensão os ataques que o seu autor
sofreu, a partir de determinada altura, por parte de antigos companheiros
de rota, nomeadamente Luiz Pacheco, Vergílio Martinho e alguns outros membros colaços
inscritos no Partido Comunista luso.
Para além, é claro, do que os poderia separar
ao conceberem e praticarem da maneira própria de cada um a vivência quotidiana
na efectivação do surrealismo e/ou abjeccionismo e das suas proximidades
durante a época salazarista e da que imediatamente lhe sucedeu, o chamado PREC,
eivado de contradições e movimentações as mais estranhas e afastadas de uma liberdade
autêntica que o golpe do 25 de Abril se propusera levar a efeito, incrementar e
permitir consolidar.
Sei,
porque eu estava lá e o ouvi por diversas vezes – na “tertúlia” do Café Monte
Carlo, onde passei a estacionar durante razoável período de tempo após a minha
ida, com Carlos Martins, ao contacto com os surreal-abjecionistas do chamado
“Grupo do Grifo” – que as críticas, por vezes muito acerbas, que lhe eram
dirigidas assentavam em duas características do nobre autor de “Pena Capital”:
ter feito nome na pintura, o que lhe granjeava proventos consideráveis e
legítimos e, principalmente, estar contra as posições afixadas por aquela
formação política que jamais esteve liberta do autoritarismo estalinista ou do
cunho dependente das directrizes que a URSS estabelecia para a desejada sovietização
a seu modo das chamadas democracias ocidentais ou ocidentalizadas. Martinho,
pessoa aliás cordata no seu cômputo pessoal de relacionamento, era um ferrenho
adepto do cunhalismo, tendo-me uma vez afirmado que considerava Álvaro Cunhal o
maior político da Europa.
Quanto a Pacheco, para entendermos o seu ímpeto
verrinoso em relação a Cesariny basta conhecermos as peripécias, pouco
abonatórias, da sua adesão “militante” e conceptual (aquando da sua inscrição
no PC) já no que sucedeu - e insistira expressamente para que sucedesse – na
sequência do seu falecimento (caixão coberto pela bandeira deste partido e
discurso fúnebre proferido por um importante quadro comunista, a exemplo do que
fora feito na cerimónia de Ary dos Santos). O qual objectivou, sem razão para
dúvidas, a rendição absoluta do falecido às posturas que eram o corpus
concreto e a feição mais estreme da acção cunhalista na sua caminhada
totalitária em Portugal e no mundo.
Cesariny,
libertário e surrealista, espírito livre e voz alta e clara, não podia
claramente compaginar-se com os vezos de antigos companheiros que nunca tiveram
uma frase de crítica para verberar ou infirmar o totalitarismo em que se
mergulhavam os próceres comunistas nacionais e internacionais e enlevavam os fautores
dos acintes, dos ataques maiores ou menores que lhe eram dirigidos nos “anos da
brasa” lusitanos – conforme ao que lá fora, na Europa ou noutro continente,
acontecera e acontecia (e ainda acontece)
aos surrealistas ou a qualquer um dos que não se curvavam nem curvam ante o
“esquerdismo totalitário” a que a vulgata marxista, hoje jungida ao
“politicamente correcto”, dá o mote, o tom e a estrutura na figura de
espantalhos letrados.
Cremos pois que este texto ilumina de igual
modo o porquê de em certos círculos (que se têm caracterizado por epigrafarem e
festejarem o denominado “surrealismo de escola” e, de forma algo precipitada e
controversa, cozinharem de maneira peculiar o chamado “abjeccionismo luso”) se
buscar envolver numa típica legenda o perfil solenizante de Luiz Pacheco –
liofilizado et pour cause e
seguidamente colocado num certo Olimpo - que a realidade da História feita
com pundonor e verdade objectiva reconduz sem partis pris à sua real
dimensão).
*
Nasceu este ano na URSS um ciclo de heróis
Leio, do escritor Máximo Gorky, estas breves
linhas extraídas de um artigo de jornal publicado em Moscovo em Novembro de
1917. Repito: em Novembro de 1917:
“Lénin, Trotsky e os que os seguem já estão
contaminados pela embriaguez do Poder e é um exemplo disso a sua escandalosa
atitude em relação à liberdade de palavra, às liberdades individuais e a tudo
aquilo por que a democracia se bateu. Fanáticos delirantes e aventureiros sem
escrúpulos lançam-se de olhos cegos numa pseudo “revolução-social” que mais não
será do que a estrada da anarquia, da ruína do proletariado e da ruina da
revolução.
Empenhados nesta via, Lénin e os seus companheiros de luta permitem-se
todos os crimes: uma carnificina nos arredores de Petersburgo, a destruição de
Moscovo, a supressão da liberdade de palavra, prisões insensatas, enfim, todos
os horrores perpetrados por Plehve e Stolypine. Mas Plehve e Stolypine agiam
contra a democracia, empenhados na destruição de tudo o que de honesto e vivo
existia na Rússia, enquanto Lénin, pelo menos até agora, é seguido por uma
considerável fracção de trabalhadores. Estou, no entanto, em crer que o bom
senso da classe trabalhadora, a consciência que ela possui do seu papel
histórico, depressa abrirão os olhos do proletariado para o aspecto totalmente
quimérico das promessas de Lénin e para a extensão funesta da sua loucura.(…) A
classe operária deve saber que não há milagres e que o que a espera é a fome, a
indústria totalmente desorganizada, a ruína dos meios de transporte e um longo
e sangrento período de anarquia seguido de um sombrio período de reacção não
menos sanguinolenta”.
Estas palavras de Gorky, que ele sublinhava com o
título “À atenção da Democracia”, num jornal que em breve seria proibido de
aparecer, em vão as procuraremos nas centenas de edições, mais tarde feitas
pelo Estado soviético, das Obras Completas do escritor. Foram expurgadas, como
todos os títulos que fez surgir durante um ano nesse jornal. Quanto aos
redactores e colaboradores dele, informa-nos Boris Souvarine que, à excepção de
Gorky, pereceram todos nos subterrâneos da GPU. Entre eles Lozovski, primeiro
organizador dos sindicatos soviéticos e depois ministro-adjunto dos Negócios
Estrangeiros, torturado na cadeia até à morte, e Vassily Bazarov, tradutor
russo do “Capital” de Marx.
Vê-se, pois, que o “sombrio período de
reacção” que Gorky previa não tardou em afirmar-se. Vemos mais, infelizmente:
que nunca mais desarmou, de 1917 até hoje. E tal como Gorky acentua, com lucidez
que pode parecer-nos comum mas não o era de facto, tratar-se-ia de um
reacionarismo conduzido em nome dos trabalhadores, em nome da revolução.
Porque ponho entre nós estas palavras de
Gorky, gentil humanista e deficiente escritor que acabou por não resistir ao
canto da sereia stalinista, que lhe pagou com as honras de envenenamento pela
GPU de Yagoda a ambiguidade da sua adesão? (1)
Pois porque, em meu fraco entendimento,
ouvir-se-á sem dúvida, aqui e lá fora, a sinceridade do nosso protesto pelos
julgamentos e encarceramentos fascistas de Yuri Orlov, Anatol Sharansky,
Alexandre Ginsburg, Victor Pyatkus, Vladimiro Slepak e José Begun mas de nada
ou de pouco nos servirá se a todos nos situarmos no quadro de uma Convenção ou
Acordo assinado em Helsínquia sobre Direitos Humanos. Que esse acordo que já se
previa desacordado seja uma etapa da maior importância na luta política entre
sistemas sociais diversos, estamos aqui para confirmá-lo. Mas aos jogos, às
conquistas e às cedências da raposice política havemos de acrescentar uma outra
dimensão para que estamos: a observação e denúncia da inflação pavorosa do
linguajar que nos enche o ouvido. Que as piores injustiças, os actos mais
selvagens, os maiores crimes podem chegar à rua em ondas de consagração, se não
de santidade, quando lhes alçam pela carapuça o termo “revolução”, é fenómeno
consagrado pelo uso, que já nem vale a pena discutir. Atentemos apenas neste
quadro: Revolução nacional, do dr. Salazar. Revolução mundial, do dr. Trotsky.
Revolução social nacional, do dr. Stalin. Revolução nacional social, do dr.
Hitler. Revolução pronunciamento militar, do general Franco. É óbvio que em todas
estas etiquetas de desespero o que há de menos é a Revolução. E ousemos agora e
sempre muito alegrar por este final de século não ter sido brindado, como
parecia, por mais um nacional-socialismo, encabeçado pelo luso dr. A. Cunhal.(2)
Este “charivari” de ideias decepadas pelo
uso pirata da sua necessidade, estes discursos que mostram o anverso para
expelir o reverso e que já só funcionam como metáforas, trazem quiçá consigo a
boa nova: a de que nesta época do primado da ideia as ideias estão todas pela
hora da morte, elas todas, as óptimas, as boas as péssimas e as talvez. Já não
conseguem falar. O que, em certo sentido, é um inestimável bem: talvez depois
de meio século e mais de regimes ditatoriais e de Estados totalitários possa
começar a descobrir-se, a evidenciar-se, que as ideias só são aquilo que são, parte
do homem – como as partes sexuais – não o seu todo; e, em consequência,
evidenciar-se que sendo as ideias coisa séria, como as ditas partes, a tentação
de pô-las a servir o que não é serviço delas leva à blenorragia intelectual que
estamos apontando.
Julgo que é chegado o tempo de uma nova
enciclopédia, de poucas mas claras páginas politicas. Há uns três anos, em
pleno consulado de Costa Gomes,(3) ouvia-se no Rossio de Lisboa um
espontâneo que, vestido à civil, enfileirava no entanto ostensivamente entre
militares munidos de G-3 em posição de disparo, e gritava estentórico: “Abaixo
a social-democracia!”. Cheguei-me a ele e disse-lhe: “Abaixo a ditadura!”. Pareceu
surpreender-se com aquela minha audácia e olhou por cima dos ombros, à direita
e à esquerda, como a assegurar-se do apoio dos soldados entre os quais se
postara. Para meu eterno descanso, os soldados nem buliram. Apercebendo-se
disso, o homem encarou-me e gritou: “Viva a ditadura da maioria!”.
Retorqui-lhe: “Não sei o que é!”. O homem não mo explicou.
Ora tem dois géneros, dois pelo menos e
ambos tenebrosos, esta “ditadura da maioria”: um deles, velho da idade do
Mundo, será pressão exercida, qualquer tipo de pressão em qualquer tipo de
sociedade civil, por uma maioria distraída sobre uma minoria atenta – e, neste
aspecto, tanto podemos recordar Rimbaud quando assevera que a poesia não ritma
a acção, vai à frente dela, como podemos referir-nos ao martírio milenário das
comunidades judaicas e à destruição física, ainda nos nossos dias, de
expressões e civilizações importantes, e até talvez mais importantes, como a
dos índios norte e centro-americanos. Mas não era decerto nesta desgraça que
pensava o espontâneo do Rossio de Costa Gomes. Era numa desgraça ainda maior,
mais sofisticada, codificada, filosofada, desvirtuada e propagandeada pela
actual retoiça materialista histórica e dialéctica do Estado totalitário, também
de vários nomes antitéticos: democracia popular, ditadura do proletariado, etc.
E dizer-se ou ouvir-se dizer que Karl Marx não é o marxismo, que Descartes não
é o cartesianismo, ou que Cristo não é cristão já cai na pilhéria aquela da “normalidade na anormalidade”, quando
fugiram os presos.(4) Ou, um pouco mais grave, no projecto de lei fascista contra
o fascismo. É a aplicação universalmente descontracta do binómio de Newton:
fomos perseguidos por minorias infames e exploradoras? Passemos a perseguidores
implacáveis, delegados que somos de maiorias sublimes. Porém, estes delegados
do maior não conseguem mais do que aumentar desmesuradamente o número de
cárceres. E, no melhor dos casos, numa União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas onde não há socialismo nem sovietes, um almoço sem carne e raramente
com peixe substitui o vinho antigo, que cintilava nas imagens de liberdade.
Vi há pouco um filme de péssima extracção
estética e casuística, “As sandálias do Pescador”(5) em que o dissidente
soviético Anthony Quinn, presuto, perseguido e arrecadado bispo de Kirov, é
libertado de um Gulag e exilado na Cidade do Vaticano. Esta fita USA tem um
final a arrebentar de feliz: Quinn vira Papa e, na cerimónia da coroação, Rei
dos Reis, anuncia que venderá ao desbarato todos os bens materiais da Igreja,
terras, mosteiros, pedrarias, tapetes, os frescos de Miguel Ângelo, os óleos,
os anéis, o ouro dos altares e o de trazer por casa, as acções da Companhia de
Jesus, etc, etc, etc, para que enfim se acabe a fome no Mundo. Não vi o nome do
realizador mas se acaso é um tonto é um tonto que se excede, porque te põe em
frente do nariz a última tentação do marxismo antes de definitivamente desaparecer:
a nostalgia de uma Igreja, a necessidade de um sagrado para que nunca apelou
porque não lhe achou nome.(6) A catacumba itifálica marxista
obrigatoriamente dispensa a respiração indivíduo finito/ universo infinito,
para se ater aos Estados-Deus dos romanos. À quantidade imensurável de mártires
produzidos não correspondeu uma gesta específica de heróis, porque o herói
pertence ao mundo da esperança, alheio à vocação de quantos infelizes continuam
a tender, na modernidade, para a emulação dos cristãos pelo toiro, pelo fogo e
pelo leão.
Mas a estes Cristos Ateus, paródia nova, e
creio eu que última, da catacumba marxista, falta-lhes a imolação pela pomba,
segredo que a Católica, ela também em convulsão intestina, não pode vender a
ninguém.
Não quero terminar sem dizer-vos que a
única coisa realmente importante que vejo nestas minhas palavras é o acto de as
estar pronunciando aqui, entre vós.
Quero ainda chamar a vossa atenção para o
importantíssimo conteúdo das palavras pronunciadas por Anatol Sharanski ao
despedir-se dos seus depois de condenado. Ele não invocou a Jerusalém celeste
nem atirou para a consumação dos séculos o velho sentido hebraico da redenção.
Ele disse algo que é transformação formidável, é transformação qualitativa na luta do povo russo pela
obtenção dos direitos humanos. Disse: “Até para o ano, em Jerusalém!”.
Estas palavras significam que nasceu este
ano, na União Soviética, um ciclo de heróis.
Mário Cesariny
(30-7-78)
_______________
NOTAS
(1) Conforme se veio
a saber depois da queda do Muro da Vergonha e concomitante abertura de arquivos
secretos da URSS, Máximo Gorky morreu após envenenamento perpetrado por agentes
da polícia política. Coisa que se suspeitava mas se tinha medo de conferir,
embora circulasse à boca pequena nos “mentideros” do regime. Com a sua típica e
hábil velhacaria e magnífico cinismo, Stalin mandou no entanto fazer-lhe funerais
de Estado.
(2) Político luso, inteiramente
devotado ao comunismo russo, viveu vários anos na URSS e noutros países de
Leste, frequentemente sob incógnita para usufruir de maior desenvoltura
militante. Autor de várias publicações teóricas tornou proverbial a expressão
“amplas liberdades”, que a seu ver caracterizaria a doação ao povo quando o PC
chegasse ao Poder. Curiosamente lançou-a em público no período em que o seu
partido mais tentava cercear a liberdade possibilitada pelos militares
revoltosos…
(3) Francisco da
Costa Gomes, general depois elevado ao marechalato pelo Governo no fim da sua
vida. Crismado com o anexim de “Chico Rolha”, devido à sua capacidade de
sobreviver flutuando mediante um oportunismo habilíssimo, foi um aliado forte e
objectivo da URSS, nomeadamente como figura cimeira das consabidas associações
para a paz, entidades de que este país se servia profundamente ao recheá-las de
“idiotas úteis”.
(4) MC
alude a um caso que se tornou célebre durante o PREC (Processo Revolucionário
em Curso): a fuga, que teve contornos enigmáticos e ridículos, em vista do que
a rodeou, de 89 (!) agentes da PIDE, todos no mesmo dia e à mesma hora, das
cadeias em que a cena abrilina os encafuara. A frase que ele cita foi proferida
por um prócere governamental…visando justificar o tragicómico sucesso.
(5) Filme do
realizador britânico Michael Anderson, baseado na obra homónima de Morris West,
escritor católico especializado em romances girando no universo fideísta.
Anderson, que se notabilizara através de bons filmes como “A fuga de Logan”
(science-fiction), “O Memorando Quiller” (espionagem) ou “A casa da Flecha”
(mistério & suspense), encenou aquela obra (por razões comestíveis?) para a
Metro Goldwyn Mayer, que presumivelmente recebera essa encomenda dos meios
vaticanistas mais “avançados”.
(6) Actualmente, o
protagonista da paródia aludida é, claramente, o inefável Papa Francisco,
figura mediática que conseguiu ultrapassar o dinâmico Woytila e o melífluo
Ratzinger na sua piscadela de olho aos credos politicamente correctos “new
stile”, ao racionalismo crente “nouvelle vague” e ao “marxismo cultural” de
diversos matizes obnóxios – os que acham possível uma espécie de Tratado de
Tordesilhas islamo-cristão, com recorrências ora fradescas ora ideológicas…e em
que o inimigo a crestar é o ateísmo ou mesmo o agnosticismo de cepa
progressista.
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