quinta-feira, 9 de julho de 2020

Cinco poemas de José Carlos Breia






                     O MOCHO


                     A placidez informe das coisas.

Um rufo de asas
entreabre
o silêncio.

Teus olhos estelares
regressam.

Medito
no início dos astros,
na imensa noite
que antecedeu
o tempo.

E pergunto-me:
(sábio na fábula,
mau agoiro no grito)
de que avatar descendes?

Ou és transmutação?


                     EURÍDICE

                     Entrei por fim na casa abandonada.

Quanto tempo terá ela levado
a tricotar as teias pelos cantos,
a nublar vidros
velando espelhos, rostos e retratos?

Dados dois passos,
sob o ranger das tábuas e das portas,
vi
o que ficara de um vestido
no rasto da fuligem,
o rasgado verde resto da coberta
a resvalar da mesa,
as cadeiras partidas.

E, ao rodar a mão por um desenho
que o mofo recamara,
abri no espesso as linhas de uma face,
tirei do pó
uns olhos apagados.

Abertos, lentamente,
em mim pousaram
com tão funda ironia,
que, sem olhar pra trás,
abandonei-a.

E tudo se ocultou
em sucessivas dobras:
tempo, casa, razão,
cuidados meus.


DICIONÁRIO

Este é o livro
onde as palavras
cristalizam.

Do livro agora aberto
-   do preciso rigor das suas linhas,
retiro algumas dessas formas frias.

Rodeio, lento, a sua geometria.
Paciente, procuro, ponto-a-ponto
a cruz axial em que se animam.

Os pequenos cristais
revelam ângulos, planos
que a sua dura forma escurecia.

Secreto,
fecho depois o livro em que o poema,
recomeçado sempre,
ausente fica.


RETRATOS

Olho os retratos
que nesta velha sala me rodeiam.

Entre quadros e livros muito lidos
eles cercam-me
e pedem-me cuidados:
que lhes tire o pó dos vidros
e a mancha das molduras.

Brilham agora, limpos,
mas ainda inseguros.

Eles querem também que os reconheça:
querem, da minha vida,
a vida que me resta.

(Mesmo o meu gato preto,
por quem chorei talvez
mais do que por ninguém,
me lança a fina fresta dos seus olhos
pedindo-me que o deixe ronronar).

Mas são, contudo, os vivos
-   os que ainda se arrastam lá por fora
que mais me preocupam.

Eram belos e plenos
seus corpos.
Pareciam eternos.

Mas há muito morreram
nos retratos
que nesta velha sala me rodeiam. 


DAS PEDRAS 1

A pedra na mão.
Na minha mão

Disse-o Décio, o romano,
que com ela matou.
Disse-o o nómada Ben Zir
quando ao meditar
a rolou.
Devraux, o arqueólogo,
disse que se tratava de…
Von Zeint, o geólogo,
contestou

Se enobreceu túmulos
ou palácios
não sabemos.
Mas,
talhada por mãos hábeis,
foi arte,
é vida.

Passou por muitas mãos
e de todas, um pouco, ficou.

A pedra na mão.
Na minha mão.
Milhares de histórias
entre os dedos.

*
                                                     
José Carlos Breia nasceu em 3 de Maio de 1930.
Leu muito e muita música ouviu. As artes plásticas fascinam-no tal como a arquitectura.
Viajou pela Europa e pela América do Sul.Trabalhou, naturalmente, pois sem dinheiro não se vive.Reformou-se cedo.
É na altura em que se reencontra com António Luís  Moita que este lhe propõe, para ocupar o tempo livre, que junte todos os poemas que tinha feito e os publique. Surge assim LUGAR NENHUM no ano de 2000, dado a lume na Assírio e Alvim.Continua a escrever  e tem neste momento mais três livros não publicados: “Outro lado”, “Das pequenas coisas” e “Poemas do chão”.

2 comentários:

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