quinta-feira, 9 de julho de 2020

Um poema de Marie Noël





Algumas palavras sobre a Autora – ns

   Nascida em Auxerre (1883), onde viria a falecer (1967) e viveria praticamente toda a sua vida, Marie Noël é uma das consciências místicas mais complexas, de cariz fortemente interrogativo e mesmo libertário, da poesia francesa e europeia.
   Como é referido na introdução à colectânea – “Madrugada secreta” – donde extraímos o poema que aqui se dá a lume – Dois factos capitais marcam a sua vida. Com vinte e um anos sente uma paixão inconfessada por certo rapaz socialmente inferior (como então se fazia questão de sublinhar) cuja fugacidade a deslumbrou e feriu para sempre. Teria deixado Auxerre no próprio dia de Natal de 1904 ‘caminhando para destino obscuro e doloroso’.
   Esse destino foi o seguinte: o jovem madeireiro – de acordo com o que se soube a imagem mesma da graça, da delicadeza simultaneamente humilde e varonil, da apaixonante inocência em suma – com os seus companheiros duma pequena equipa de trabalho foram assaltados, no caminho para outra terra, por uma quadrilha de ladrões que o mataram à pancada. Dois dias depois ela recebe a estarrecedora notícia – pouco antes de achar “morto na cama o seu irmão mais novo, Eugénio, que contava apenas doze anos”.
  Acometida por violentíssima crise, recolhe-se ao seu quarto. Durante um par de dias não responde a nenhuma solicitação dos familiares atormentados, não come nem bebe, não trata de si. Bichinho enovelado na dor e ferida no mais fundo da sua alma e corpo, como que faz o luto cuja memória não mais se apagará do seu coração.
  Ao terceiro dia sai, como que transfigurada. Faz as suas abluções, come e encara os parentes com lhaneza e serenidade: nascera Marie Noel. Como é referido na introdução aludida: “ Confessa-nos ela: Marie Noël é mais ainda o meu nome de desgraça. MARIE (mara) amargura mortal da minha raiz. NOËL, o meu milagre, a minha flor de alegria”.
    E é esta poetisa - em cuja obra se mescla a simplicidade rítmica e a riqueza de pormenor, os perfumes do solo e da natureza numa consciência ecológica avant la lettre, um sentido excepcional do discurso narrativo que nunca a prendeu a qualquer exagero de imagens nem de crença - que aqui se vos apresenta com a proverbial estima.

SERVIÇO HUMILDE

Se eu fosse planta
não gostaria de ser
daquelas plantas úteis
demasiado ligadas ao homem.

Nem aveia, nem trigo,
nem cevada, encarcerados
sem poderem sair dum campo
regulamentado
- nem sequer deixam às searas
distrair-se com os seus pica-peixes –
nem principalmente
estes legumes submissos e educados,
cenouras alinhadas,
feijões dirigidos com varinha,
saladas forçadas a empalidecer
apertando-lhes o coração,
quando está tão bom tempo ao redor
e elas preferiam desabrochar livremente.

Quando muito
aceitaria ser erva de tisana,
serpão ou malva,
contanto que fosse num desses altos
batidos do vento,
onde só os pastores as podem colher.

Mas gostaria ainda mais de ser urze,
genciana azul, espinheiro,
se fosse preciso, cardo abandonado no campo,
ou ainda um cogumelo nem venenoso
nem bom demais para comer,
que nasce no musgo da manhã
no fundo mais negro do bosque,
que se torna cor de rosa
sem que o vejam
e morre sozinho no dia seguinte
sem intervenção de ninguém.

E, se fosse um animal,
não gostaria
de ser da casa nem da quinta,
nem sequer a cabra
que se prende a uma estaca
e que depois
se mete no curral para ordenhar
ou uma dessas galinhas de capoeira,
misturadas aos negócios do homem
e que podem dizer uma à outra:
- Ali produzi quinze soldos
e valho vinte francos por quilo…

Não! Não!
Antes queria ser lebre,
ou raposa,
ou corça,
ou rouxinol
que só encontram o homem
no dia em que ele os mata.

E terei sido, toda a minha vida,
animal dos mais domésticos,
besta de carga,
cão preso,
canário na gaiola.
Ou legume na sopa.

Era a vontade de Deus.

                              Tradução de Manuel Simões

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