O
MOCHO
A placidez
informe das coisas.
Um rufo de asas
entreabre
o silêncio.
Teus olhos estelares
regressam.
Medito
no início dos astros,
na imensa noite
que antecedeu
o tempo.
E pergunto-me:
(sábio na fábula,
mau agoiro no grito)
de que avatar descendes?
Ou és transmutação?
EURÍDICE
Entrei por fim na
casa abandonada.
Quanto tempo terá ela levado
a tricotar as teias pelos cantos,
a nublar vidros
velando espelhos, rostos e retratos?
Dados dois passos,
sob o ranger das tábuas e das portas,
vi
o que ficara de um vestido
no rasto da fuligem,
o rasgado verde resto da coberta
a resvalar da mesa,
as cadeiras partidas.
E, ao rodar a mão por um desenho
que o mofo recamara,
abri no espesso as linhas de uma face,
tirei do pó
uns olhos apagados.
Abertos, lentamente,
em mim pousaram
com tão funda ironia,
que, sem olhar pra trás,
abandonei-a.
E tudo se ocultou
em sucessivas dobras:
tempo, casa, razão,
cuidados meus.
DICIONÁRIO
Este é o livro
onde as palavras
cristalizam.
Do livro agora aberto
- do preciso
rigor das suas linhas,
retiro algumas dessas formas
frias.
Rodeio, lento, a sua
geometria.
Paciente, procuro,
ponto-a-ponto
a cruz axial em que se
animam.
Os pequenos cristais
revelam ângulos, planos
que a sua dura forma
escurecia.
Secreto,
fecho depois o livro em que o
poema,
recomeçado sempre,
ausente fica.
RETRATOS
Olho os retratos
que nesta velha sala me
rodeiam.
Entre quadros e livros muito
lidos
eles cercam-me
e pedem-me cuidados:
que lhes tire o pó dos vidros
e a mancha das molduras.
Brilham agora, limpos,
mas ainda inseguros.
Eles querem também que os
reconheça:
querem, da minha vida,
a vida que me resta.
(Mesmo o meu gato preto,
por quem chorei talvez
mais do que por ninguém,
me lança a fina fresta dos
seus olhos
pedindo-me que o deixe
ronronar).
Mas são, contudo, os vivos
- os que ainda
se arrastam lá por fora
que mais me preocupam.
Eram belos e plenos
seus corpos.
Pareciam eternos.
Mas há muito morreram
nos retratos
que nesta velha sala me
rodeiam.
DAS
PEDRAS 1
A pedra na mão.
Na minha mão
Disse-o Décio, o romano,
que com ela matou.
Disse-o o nómada Ben Zir
quando ao meditar
a rolou.
Devraux, o arqueólogo,
disse que se tratava de…
Von Zeint, o geólogo,
contestou
Se enobreceu túmulos
ou palácios
não sabemos.
Mas,
talhada por mãos hábeis,
foi arte,
é vida.
Passou por muitas mãos
e de todas, um pouco, ficou.
A pedra na mão.
Na minha mão.
Milhares de histórias
entre os dedos.
*
José Carlos Breia nasceu em 3 de Maio
de 1930.
Leu muito e muita música ouviu. As
artes plásticas fascinam-no tal como a arquitectura.
Viajou pela Europa e pela América
do Sul.Trabalhou, naturalmente, pois sem dinheiro não se vive.Reformou-se
cedo.
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É na altura em que se reencontra com António Luís Moita que
este lhe propõe, para ocupar o tempo livre, que junte todos os poemas que tinha
feito e os publique. Surge assim LUGAR NENHUM no ano de 2000, dado a lume na
Assírio e Alvim.Continua a escrever e tem neste momento mais três livros
não publicados: “Outro lado”, “Das pequenas coisas” e “Poemas do chão”.
Hoje li-os com prazer e amanhã repetirei a dose.
ResponderEliminarJS
Voltei a lê-los e voltei a considerar que são de grande qualidade.
ResponderEliminarJS