quinta-feira, 4 de junho de 2020

Dois poemas de José Carlos Costa Marques


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O RAPOSINHO 

O raposinho morto, de olhar vidrado.
As patinhas cruzadas, suplicantes.
Na carroça, sob a rede presos, para os cães essa recompensa.
No largo da aldeia, os vizinhos acorrem
sob o macio azul de novembro,
na manhã de domingo, mole e palpitante.
O garoto estica a mão, puxa o farto rabo alçado, morto.
Larga e cai, com seu peso morto. Ri o garoto
Chora o raposinho morto, quieto e calmo,
olhando com o olho morto
para o imenso longe. Dispersam os vizinhos,
não muito contentes, não muito tristes, entra
o caçador na taberna, de consciência serena.
Ficam sós os cães, vivos e presos, e o zorro
livre e solto, de patinha cruzada,
suplicante.


O CÃO DE DEUS

                            para o amigo que não reconheceu o Tao neste cão perneta

Que analfabeto o cachorrinho negro de coleira ao pescoço!
Tem três patas apenas disponíveis,
marcha a pé cochinho,
algum condutor bêbedo lhe estraçalhou uma das patinhas dianteiras.
No chão de pedra do pacato restaurante provinciano,
arrasta-se penosamente e olha ansioso
migalhas e restos dos convivas
–  e nada vem.
Eis que um dos felizes contemplados do banquete
olha nos olhos o cachorrinho trôpego, e do seu prato repleto onde apena
restam ossos
lhe oferece o esplendor dos restos
e ele, o analfabeto, o burro cachorrinho,
obtuso e ansioso no seu olhar divino encurralado,
eis que o cachorrinho, avassalado de temor e tremor,
amedrontado,
na genética cromossomática memória relembrando os pontapés ancestrais,
se esgueira e hesita,
por forças antagónicas dilacerado.
E ei-lo que vem, trôpego, a pé cochinho, ei-lo que se aproxima e ganha um
ou dois ossos
do pobre borrego há pouco ainda vivo e a ossos agora reduzido.
Os avaros restos do borrego, escassos,
penetram agora no estômago acidulado do cão perneta.
Mas sobra ainda um osso, o melhor bocado,
e tu, divino cachorrinho, com teus olhos líquidos de buda,
manso e sábio,
amedrontado,
tu burro e estúpido,
tu cachorrinho, com os coices do humano couro na ancestral memória,
tu hesitas,
e eis que chega o criado, aliás patrão, e solícito e limpo,
os restos e a travessa recolhe,
e tu cachorrinho trôpego analfabeto,
a ganir ficas tu, privado do mais suculento osso,
quem diria, tu cachorro, tu Deus escondido
que nos teus olhos líquidos brilha de manso cachorrinho

Hélio Rola e os Dragões do Mar



   Um mundo feérico, alucinante e encantado de faunas diversas, de monstros e de meninos, de bichos que assumem a sua condição de santos civis e quotidianos visitados pela amargura e a mais devastadora felicidade. Coisas do mar, coisas da terra. A preto e branco e a cores. Olhos que se viram na direcção do horizonte. Ali no Brasil. Ou seja: ali ao pé da esquina, ao virar da página e da avenida: no teu largo, na tua rua, no teu quintal. Dentro do Brasil e fora do Brasil – no coração duma floresta da Europa onde se acocoram os mal-nascidos.  
   Entre dentes e entre linhas. Entre deambulações. Entre o grito e o soluço. Para levar para casa como recordação intempestiva, para levar a todo o lado como uma minúscula assombração. Uma gargalhada louca correndo nos ares como o trilo duma flauta numa viela onde jazem carros esventrados, sacos velhos e dejectos de um mundo supranumerário. E também muitos lugares de serena contemplação. A tua, a minha, a alegria dos outros, de todos os que ainda não se desvaneceram. O adeus que não cessa, a melancolia de cidades ao alvorecer. A lua, o sol, um bocejo sonolento no meio da madrugada.
    Ao bom calor do Brasil - aqui mesmo no Alentejo, junto ao lago dos patos no Palácio de Cristal, numa simpática tasquinha de Borba. Em Coimbra, nas terras da Amazónia. Como se o tempo e os seus contrastes fosse não mais que uns olhos ouvindo atentamente, orelhas a captarem todas as cores, a boca e a mão esvoaçantes que traçam os seus sinais sobre um cantinho do universo.
   Como se tudo e ainda bem não passasse de um desenho a tinta-da-china ou então um volteio de guache enfeitiçado.


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segunda-feira, 1 de junho de 2020

Para um minuto de meditação - 6


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   Segundo o psicólogo espanhol Iñaki Piñuel (autor de vários livros sobre psicopatas integrados) algumas das características principais destes são:

A falta de empatia.
A ausência de escrúpulos de natureza ética.
Levam um estilo de vida parasitário.
Têm a tendência para tratar os outros como objectos e não como pessoas.
São muito narcisistas e egocêntricos.
Têm uma grande capacidade de simular bons sentimentos com fins manipulatórios; ou seja, são “grandes actores”.

                                                                                Jorge Gaillard Nogueira

Perfeição


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Perfeição

O carpinteiro afagou a madeira,
à custa de duro arrastar de plaina.

O médico coseu o doente esfaqueado,
ponto a ponto, em cansativa faina.

O sacerdote esmerou-se no sermão,
enquanto com a mão alisava a sotaina.

A cozinheira preparou o almoço,
empenhada na próxima comezaina.

O escritor anulou adjectivos e pronomes,
burilando novo romance, “A Polaina”.

Todos eles procuravam a perfeição, mas…
o carpinteiro usou madeira com bicho,
o médico foi processado devido a septicemia,
o sacerdote fugiu para casar com uma acólita,
a cozinheira deixou queimar o assado
e o escritor só vendeu cinco livros.

Pudera, com um título daqueles!...

                                                                     Joaquim Saial

Do Caderno de Notas do Dr. Jagodes






MARCELO ON THE ROCKS

  Segundo pude colher em certas opiniões de diversas pessoas, Marcelo Rebelo de Sousa é um homem muito inteligente, excelente professor e intelectual com todas as qualidades. Da perspicácia à desenvoltura.
  No capítulo da política, nomeadamente na “politique d’abord” acham-no contudo ser, embora com afabilidade, um exemplo típico de entertainer no ramo da sociologia-política-comunicação por excelência. Asseveram-me que é o grande talento a que têm direito, como sói dizer-se, os secundários, assim como os primários e derivados têm o Malato, o simpático fornido Mendes e a estimada e dinâmica Cristina Ferreira.

  Embora sem acinte, consideram que só num país deflacionado é que Marcelo, digamos assim, ainda que sincero e muito honesto tem podido aparecer como figura politica nec plus ultra e ter atingido a qualidade de esmerado Presidente desta república, desculpem, assim um pouco às três pancadas.
  O nosso Marcelinho, como é carinhosamente conhecido pelas crianças e Marcelão pelos adolescentes, nos mentideros em geral e pela nação em particular, daria dest’arte o índice real de "democracia condicionada e apenas tendencial" ao país em que vivemos. (Por outras palavras deles, uma república de truques e de manobrinhas).

  Ele a mim não me parece ser - com licença da mesa e com o inerente respeitinho, como poetava o O’Neill - um pouco… manobrador, com as suas pancadinhas nas omoplatas do poviléu, as suas declarações de que somos os melhores em tudo, as suas adoráveis selfies que singularizam um invólucro de… estadista. Admito poder estar enganado, mas tenho para mim que as suas simpáticas aparições nos lugares mais expressos da nossa praça são absolutamente outra coisa! Se não, vejamos: MRS obviamente não é movido, ao contrário de outros famosos, pelo apego ao dinheiro vultuoso, pois é claramente um homem desprendido de baixas materialidades. Nem o creio movido pelo desejo infrene de Poder, como é o caso de, talvez, o senhor doutor António Costa. Se formos a ver, o senhor presidente até não manda nada, ao contrário deste último, que é quem manda tudo. Marcelo, em resumo, o que me parece agradar-lhe sim e nisso se limita e lhe bastará, é existir como numa perpétua festa de casório, com as pessoas todas bem-dispostas e bem enfarpeladas, num ambiente de agradável convívio amigável.

    O nosso presidente, arguto como é, creio que percebeu bem os anseios populares. Cansados de vários anos a encararem um presidente taciturno, muito formal, ligeiramente hirto como era o senhor professor Cavaco, MRS entendeu que os cidadãos precisavam de cordialidade e boas palavras. Mais que de benesses económicas, que são sempre difíceis de atingir numa república deste calibre, tinham fome de carinho oficial e institucional!
   E é isso o que o mais alto, actualmente, magistrado da nação lhes tem dado, com praticamente comum satisfação. Do povinho e palpito dele mesmo.
   Como já o Eça notara, o suave português sempre gostou da boa paz habitual, de viver habitualmente como outro especialista referia, da lhaneza de trato natural – e é isso que tem colhido do Presidente que o destino, sempre clarividente, lhe forneceu e de certezinha lhe irá continuar a fornecer porque, como se diz nos discursos públicos em geral, é esta a sua maneira pessoal de estar na vida.
   Na vida vidinha, como o grande filósofo-lírico Teodoro Rabejana gosta de dizer no seu inspirado verbo…!

Um poema de Patrick Cintas






ODE AO VINHO

O vinho
que não está certo
tampouco está errado.
Nada de copo
para bebê-lo,
apenas o sol
e a minha espera
sob um carvalho,
onde a pedra
é o limiar
de mim mesmo.
Pedra cavada
por dez gerações
de pastores.
As nádegas deles
moldaram a posição ideal
de quem fica sentado,
em face daquela distância
que nos separa
da civilização.
O vinho também espera,
e o momento vem sempre:
a noite acossa o dia,
o qual não perece –
caso contrário, ele renasceria,
e nós teríamos tempo
para recomeçar
em vez de substituirmos a nossa espera
por algum jogo.
O vinho tem suas razões:
não explica nada.
Nem nada concede.
Não substitui
o que falta,
o que acaba,
em nosso olvido.
A terra do vinho é obra-prima
dos lugarejos sagrados
à nossa espera.
O vinho escorre
por cômoros duros,
e nós percorremos o invisível
sem encontrarmos palavras
para dizê-lo.
A terra
em leves
declives,
as escavações
das chuvas,
a relva louca
e os caminhos
pré-calculados
na trajetória
das pedras
que descem
dos muros
de mármore
e de calcário.
O vinho reascendia
ao primeiro dia
e à primeira fermentação,
à alquimia
do átimo
que ninguém ainda
viera a esclarecer.
O vinho e essa terra
se entrelaçavam
como as aves
no céu,
e eu procurava o sono,
como se ele não existisse,
como se me coubesse
inventá-lo.
Nós escrevemos
na casca das árvores
com a ponta da faca,
testemunhando a faca
momentos de desespero
na carne daquelas mulheres
ou na deste homem
que não esperou pela sua hora.
O vinho dos velhos garrotes
cedeu o lugar de quem vence
ao vinho das perpetuidades
bem relativas.
Porém, não é coisa pior,
que tu não te sentes tão odiado.
E matas mais facilmente
que a doença.
Vinho daquelas crianças
nascidas do gozo,
se é que a gente não mente
em crer nisso.
Uma mulher intervém,
linda como a aveia pelas encostas
ou má como a água das agaváceas;
uma mulher chega ao ponto marcado
para levar a cabo
a obra do vinho,
dando-lhe um sentido,
mais uma
razão.
O vinho não está certo
tomando o lugar da mulher
que o acaso lhe pôs no caminho,
mas, se não foi o acaso
e se a mulher partiu
sem você,
pois você não iria embora
com tanta facilidade,
então a espera
fica pior
que os giros infames
do torno,
pior que a cama
arrumada todos os dias
por hábito
de manter a ordem.
O vinho saía da minha boca
como as frases
das tuas mãos,
derramadas sobre a minha carne
adormecida,
criatura de minha aptidão
para criar de novo as circunstâncias
previstas
pela comunidade,
criatura nascida do cruzamento
da transparência
e do invisível,
planos secantes
das interrupções
ou, quem sabe, dobras
de meus lençóis.
O vinho,
a terra.
A terra
e nossas andanças.
As nossas andanças
e a espera
dos que viajam
em vez de cumprirem as suas promessas.
Nossas janelas sem vidros.
Nossos cômodos sem janelas.
As lajes de nossos telhados.
O raio oblíquo do amanhecer
refletido por um espelho
posto com precisão.
Virá o outono
com sua corrente de mármore branco
que fez os jornais locais
exsudarem a tinta.
Depois o inverno no ponto marcado
cristalizará infinitamente
as superfícies.
Mais tarde a primavera
e suas estimativas
de rentabilidade.
Tão só o verão
é que resta
para o vinho,
e, mais ainda,
sob condição
de bebê-lo
e de esperar dele
o que lhe pertence
pelo direito
da primazia:
o sonho
e seus bichinhos
de muros
e de painéis,
linguajar do deserto
e língua de nosso arrimo
no chão nativo.
Ei-lo aqui, o vinho
cantado por este homem
que o conhece.
Vinho das noites e das manhãs.
Fio de Ariadne de nossos relatos.
Memória de nossos caminhos
e das vielas
de limiares que se inspiraram
nos faniquitos da rocha.
Lembrança e parcial olvido
daqueles melhores momentos
do crescimento do homem,
ao mesmo tempo no coração e à margem
da civilização.
Vinho de nossas cortinas puxadas
e das cadeiras nos limiares.
Vinho da sagacidade
e do desespero.
Vinho da compreensão
e de nossas viagens.
Os gatos traspassam o ar
como os morcegos,
e o cão
adormece
em cima de uma mureta
largada.
Mais homens para baterem papo
e mais mulheres para assomarem em suas janelas,
e mais crianças para a velocidade dos limiares
e mais idosos para a paciência dos muros.
Eis onde estamos,
o que deixamos,
o que nada substituirá.
Sem razões não há vinho,
porém o vinho não está certo,
e, dado aquilo que evoquei agorinha,
tampouco se pode dizer
que ele está errado.
De resto,
seria um personagem mesmo,
visto que o bebemos?
A poesia teria um corpo mesmo,
se nos nutríssemos dela?

*

   Patrick Cintas não tem grande nome, pelo menos fora da França onde reside.   
    Modesto e reservado, alheio a toda e qualquer celeuma midiática, mantém-se distante dos holofotes, fala pouco de si mesmo, não insiste em buscar reconhecimento público.  
     No entanto,  é dono de uma verdadeira cornucópia literária, autor de incontáveis romances e poemas, ensaios críticos e crônicas culturais. Sem se gabar de seus sucessos nem se queixar de seus problemas, ele faz o que se deve fazer quando se é escritor: ele escreve... O extenso poema cuja versão portuguesa aqui se deu é um dos exemplos característicos de sua espetacular criatividade. Espero que nossos leitores, amantes do bom vinho e da boa poesia, gostem dele. E quem se interessar pelas obras de Patrick Cintas em geral, quem quiser conhecê-las a fundo, fará bem em visitar o site da editora Le Chasseur abstrait e da revista virtual RALM que ele dirige (www.lechasseurabstrait.com), assim como o seu próprio site (www.lechasseurabstrait.com/television/), os quais decerto lhe parecerão dignos de atenção.

             (Tradução e apresentação de OLEG ALMEIDA – poeta, tradutor e ensaísta)

Jean Ferrat,Que la montagne est belle



Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...