ODE
AO VINHO
O vinho
que não está certo
tampouco está errado.
Nada de copo
para bebê-lo,
apenas o sol
e a minha espera
sob um carvalho,
onde a pedra
é o limiar
de mim mesmo.
Pedra cavada
por dez gerações
de pastores.
As nádegas deles
moldaram a posição ideal
de quem fica sentado,
em face daquela distância
que nos separa
da civilização.
O vinho também espera,
e o momento vem sempre:
a noite acossa o dia,
o qual não perece –
caso contrário, ele renasceria,
e nós teríamos tempo
para recomeçar
em vez de substituirmos a nossa
espera
por algum jogo.
O vinho tem suas razões:
não explica nada.
Nem nada concede.
Não substitui
o que falta,
o que acaba,
em nosso olvido.
A terra do vinho é obra-prima
dos lugarejos sagrados
à nossa espera.
O vinho escorre
por cômoros duros,
e nós percorremos o invisível
sem encontrarmos palavras
para dizê-lo.
A terra
em leves
declives,
as escavações
das chuvas,
a relva louca
e os caminhos
pré-calculados
na trajetória
das pedras
que descem
dos muros
de mármore
e de calcário.
O vinho reascendia
ao primeiro dia
e à primeira fermentação,
à alquimia
do átimo
que ninguém ainda
viera a esclarecer.
O vinho e essa terra
se entrelaçavam
como as aves
no céu,
e eu procurava o sono,
como se ele não existisse,
como se me coubesse
inventá-lo.
Nós escrevemos
na casca das árvores
com a ponta da faca,
testemunhando a faca
momentos de desespero
na carne daquelas mulheres
ou na deste homem
que não esperou pela sua hora.
O vinho dos velhos garrotes
cedeu o lugar de quem vence
ao vinho das perpetuidades
bem relativas.
Porém, não é coisa pior,
que tu não te sentes tão odiado.
E matas mais facilmente
que a doença.
Vinho daquelas crianças
nascidas do gozo,
se é que a gente não mente
em crer nisso.
Uma mulher intervém,
linda como a aveia pelas encostas
ou má como a água das agaváceas;
uma mulher chega ao ponto marcado
para levar a cabo
a obra do vinho,
dando-lhe um sentido,
mais uma
razão.
O vinho não está certo
tomando o lugar da mulher
que o acaso lhe pôs no caminho,
mas, se não foi o acaso
e se a mulher partiu
sem você,
pois você não iria embora
com tanta facilidade,
então a espera
fica pior
que os giros infames
do torno,
pior que a cama
arrumada todos os dias
por hábito
de manter a ordem.
O vinho saía da minha boca
como as frases
das tuas mãos,
derramadas sobre a minha carne
adormecida,
criatura de minha aptidão
para criar de novo as circunstâncias
previstas
pela comunidade,
criatura nascida do cruzamento
da transparência
e do invisível,
planos secantes
das interrupções
ou, quem sabe, dobras
de meus lençóis.
O vinho,
a terra.
A terra
e nossas andanças.
As nossas andanças
e a espera
dos que viajam
em vez de cumprirem as suas
promessas.
Nossas janelas sem vidros.
Nossos cômodos sem janelas.
As lajes de nossos telhados.
O raio oblíquo do amanhecer
refletido por um espelho
posto com precisão.
Virá o outono
com sua corrente de mármore branco
que fez os jornais locais
exsudarem a tinta.
Depois o inverno no ponto marcado
cristalizará infinitamente
as superfícies.
Mais tarde a primavera
e suas estimativas
de rentabilidade.
Tão só o verão
é que resta
para o vinho,
e, mais ainda,
sob condição
de bebê-lo
e de esperar dele
o que lhe pertence
pelo direito
da primazia:
o sonho
e seus bichinhos
de muros
e de painéis,
linguajar do deserto
e língua de nosso arrimo
no chão nativo.
Ei-lo aqui, o vinho
cantado por este homem
que o conhece.
Vinho das noites e das manhãs.
Fio de Ariadne de nossos relatos.
Memória de nossos caminhos
e das vielas
de limiares que se inspiraram
nos faniquitos da rocha.
Lembrança e parcial olvido
daqueles melhores momentos
do crescimento do homem,
ao mesmo tempo no coração e à margem
da civilização.
Vinho de nossas cortinas puxadas
e das cadeiras nos limiares.
Vinho da sagacidade
e do desespero.
Vinho da compreensão
e de nossas viagens.
Os gatos traspassam o ar
como os morcegos,
e o cão
adormece
em cima de uma mureta
largada.
Mais homens para baterem papo
e mais mulheres para assomarem em
suas janelas,
e mais crianças para a velocidade dos
limiares
e mais idosos para a paciência dos
muros.
Eis onde estamos,
o que deixamos,
o que nada substituirá.
Sem razões não há vinho,
porém o vinho não está certo,
e, dado aquilo que evoquei agorinha,
tampouco se pode dizer
que ele está errado.
De resto,
seria um personagem mesmo,
visto que o bebemos?
A poesia teria um corpo mesmo,
se nos nutríssemos dela?
*
Patrick Cintas não tem grande nome, pelo menos fora da França onde
reside.
Modesto e reservado, alheio a toda e qualquer celeuma midiática,
mantém-se distante dos holofotes, fala pouco de si mesmo, não insiste em buscar
reconhecimento público.
No entanto, é dono de uma
verdadeira cornucópia literária, autor de incontáveis romances e poemas,
ensaios críticos e crônicas culturais. Sem se gabar de seus sucessos nem se
queixar de seus problemas, ele faz o que se deve fazer quando se é escritor:
ele escreve... O extenso poema cuja versão portuguesa aqui se deu é um dos
exemplos característicos de sua espetacular criatividade. Espero que nossos
leitores, amantes do bom vinho e da boa poesia, gostem dele. E quem se
interessar pelas obras de Patrick Cintas em geral, quem quiser conhecê-las a
fundo, fará bem em visitar o site da editora Le Chasseur abstrait e da revista virtual RALM que ele dirige
(www.lechasseurabstrait.com), assim como o seu próprio site
(www.lechasseurabstrait.com/television/), os quais decerto lhe parecerão dignos
de atenção.
(Tradução e apresentação de OLEG
ALMEIDA – poeta, tradutor e ensaísta)