quinta-feira, 18 de junho de 2020

Antologia - Orlando Neves






POEMA

A mão imóvel. A luz que me contempla.
É fora de mim que alguém está vivendo.
A duras penas, a mão move-se. Busca
a palavra que sei oculta na página branca.
Mas nem a luz a desenha. A que parte
Irei com o pensamento, se a mão não obedece?
Já o tempo me adoeceu neste tão pouco
que o cérebro dura. A noite é sempre.
Com a palavra que morre, morrem
os meus monstros. Que sombras interrogo
se nenhuma resposta ouço? O quarto é desabrido,
nada ressuscita da memória. A dor
deixa escombros. Nem o fogo lhes dará cor.



Procurei-me entre as ervas ásperas do inverno
que, nuas, iluminaram o silêncio.
Assim foi que me disseram. Procurei-me entre
os figos das colinas, lendo no seu álcool
o tempo gerado pelo límpido orvalho.
Assim foi que me disseram. Procurei-me entre
os outros para encontrar no corpo a mansidão,
passagem e tributo a uma morte calma.
Assim foi que me disseram. Procurei-me entre
a vastidão das águas – o claro caminho
em que a dor seria um areal de alegria
fugaz. Procurei-me entre as palavras do mundo.
Assim foi que me disseram do calamento
da doce melodia das fontes à noite.


*


   Orlando Loureiro Neves nasceu em Portalegre. O ensino secundário foi feito em várias cidades: LisboaPorto e Guimarães. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa , tendo aí terminado a licenciatura em Direito em Junho de 1958.

    Exerceu diversas actividades, quase todas ligadas à cultura. Entre outras, colaborou  no Teatro Moderno dos Fenianos do Porto e foi vice-presidente do Teatro Experimental da cidade. Trabalhou como documentalista no Laboratório Nacional de Engenharia Civil em Lisboa e também como jornalista no República no campo da cultura, tendo aí sido crítico de teatro e de televisão.
    Em Fevereiro de 1975 fundou a Cooperativa Editorial Diabril. Foi diretor de Relações Públicas e assessor do Teatro São Luiz, na altura dirigido por Carlos Wallenstein.
    Em 1980 foi apresentador do programa cultural semanal "Manta de Retalhos" na RTP1, considerado pela crítica como o melhor programa cultural de televisão feito até então. Foi co-autor da primeira série do programa de rádio "Pão com Manteiga"..
     Galardoado em 1998 com o Prémio Literário Cidade de Almada, graças à obra: Torrebriga – Cenas da Vida no Interior, lançada no ano seguinte pela editora Campo das Letras do Porto.     
     Autor, entre outros, dos livros Decomposição – A Casa, Mar de que futuro, Organon para a decifração da poesia, Loca obscura, pranto de Leonor de Sepúlveda, Máscaras. 
     Faleceu no Porto em 24 de Janeiro de 2005.

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