quinta-feira, 14 de maio de 2020

Um poema de António Cândido Franco





Teixeira de Pascoaes


Passei a vida a falar de ti
e nada sei de ti.
Nunca falei contigo
e nunca te vi.

Passei a vida a falar dos teus livros
e nada sei deles.
Nunca te li.
Passei a vida a falar do teu verbo
e nunca te ouvi.

Passei a vida a falar da tua terra
e da tua casa
e nunca lá vivi.
Passei a vida a falar do pico da tua serra
e nunca lá fui.

Olho os teus olhos numa fotografia
a asa negra do cabelo
a testa fria
a finura dos lábios de papel
a brancura do rosto.
Contemplo a tua casa num postal
e fico abismado.
És para mim o absoluto desconhecido.

Quem és tu afinal?
Que livros são os teus?
Em que lugar moraste?
Que fundo poço há em ti?
Que escuridão é a tua?
Que corpo foi o teu?
Qual a terra que pisaste?
Que sentido tem o que escreveste?
Em que serra tu andaste?
E que vida tu viveste?
Que Lua contemplaste?
Que mistério tão escuro e tão grande foi o teu?

Outros e outros até ao fim
virão depois de mim
e sem melhor sorte
passarão os sóis a falar de ti

da tua casa e dos teus versos
a procurar a origem do teu rosto
e o pico da tua serra

no fim quando a noite chegar
e o osso da lua
os acompanhar no mar da morte
dirão assombrados como eu
que nada sabem de ti.

Tudo passa
e tudo esquece
a carne e o sangue
desaparecem na voragem das eras
as pedras e as cidades
desfazem-se em pó
tudo se perde
e tudo se vai
mas tu vences o tempo
atravessas as camadas do esquecimento
sobrevives às idades
levantas a mão
acenas um sinal e permaneces

vives para sempre
ignoto, oculto, imortal.

                                                        (2011)

                          (Poeta, ensaísta, novelista e investigador)

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