segunda-feira, 11 de maio de 2020

Para começar bem a semana


Mayte Bayon, Aguarela



O FRACO SUICIDA

                                                                      Joaquim Saial



Marcelino costumava jogar na lotaria, todas as semanas, sempre com o mesmo número. Mas nunca obtivera qualquer prémio, sequer uma terminação. E por isso lamentava-se desse seu eterno infortúnio, de cada vez que ia à papelaria Central, onde comprava as cautelas, ao que o dono da loja, o Cardoso, replicava: «Deixe lá, senhor Marcelino, mais dia, menos dia, a sorte há-de bater-lhe à porta. Vai ver, não desanime».
Mas se tinha azar no jogo, nas outras coisas da vida também não era muito feliz, já para não falar nesse particular dos amores (por oposição, sempre associados ao jogo, em matéria de enguiços), após dois divórcios litigiosos. E para culminar, numa Lisboa feita postal ilustrado de turismo, nestes finais de década de 10 do XXI, recebeu uma carta do senhorio, na qual este lhe dizia que a renda ia ser substancialmente aumentada – o que era o mesmo que avançar-lhe que tinha de ir para a rua.
Sem antever a possibilidade de reorganizar a sua vida, pois o magro ordenado de carteiro mal lhe dava para comer e restantes despesas, quanto mais para pagar o que o senhorio lhe exigia agora, ou para arranjar outra casa numa capital engolida pela especulação imobiliária, começou a pensar no suicídio.
E se bem o pensou, melhor o fez – isto é, mal, como veremos. Uma manhã, encheu-se de coragem, abriu a janela do quarto e precipitou-se no vácuo. Enfim, não era totalmente o vácuo, pois caiu no toldo do lugar chinês de hortaliça e fruta do rés-do-chão, de onde rolou para cima do automóvel do vizinho do 2.º direito do prédio onde vivia. Uma perna e um braço partidos e pagamento de prejuízos ao proprietário da viatura amolgada foram mais um golpe de azar, desta feita não provocados pelo destino mas por ele próprio.
Mas Marcelino não desistiu. Logo que sumariamente recuperado, começou a frequentar bares manhosos, locais onde considerava ser mais fácil obter uma arma sem dar muito nas vistas. E foi num daqueles com gorila à porta que adquiriu ao Décio "Troglodita", dealer de droga e vendedor de pistolas e outros artefactos de tiro, um revólver usado e com carregador cheio, pela módica quantia de 50 euros. Munido dele, na noite desse mesmo dia dirigiu-se ao jardim próximo de casa, sentou-se num banco e disparou contra a têmpora. Só que, mais uma vez, a coisa não resultou: a arma era adaptada, tinha sido pistola de alarme, a bala rebentou no cano, levou-lhe dois dedos e na cabeça que devia ter sido furada apenas ficaram umas quantas pintas escuras da explosão da pólvora. O drama acabou em mais dias de hospital e previa-se o resto de recuperação em casa.
Foi precisamente pouco depois de um táxi o ter deixado à porta do prédio e de da papelaria ter saído o Cardoso que lhe gritou «Senhor Marcelino, senhor Marcelino, foi desta vez, saíram-lhe duzentos mil euros.» que ele caiu redondo no chão, com um ataque cardíaco, e ali mesmo faleceu.

                     (Poeta, contista investigador e ensaísta)

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