segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Nicolau Saião, A doce solidão do artista no Carnaval

 


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   O Arantes telefonou-me. Chovia de mansinho. Ele estava alegre, como sempre (vodka "Kamikaze"). "Imagino de que irás logo tu mascarado!" disse-me mostrando saber como ia ser no baile das Saavedras. "Aposto que vais de urso!", atirou gargalhando em tom de gozo. Não lhe disse que sim nem que não. E ele, lampeiro: "Adeus, meu malandro! Antes passa lá por casa e empresta-me o sobretudo que a nena te ofereceu".
   Estava nisto quando tocaram à campainha. Claro, era o Avelino. "Tou cá a pensar..." afirmou antes que eu respirasse fundo "Logo no baile das Reboredos... Sou capaz de jurar que vais de guarda-republicano!". E foi direito à garrafeira e abalou-me com o "Queen Margot"! Ainda não se extinguira o estrépito na escada e já me repenicava o telelé. Naturalmente, era o Simões, o gorducho com o seu pigarro enervante. "Olha lá, parceiro do teu parceiro! Já pensei que irás de bispo à funçanata das Castro Henriques..." pespegou-me com vivacidade. "É ou não é, meu chapa?" E antes de me deixar reagir já me cravara a certeza de 30 euros sem caroço... Despediu-se velozmente e quem vejo aparecer no e-mail do meu portátil que deixara ligado? Naturalmente, o Belisário. "Meu garanhão", li na janela do sinistro aparelhómetro "Já cá se sabe que ao baile das Avintes tu vais de bombeiro. Faz-te de novas...E não te esqueças de me devolver aquela primeira edição que me levaste do Fernando Arrabal".
   Suspirando, fui até à secretária. Nem tinha tido tempo de ver antes o correio. Uma carta. Hum, hum... Da Leopoldina. "Matulão, calculo que logo ao baile da Filarmónica não te sustenhas de ir de criada-para-todo-o-serviço. Sempre gostaste de meias pretas, eheh...". E dava-me logo o recado: "Não te esqueças de me levar a tua pulseira de ouro que eu depois ta devolvo...".
   A chuva parara. Olhei pela janela, com certa melancolia, as árvores que muito quietas estavam como sempre no enfiamento das ruas onde se cruzavam transeuntes com um ar algo abatido. Sentia-me meio patusco.
   Respirei fundo.
   Despi-me devagarinho. Pausadamente. Com prazer, com decisão. Pus-me até sem cuecas, fui até à porta do quarto, fechei-o à chave e voltando para junto da cómoda atirei-a dentro por uma fisga mal-fechada, que depois cerrei com esmero.
   Desatei a rir em stacatto, num estilo muito meu. Abri o ar condicionado quentinho, apanhei um exemplar do Boris Vian e estendi-me confortavelmente na doce cama.
   Eles nunca tinham pensado que neste Carnaval eu ficaria em casa mascarado de nudista...


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