2. BREBIS
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No meio da noite, ao acordar de supetão,
Brebis sente vontade de rir. Mentira parecerá mas por momentos, no mar do sono,
notou-se ligeiramente iluminado; por momentos, sobre a calva monacal, ouviu
adejar o fru-fru da clara santidade.
No Casarão já começaram a palpitar os ecos
dos que vêm de longes terras: cavalheiros-andantes, irmãos-chegados,
dormidos-nas-encruzilhadas, manas-de-mau porte, corcundas, coxos, famélicos,
leprosos; o costume, enfim, naquele santo retiro, onde chegam dia após dia, ano
após ano, e grão mérito se junte e daí releve, os que desejam por bem a doçura
jamais negada do repousar beatífico.
Foi nessa altura, dizia eu, que o manso
Brebis de orelha longa pela primeira vez olhou com atenção os dedos das suas
mãos sabedoras.
Outrora Brebis soubera coisas de muita
espantação: o lugar que a aurora escolhe para nascer, por exemplo. Mas já
esquecera tudo, as dúvidas não nos ligam às recordações. Como se calcula, a
suavidade dos cânticos é grata ao coração do homem, eis a verdade.
Na cozinha ronrona a voz seráfica de frei
João Sem Cuidados, cantando o seu mote de esperançosa mágoa:
Frère Jacques, frère Jacques
dormez vous, dormez vous?
e
no pátio lajeado os burricos de serviço, cobertos pela sombra lunar dos
pessegueiros e das tílias, esperam o início do seu turno de bondades.
Na Torre dos Grilos, aquela de tijolo e
pedra que pelos anos fora crescera até às barbas das nuvens, S. Estrabum
exercita-se cantochando e responsando, ardente e comovido com o seu “métier” de
grande purificador. A seus pés, um donato vai registando em velino as frases a
celebrizar.
No catre, irmão Brebis espreguiça-se para
compensar e sente lá por dentro uma intensa alegria.
Na cela quase nua, quase virgem, de
velharias nos cantos, de certeza que se esconde uma invisível presença.
Inventariemos: uma cadeira cambada, uma távola redonda, uma bacia de esmalte,
um mocho empalhado (símbolo da coragem e da humildade) uma caveira de
esculápio, um astrolábio, um globo. E Brebis. Inventariemos mais: uma gamela
onde por vezes, com preguiça de ir ao urinol, faz o chichi; uma estante com “in
fólios”, seis terços com as contas de pau-santo; um relógio de cuco; três
exemplares do “Reader’s Digest”; um óculo para ver o destino; uma lamparina. E
Brebis.
Brebis olhou segunda vez, atentamente, as
suas mãos cor de caca de recém-nascido e os dedos bondosos. E sente que na alma
lhe vai caindo como que um trémulo pingo de negro licor.
Brebis, como se sabe, já inventou uma nova
filosofia: negar a existência das ruas que a partir do crepúsculo perdem a luz
e a memória. Qualquer dia começará a comer o pão pelo lado mais escuro e
cortará as unhas seis vezes por ano. Andará pelos corredores com a cabeça
baixa, salmodiando ciência e reza. Olhará a luz que os vitrais coam, estremecerá
de frio como a flama das velas, bimbalhará como os sinos das matinas, rirá para
dentro devagar.
Sentirá rumores de gente esquisita, com um
odor lixado a incenso. Mas por enquanto, pensando nisto, apenas a sacola das
migas se começa a queixar de abandono e desprezo.
Diz para si próprio que o maior mistério é
andar quando deve andar, dormir quando deve dormir, fazer a barba, entrar no
refeitório com pratos de boa loiça, rir para o sol, rir para as árvores do
monte, contar anedotas. Fugir dos ajuntamentos e não desejar a mulher do
próximo. As rugas, os olhos fechados, ficam onde calha. Brebis, ausente em
rugidos, sonolento enquanto velho, deixa escapar um gemido honrado. Um gemido
sulfuroso.
No salão onde as orações e os suspiros têm
quentes frenesis, as preces misturam o arrependimento com o desejo de
entusiasmo. Tanta gentinha! O oratório resplandece no meio dos rostos
intensamente ardidos. Brebis começa a pensar que, dali para a frente, o resto
da sua vida começará a ganhar em deslumbramento e santidade.
…Que Brebis, aliás, repartirá pelos outros.
Pois o regresso é sempre nobre e as sombras que tremem, quase mortas, mesmo
assim pulsam misteriosamente como a paz magnífica das lágrimas redentoras.
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