segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Nicolau Saião, De Contarelos para mortos vivos


1. GANIMEDES



ns



    Quando Ganimedes, o Meio-Poderoso, nasceu (numa noite vesga e tranquila de Agosto) o Mundo sentiu um apertão, um espasmo, percorrer-lhe raivosamente a cintura e a testa. Mas Ganimedes foi crescendo forte e silencioso, vermelhos os cabelos, inquieto o nariz, os dedos mindinhos mais compridos que os dos outros infantes. Direis: nada nos garante que o vento terrinegro que nessa altura percorria o laranjal, em ilustrados jogos, não tivesse adivinhado-sabido o semi-começar das trevas. Ainda que estranho seja, nem a vaca nem o burro, aliás estarrecidos, recordaram esperançosos antigas emoções. Ganimedes nasceu e cresceu, é tudo: nem discurso disse nem fala botou, naquele acto de rendição: Somente um gemido fino e solto, atendei, ficou a assinalar e para todo o sempre o local do seu nascimento.

    Ganimedes no Verão caçou pardais. No Inverno matou cobras. No Outono atormentou peixes e rãs. Na Primavera devorou borboletas e rasgou os calções ao dormitar nos bosques. E depois da primeira comunhão, de branco e azul fatiotado, sonhou com palácios distantes cheínhos de fadas madrinhas.

    Voltava triunfante para casa, ao lusco-fusco, olhando o universo por cima do ombro. As suas madrugadas eram de azougue e nos rios, lagos, fontes (não esquecendo o espelho mágico que tanto o amava) estudava o rosto inseguro. A barriga de Ganimedes, quando chovia, tinha a cor da tristeza: por isso Ganimedes, futuro Senhor das Portas Imprecisas, resolveu provocar o destino.

      Agora, sentado à mesa do Café, que linda e que fresca é, o serenal Ganimedes pensava a sério nos mistérios, esperando Centaurus. O velho palaciano, professor nas horas vagas, prometera aparecer. Ganimedes, esse, cocou o revirão na existência.

     Os olhitos de perro de Centaurus, recorda o Meio-Poderoso, dançavam tem-te não caias, abarcando Norte e Sul, Este e Oeste. Que pensar? Beiça lambida, perna traçada, estômago pesado-leve, talvez fosse melhor esquecer e mudar. Mas qual! É tão belo o cheiro dos cobres! E nas unhas de Centaurus, olhos e ouvidos do rei, também se entretopava com um bocado de imaginação o perfume desfeito dos diamantes.

    Agora, vede: a respiração de Ganimedes, o Muitos-Anos potente, anos a vir, sobe no ar feliz como uma aeronave esquisita. Que o hálito de Ganimedes, direi antes que me esqueça, já visitou Tembuctu: não é um simples bafo: dentro dele, com ele, agonizam épocas e sóis, o que se conhece e o que jamais se entenderá, pergaminhos, solenidades, clepsidras, visões; e de há muitas e muitas badaladas que o Natal de Ganimedes começa onde o Natal de outros acaba.

    Contempla, Ganimedes, o vaivém da avenida! Na tua mioleira ferve o querido unguento das bruxas. No teu bolso direito o facalhão medita. No algibeirão esquerdo uma palavra enrosca-se. Tudo terás, Ganimedes! Já tiveste amigos poucos, já tiveste inimigos defuntos, já andaste ao calor e ao frio, já gozaste na carne o fedor dos beijos, já sentiste nas orelhas o caminhar dos maus anos. No tempo velho ias tu, se bem me lembro, nos dezassete fôlegos, tocou-te numa noite o buço o fresco braço de Emília. Nevava com fartura. Era através de uma auréola que distinguias o quarto de hóspedes. Andando em torno, fazendo do gelo o princípio das eternas delícias, Emilia a Bela ria, ria.

    Consagraste-te depois ao sono e aos inventos da média maldade. Talvez por isso o nariz te tivesse crescido com sabedoria e vigor.

    Ganimedes ergue os olhos. Ninguém lamentará a sorte que o espera. Cheira mal, Ganimedes. Tão mal que obriga os que vão passando, sem que o saibam, a apertar os dentes. Mas Ganimedes será o pavor e a ressurreição e nada cessará de lhe pesar em cima.

    Na cidade, num largo ao longe, aves e cães debicam pedacinhos de pão escuro. Também na cidade existem cães e aves esfomeadas. E a brutalidade dos homens, a morte, nunca será infelizmente o acabar da questão.

    Como um lagarto apodrecido, Ganimedes sentado espera. Provocou o destino, fez-se por fora dos homens. Talvez por isso os pavilhões auriculares não se envergonhassem da fama, pesada e maternal, de peregrino e vidente. A sua cova será mais um rabisco a juntar a todos os outros.

    E enquanto o Meio-Poderoso vai aguardando Centaurus, sentindo nas mãos peludas e no pescoço o finante sol da tarde, de súbito compreende que nunca mais voltará a contemplar, do meio dos pinheirais antiquíssimos, o recuado e terrível luzeiro de Canis Minor.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Aos confrades, amigos, adeptos e simpatizantes

     Devido a um problema informático de última hora, não nos será possível fazer a postagem desta semana.    Esperando resolvê-lo em breve,...