1. GANIMEDES
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Quando Ganimedes, o Meio-Poderoso, nasceu
(numa noite vesga e tranquila de Agosto) o Mundo sentiu um apertão, um espasmo,
percorrer-lhe raivosamente a cintura e a testa. Mas Ganimedes foi crescendo
forte e silencioso, vermelhos os cabelos, inquieto o nariz, os dedos mindinhos
mais compridos que os dos outros infantes. Direis: nada nos garante que o vento
terrinegro que nessa altura percorria o laranjal, em ilustrados jogos, não
tivesse adivinhado-sabido o semi-começar das trevas. Ainda que estranho seja,
nem a vaca nem o burro, aliás estarrecidos, recordaram esperançosos antigas
emoções. Ganimedes nasceu e cresceu, é tudo: nem discurso disse nem fala botou,
naquele acto de rendição: Somente um gemido fino e solto, atendei, ficou a
assinalar e para todo o sempre o local do seu nascimento.
Ganimedes no Verão caçou pardais. No
Inverno matou cobras. No Outono atormentou peixes e rãs. Na Primavera devorou
borboletas e rasgou os calções ao dormitar nos bosques. E depois da primeira
comunhão, de branco e azul fatiotado, sonhou com palácios distantes cheínhos de
fadas madrinhas.
Voltava triunfante para casa, ao
lusco-fusco, olhando o universo por cima do ombro. As suas madrugadas eram de
azougue e nos rios, lagos, fontes (não esquecendo o espelho mágico que tanto o
amava) estudava o rosto inseguro. A barriga de Ganimedes, quando chovia, tinha
a cor da tristeza: por isso Ganimedes, futuro Senhor das Portas Imprecisas,
resolveu provocar o destino.
Agora, sentado à mesa do Café, que linda
e que fresca é, o serenal Ganimedes pensava a sério nos mistérios, esperando
Centaurus. O velho palaciano, professor nas horas vagas, prometera aparecer.
Ganimedes, esse, cocou o revirão na existência.
Os olhitos de perro de Centaurus, recorda
o Meio-Poderoso, dançavam tem-te não caias, abarcando Norte e Sul, Este e
Oeste. Que pensar? Beiça lambida, perna traçada, estômago pesado-leve, talvez
fosse melhor esquecer e mudar. Mas qual! É tão belo o cheiro dos cobres! E nas
unhas de Centaurus, olhos e ouvidos do rei, também se entretopava com um bocado
de imaginação o perfume desfeito dos diamantes.
Agora, vede: a respiração de Ganimedes, o
Muitos-Anos potente, anos a vir, sobe no ar feliz como uma aeronave esquisita.
Que o hálito de Ganimedes, direi antes que me esqueça, já visitou Tembuctu: não
é um simples bafo: dentro dele, com ele, agonizam épocas e sóis, o que se
conhece e o que jamais se entenderá, pergaminhos, solenidades, clepsidras,
visões; e de há muitas e muitas badaladas que o Natal de Ganimedes começa onde
o Natal de outros acaba.
Contempla, Ganimedes, o vaivém da avenida!
Na tua mioleira ferve o querido unguento das bruxas. No teu bolso direito o
facalhão medita. No algibeirão esquerdo uma palavra enrosca-se. Tudo terás,
Ganimedes! Já tiveste amigos poucos, já tiveste inimigos defuntos, já andaste
ao calor e ao frio, já gozaste na carne o fedor dos beijos, já sentiste nas
orelhas o caminhar dos maus anos. No tempo velho ias tu, se bem me lembro, nos
dezassete fôlegos, tocou-te numa noite o buço o fresco braço de Emília. Nevava
com fartura. Era através de uma auréola que distinguias o quarto de hóspedes.
Andando em torno, fazendo do gelo o princípio das eternas delícias, Emilia a
Bela ria, ria.
Consagraste-te depois ao sono e aos
inventos da média maldade. Talvez por isso o nariz te tivesse crescido com
sabedoria e vigor.
Ganimedes ergue os olhos. Ninguém lamentará
a sorte que o espera. Cheira mal, Ganimedes. Tão mal que obriga os que vão
passando, sem que o saibam, a apertar os dentes. Mas Ganimedes será o pavor e a
ressurreição e nada cessará de lhe pesar em cima.
Na cidade, num largo ao longe, aves e cães
debicam pedacinhos de pão escuro. Também na cidade existem cães e aves
esfomeadas. E a brutalidade dos homens, a morte, nunca será infelizmente o
acabar da questão.
Como um lagarto apodrecido, Ganimedes
sentado espera. Provocou o destino, fez-se por fora dos homens. Talvez por isso
os pavilhões auriculares não se envergonhassem da fama, pesada e maternal, de
peregrino e vidente. A sua cova será mais um rabisco a juntar a todos os
outros.
E enquanto o Meio-Poderoso vai aguardando
Centaurus, sentindo nas mãos peludas e no pescoço o finante sol da tarde, de
súbito compreende que nunca mais voltará a contemplar, do meio dos pinheirais
antiquíssimos, o recuado e terrível luzeiro de Canis Minor.
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