segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Vítor Encarnação, Uma voz na multidão

 


Crónica em edição recente do jornal Diário do Alentejo, recolhida por Joaquim Simões



Jean-Pierre Vanhousenbrook


Há vozes que são chaves que abrem coisas dentro de nós. A pessoa ouve-as e o cérebro lembra-se de tudo, o cérebro inflama-se de emoções e vai, contrariando a direção do tempo, à procura da fonte da voz. A fonte da voz é uma boca, dentro dela nasceu um som, dessa nascente brotou uma entoação, dessa fonte correu um timbre, dessa alvorada de palavras jorrou uma forma de falar única, irrepetível, singular. Éramos crianças quando bebemos dessa boca, quem em pequeno bebe da fonte da voz nunca mais se esquece. Pode vir a escuridão do tempo, podem vir as sombras do passado, pode vir o breu do esquecimento, podem vir anos em cima de anos, podem vir todos os cansaços, podem vir dúvidas sobre os nomes, pode vir névoa sobre o rosto, desorientação sobre o sítio, podem vir as vozes mais belas do universo, pode vir toda a humanidade a falar ao mesmo tempo para nos confundir, podem vir imitadores, que nada nos abate, nada nos engana, nada nos ilude. Quando ouvimos aquela voz, nós dizemos sem dúvida nenhuma: eu bebi desta voz. Eu matei a minha sede de palavras com esta voz, eu desfiz-me do meu silêncio por causa desta voz, trocámos palavras, trocámos palavras que se abraçavam, palavras que brincavam umas com as outras, eu tenho esta voz dentro do meu sangue, na palma das mãos, debaixo da pele, entre a carne e os ossos, no fundo dos olhos, tenho-a tatuada nos braços da alma. É por ela ser tão importante que os mortos deixam cá a voz.

 

(Texto feito a partir de uma ideia do amigo Fernando Bento)


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