Crónica em edição recente do jornal Diário
do Alentejo, recolhida por Joaquim Simões
Há vozes que são chaves que abrem coisas
dentro de nós. A pessoa ouve-as e o cérebro lembra-se de tudo, o cérebro
inflama-se de emoções e vai, contrariando a direção do tempo, à procura da
fonte da voz. A fonte da voz é uma boca, dentro dela nasceu um som, dessa
nascente brotou uma entoação, dessa fonte correu um timbre, dessa alvorada de
palavras jorrou uma forma de falar única, irrepetível, singular. Éramos
crianças quando bebemos dessa boca, quem em pequeno bebe da fonte da voz nunca
mais se esquece. Pode vir a escuridão do tempo, podem vir as sombras do
passado, pode vir o breu do esquecimento, podem vir anos em cima de anos, podem
vir todos os cansaços, podem vir dúvidas sobre os nomes, pode vir névoa sobre o
rosto, desorientação sobre o sítio, podem vir as vozes mais belas do universo,
pode vir toda a humanidade a falar ao mesmo tempo para nos confundir, podem vir
imitadores, que nada nos abate, nada nos engana, nada nos ilude. Quando ouvimos
aquela voz, nós dizemos sem dúvida nenhuma: eu bebi desta voz. Eu matei a minha
sede de palavras com esta voz, eu desfiz-me do meu silêncio por causa desta
voz, trocámos palavras, trocámos palavras que se abraçavam, palavras que
brincavam umas com as outras, eu tenho esta voz dentro do meu sangue, na palma
das mãos, debaixo da pele, entre a carne e os ossos, no fundo dos olhos,
tenho-a tatuada nos braços da alma. É por ela ser tão importante que os mortos
deixam cá a voz.
(Texto feito a partir
de uma ideia do amigo Fernando Bento)
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